segunda-feira, 27 de março de 2017

Sobre o Ódio (originalmente publicado em Exercícios de Caligrafia)



Jonatas Ferreira

Fiquei feliz por ter participado hoje do Programa Fora da Curva. Não apenas acho a ideia de discutir temas que não encontram espaço na mídia corporativa muito boa, como a equipe que está tocando o projeto é excelente: além de Maria Eduarda da Mota Rocha (dona Maria) e Yvana Fechine, o time é composto por Lula Pinto e uma galera muito boa - não lembro do nome de todo mundo. Pela manhã, pois, estávamos na TV Universitária prontos  para conversar sobre esse tema central na política brasileira contemporânea que é o ódio, a raiva ao pobre. Na bancada, estávamos Maria Eduarda, Beth de Oxum e eu. Esse episódio do programa, assim como os outros já feitos até agora, estão na página do Programa Fora da Curva no Facebook. Mas quem quiser acompanhar ao vivo a série de conversas sobre temas cruciais da sociedade brasileira atual é só sintonizar de segunda a sexta a Rádio Universitária, de 11:30 às 12 h.

O ódio na sociedade brasileira, de modo amplo, demanda uma discussão urgente. Aceitemos, porém, o ponto de partida mais circunscrito proposto pelas produtoras e produtores do Programa Fora da Curva. Por que nos deparamos hoje com um discurso de ódio ao pobre na grande mídia, nas redes sociais e em fatos do dia a dia? Vamos a alguns exemplos – por força do hábito profissional sempre ilustro o que digo. O Nordeste, nas últimas eleições presidenciais, foi determinante para dar vitória à candidata da coligação PT-PMDB-PDT-PC do B-PP-PSD-PROS e PRB, Dilma Rousseff. Embora um estado como Minas Gerais também tenha sido importante para aquela vitória, foi largamente divulgado e comentado o resultado eleitoral que a candidata obteve entre pobres, ignorantes, analfabetos na região Nordeste. Não me deterei aqui, mas esse contingente da população brasileira parece ser, de acordo com certas análises, culpado de certo fisiologismo, de votar com o estômago e não estar realmente preparado para o exercício democrático. Discursos e atos de ódio aos nordestinos nos estados do Sul e Sudeste não são exatamente novidade, mas fizeram manchetes recentes e se espalharam pelas redes sociais, particularmente associados a análises do papel que tais discursos exerceram no último pleito presidencial. Maria Eduarda em sua fala de abertura ao programa sugeriu, e a propósito, que o ódio a Marisa Lula da Silva se deve à sua origem social, ter sido ela uma empregada doméstica e ter se tornado primeira dama do país. Não "soube o seu lugar" e por isso o ódio social chegou mesmo a se converter em sugestão de procedimentos médicos para assassiná-la ou celebrações quando ela faleceu.

Poderíamos ainda falar de vários outros e outras brasileiros e brasileiras que ascenderam socialmente em decorrência de políticas desenvolvimentistas dos Governos Lula e Dilma - parte deles constituem o que Jessé Souza chama de “batalhadores”. Esses governos tentaram aliar políticas neoliberais na área econômica a políticas sociais inclusivas, como lembra André Singer. Essas últimas, como se sabe, resultaram em alguma mobilidade social, no que pese a dificuldade política de mantê-las, ou ampliá-las, no médio prazo. 

Existe uma tendência a se afirmar que as elites brasileiras têm nojo, asco de pobre. E há aqui muita verdade, afinal não estamos tão distantes assim daquele general que disse preferir o odor de seus cavalos ao cheiro do povo. Mas esse tipo de argumentação não diz algo fundamental. Há algo de muito racional nos pelos eriçados das classes médias, por exemplo, diante da proximidade física de “batalhadores” nos "seus" redutos de compra, ou fazendo barulho na segunda classe de “seus” aviões, ou ainda atulhando as avenidas das grandes cidades com seus modestos 1.0, comprados em infinitas prestações. 

A estratificação brasileira é produto de uma acomodação social perversa. Os salários pagos pelas empresas nacionais e internacionais, ou pelo setor público, aos profissionais qualificados, membros das classes médias, não seriam suficientes para lhes dar um padrão de vida razoável, compatível com sua pretensão de classe, caso esses profissionais pagassem valores razoáveis por todos os serviços de que necessitam. A exploração a que são submetidas as classes médias brasileiras só não é explosiva porque ela transfere essa pressão para camadas da população que fazem tarefas necessárias em suas vidas, tais como, lavar suas roupas, passá-las, reparar máquinas, equipamentos, cozinhar sua comida, varrer e aspirar suas casas etc. etc. Aprendemos isso ao ler Florestan Fernandes. 

O Brasil foi tradicionalmente pensado como um país em que não há conflitos sociais sérios porque um nível de exploração tão brutal, quanto este que existe entre nós, inconcebível com seu lugar de sétima, oitava, nona economia do mundo, penaliza sobretudo quem nada tem e dispõe de pouca organização política para lhe impor resistência. Essa é uma lição básica acerca da perpetuação do passado colonial e escravocrata que marca a nossa modernidade: os financistas ingleses exploram a corte que explora os produtores brasileiros que exploram os seus escravos. E essa lógica se manteve quando o regime escravocrata é legalmente suspenso.

Uma mudança ainda que mínima nessa situação, afinal nos últimos anos nossos indicadores sociais melhoraram, inclusive o nível de concentração de renda, tem um impacto direto em tal estrutura da estratificação social, em sua acomodação perversa. Há que se pagar um salário mínimo menos aviltante para as domésticas, que passam a ter alguns direitos trabalhistas garantidos, por exemplo. Em período de prosperidade econômica tudo isso já é visto com extrema suspeita pelas classes médias, que vão às ruas contra à corrução suposta e real, mas que silenciam diante da tomada de várias instâncias do poder pelo crime organizado, caso esse novo poder esteja, como está, disposto a colocar os miseráveis no seu devido e mau cheiroso lugar. Há emoção na postura de manifestantes que reivindicam empregadas domésticas que durmam no serviço, ou passeios regulares e mais exclusivos a Miami – por que porra Miami, eu me pergunto, talvez porque nunca estive lá... Há emoção, mas há sobretudo um cálculo estreito. Há defesa de  capitais simbólicos distintivos, claramente, e muito poderíamos falar a esse respeito, mas há também uma contabilidade econômica básica. As classes médias não veem a possibilidade de elas próprias também melhorarem sua situação social e de adotar práticas menos ligadas a um passado escravocrata, de aceitar a cidadania do maior número possível como conquista desejável da democracia.

Raiva de pobre nesse grupo é também um ódio íntimo com respeito à sua condição de classe média periférica, mal paga, inculta, portadora de valores retrógrados que fariam vergonha nos lugares do mundo por onde passeiam com tanto gosto - bem, hoje em dia está complicado afirmar isso com a ascensão da extrema direita no mundo... Setores significativos das classes médias brasileiras não podem deixar de ver na pobreza econômica e social de largas parcelas da população sua própria miséria existencial. Nesse sentido, sou hegeliano: o outro com quem convivo é sempre o espelho em que me reconheço. Ir a Miami, nesse sentido, indica o quanto posso virar as costas para tal espelho e até onde minha cultura permite a imaginação se soltar. Por que Miami, eu ainda me pergunto...

E aqui poderíamos passar para outro aspecto do ódio no Brasil.

Conforme lembrou Beth de Oxum, em nossa conversa, o ódio entre nós não é apenas contra os pobres, mas contra negros, homossexuais, lésbicas, praticantes de cultos de origem africana. Nesse sentido, o ódio é um sintoma ainda mais grave. Ele nos remete ao quanto nossas instituições democráticas se encontram destroçadas. Numa situação em que o direito à cidadania seja garantido, não preciso odiar o outro, a outra. Certificar-me de que tanto eu quanto esse outro/outra seremos, ambos!, tratados como cidadãos de direito deveria ser o suficiente. A leitura de intelectuais como Judith Butler, neste ponto, ajuda muito. O ódio é um sintoma paranoico, é um medo intenso de que minha identidade seja tão frágil que o convívio com a diferença possa resultar em seu colapso - ademais, em nosso contexto caótico, tememos todos, progressistas e reacionários, que não haja instituições para defender nossos direitos. Esses medos intensos por vezes são projetados em nossos filhos. Se meus filhos conviverem com pessoas gays, vão achar isso normal e querer ser também, raciocina-se. 

Eis aí o que parece uma possibilidade concreta. Se você achar essa opção ou orientação normal, é possível que seu filho também não veja grande problema em uniões homoafetivas. Mas ninguém vai se tornar negro, ou lésbica, ou judeu por “contagio”. O mimetismo emocional que certos pais ou mães identificam em sua prole revela no mais das vezes dúvidas íntimas, suas. Quem aí viu Beleza Americana, com Kevin Spacey? Os rituais de depreciação e a busca de extermínio da alteridade é uma tentativa triste, fascista, de preservar a coerência de uma identidade que intimamente sabemos frágil. Nunca devemos esquecer que o fascismo junta sempre esses componentes, numa política das emoções fundada no ódio, na busca por uma pureza inconcebível – pois toda identidade é relacional – e numa política de extermínio: do outro/da outra que ameaça e de parte de nós mesmos que precisamos reprimir. Lembremos nesse ponto da tal cura gay. Esse é claramente um ritual de repressão do outro e de si próprio. No programa, lembramos da defesa que o deputado Jair Bolsonaro faz da pureza de sua família, contra negros, homossexuais, pobres etc. Vimos recentemente sobre que bases morais se estrutura essa pureza desejada ao termos acesso pela imprensa a uma troca de mensagens entre ele e seu filho. Aqui não se trata de fulanizar a discussão, apenas de ilustrá-la.

O outro, a outra, deveria sempre ser visto como uma possibilidade de crescimento, de aprendizado, caso possamos nos abrir sem medo de autodestruição ao seu contato, ao incomensurável de que o ele/ela é portador(a). A existência da diferença não deveria sufocar minha possibilidade de existir.

Falar contra as políticas fascistas de ódio, sempre facilmente mobilizáveis pelos partidos, pela mídia, sempre econômicas em seus investimentos, entretanto, não é apenas falar das práticas da direita. Tradicionalmente, o humanismo, a luta democráticas de diversos setores da esquerda nos fez portadores de um discurso antiautoritário, antifascista. Mas não existem puros onde uma estrutura social tão perversa se impõe, como é o caso brasileiro. Há alguns anos, o desespero de alguns setores da esquerda com respeito ao regime de exceção, contra a ditadura que se instalou em nosso país, levou-os a práticas políticas vanguardistas, descoladas das possibilidades políticas do país. A guerrilha não foi uma resposta autocrática ao autoritarismo vigente, no que pese todo o seu discurso humanista? Hoje segmentos dessa mesma esquerda, ao simplificarem seus adversários como “coxinhas”, não reduzem e empacotam seus adversários políticos exatamente como a direita o faz ao chamar quem não foi conivente com o golpe parlamentar de 2016 de “petralha”? O ódio que marcou a campanha eleitoral de 2014 foi apenas um fenômeno da direita? Creio que a luta crucial pela democracia e contra o ódio – mas não contra o conflito e a divergência – passa por refletirmos sobre os atalhos perigosos que uma indústria da opinião pública nos oferece. O ódio é um investimento libidinal econômico, mas é também empobrecedor e autodestrutivo.

De tarde, vi o programa pelo Facebook. Fiquei muito contente de ver o ambiente tranquilo e de muita escuta em que nossa conversa se desenrolou. Quase à noite, AL... me falou que eu sou coerente em minha resistência ao ódio também no campo pessoal. Fiquei mais feliz ainda, embora saiba que isso é sempre uma luta que acarreta muito sofrimento.

terça-feira, 21 de março de 2017

Responsabilidade Sociológica como Resistência à Reforma do Ensino Médio


                                                                                    
Por Tâmara de Oliveira – UFS

Este texto foi preparado para minha participação na mesa redonda “Ensino da Sociologia na Educação Básica”, do II Encontro de Ciências Sociais UFCG, sob o tema As Ciências Sociais no Brasil Contemporâneo: Lutas e Resistências, ocorrido em Sumé-PB de 08 a 10 de março de 2017. 

Agradeço à comissão organizadora pelo convite para participar deste Encontro como membro desta mesa redonda, muito especialmente à minha amiga querida profª Tânia Régia – que sugeriu meu nome – e à profª Maria Assumpção – que me recebeu tão calorosamente. A motivação para estar aqui vem da responsabilidade que sociólogos, cientistas sociais e professores universitários em geral precisam assumir diante da derrota de uma perspectiva educacional democrática e inclusiva, por causa de um reforma do ensino médio imposta goela abaixo por quem (des)governa o país após o impeachment delinquente de 2016. Começo citando o escritor argentino Ernesto Sábato e a jornalista brasileira Eliane Brum:
Vivemos um tempo em que o futuro parece estar dilapidado. Mas se o perigo tornou-se nosso destino comum, temos que responder perante aqueles que realmente reclamam nosso cuidado. (Sábato, 2000)
Os estudantes da escola pública estão no meio do caminho do projeto de poder de muita gente inescrupulosa. Com seus corpos franzinos. Com sua voz trêmula. Tão sós num momento em que adultos que poderiam estar ao seu lado têm dificuldades para compreender a gravidade do momento e assumir responsabilidades. (Brum, 2016)
Precisamos responder responsavelmente às meninas e meninos do Brasil que ocuparam escolas públicas para resistir a uma reforma do ensino médio de um governo de quadrilhas de malfeitores, cuja concepção da Educação nada mais exprime do que uma lógica hipercompetitiva, segregativa e multiplicadora de desigualdades. Lógica esta, por sua vez, articulada à (des)ordem de um capitalismo financeirista, tecnocrata e hiperacelerado, cujas consequências societárias frequentemente nos mergulham nesse sentimento de que o futuro está dilapidado – sobretudo o dos jovens. E acredito que podemos assumir tal responsabilidade, apesar da dilapidação de nossas expectativas de futuro, porque o ensino básico das ciências sociais e das humanidades em geral tem um potencial de resistência que Simone Meucci (2016), no último congresso da ANPOCS, chamou de humanismo sociológico e que se aproxima do que C. Wright Mills (2006) chamara de imaginação sociológica já no final dos anos 1950: o de um tipo de conhecimento que permite aos indivíduos aprenderem a articular suas dificuldades pessoais a problemas das estruturas sociais modernas e contemporâneas. 

Neste sentido, muitos estudos de caso ou pesquisas comparativas (Dubet, 2008; Moignard, 2007; Béaud, 2005; Amrani/Béaud, 2003; Charlot, 2002; van Zanten, 2001;) permitem identificar empiricamente certas consequências perversas da impregnação da lógica competitiva e flexível dos mercados, de um lado sobre sistemas, redes, instituições de ensino e, de outro lado, sobre trajetórias, representações e relações pessoais dos jovens contemporâneos aos estudos, aos saberes e à escola. Cito aqui duas: a) uma consequência macrossociológica, referindo-se à convergência temporal entre uma orientação democratizante de sistemas de ensino e um progressivo estreitamento das possibilidades de inserção não precária no mercado de trabalho para boa parte dos jovens escolarizados – tornando paradoxal o princípio de uma escola adequada às necessidades desse mercado; b) uma consequência microssociológica, referindo-se às trajetórias e consequentes relações práticas e simbólicas de jovens à sua escolarização, tais como: relação instrumental – que se exprime como interesse aos saberes por mero cálculo de sua rentabilidade para o mercado de trabalho (Dubet, 2008), atingindo sobretudo jovens cuja trajetória escolar é fortemente marcada pelo laço liberdade/competitividade como princípio naturalizante da educação (Oliveira, 2011; Oliveira, 2012); relação apática – que se exprime no fracasso, defasagem ou abandono escolar e que atinge sobretudo jovens inseridos em sistemas de ensino fortemente influenciados pelas desigualdades sociais, como o Brasil (Oliveira, 2013) ou a França (van Zanten, 2009); e relação violenta – se exprimindo como práticas violentas entre alunos ou contra escolas e seus atores responsáveis, também atingindo sobretudo jovens inseridos em sistemas de ensino fortemente influenciados pelas desigualdades sociais. 

Em dados referentes a uma atividade do Pibid/UFS-Ciências Sociais em 2015, quando elaboramos uma sequência didática a partir de entrevistas coletivas com alunos de escolas parceiras, a relação violenta à escola não apareceu na fala dos entrevistados; mas manifestou-se uma forte relação de ressentimento contra o que parte deles representa como descaso dos responsáveis – diretores, professores, coordenadores – para com alunos que não parecem ter chances claras de sucesso nos exames de ingresso ao ensino superior, em favor dos “queridinhos”, dos “excelentes” sobre quem, segundo os alunos ressentidos, toda a escola se concentra, deixando os demais por si mesmos. Também apareceram na fala dos alunos a relação apática e a instrumental (esta última predominante), bem como uma outra relação negativa aos estudos que possui adequação de sentido com a lógica hipercompetitiva de nosso sistema de ensino. Falo de uma relação de ansiedade, colocada por um grupo de alunos “excelentes” (que declaram ter uma relação positiva à escola e, alguns, um gosto dos saberes para além do cálculo instrumental), mas que se sentem demasiadamente pressionados para o sucesso nos exames, indicando que suas trajetórias escolares são marteladas noite e dia por uma equação representada como imperativo categórico sobre os jovens: estudar + arranjar emprego = poder de consumo = felicidade. 

O quadro que levantamos com os grupos de alunos cujas entrevistas foram analisadas apresenta um significativo mal-estar escolar como dificuldade pessoal da maioria dos entrevistados. Mal-estar que pode ser conjugado diretamente, na apatia dos mais fracos da competição, na ansiedade dos “excelentes” ou ainda no forte ressentimento dos que se sentem abandonados por uma escola em caça desenfreada por excelência competitiva, mas que também aparece conjugado indiretamente, quando os alunos exprimem suas expectativas sobre o mundo do trabalho. Com efeito, observamos que os dois tipos de alunos mais vulneráveis ao abandono ou ao fracasso escolar (os apáticos e os ressentidos), são também aqueles que preferem o espaço do trabalho ao espaço escolar, quando se trata de representar suas expectativas de autorrealização e concretização de sonhos de futuro, como se estudar fosse uma corveia inevitável que os alunos tivessem que pagar antes de alcançar seu verdadeiro espaço de realização – o trabalho. Assim, considerando-se que aprender foi representado, majoritariamente, como mero meio para realização de finalidade que não está na aquisição de saberes mas na empregabilidade que os estudos podem fornecer aos alunos, pode-se lançar a hipótese de que esses jovens naturalizam uma relação instrumental aos saberes e à escola porque essa é a principal relação que as estruturas e políticas educacionais lhes oferecem em sua trajetória escolar e que o mal-estar resultante disso faz com que eles transfiram para outro espaço, o do trabalho – deles menos conhecido, portanto mais facilmente idealizado – o locus de suas esperanças de vida futura. 

Mas esse mundo do trabalho, tão mais idealizado quanto mais for desconhecido, trata-se de mundo de acesso complicado – sobretudo para esses alunos mais vulneráveis ao abandono ou ao fracasso escolar, tendo em vista que o trabalho é cada vez mais precário para quem tem trajetória escolar negativa, como é o caso desses apáticos e ressentidos. De tal sorte que as expectativas desses jovens costumam ser frustradas; e o serão muito mais ainda, agora que o Brasil está sob dominação política, jurídica e econômica francamente contrária aos direitos sociais. O contexto onde se encontram só tem reforçado uma marca estrutural das trajetórias escolares na maioria das escolas públicas, qual seja a de um círculo vicioso entre uma experiência escolar vulnerável à apatia, ao ressentimento e ao fracasso, levando-os a desgostarem dos estudos e sonharem com um mundo do trabalho que, fechando o círculo vicioso, os exclui ou precariza justamente por causa de seu fracasso ou instabilidade escolar. Sendo assim, no meio dos escombros produzidos e a se produzir com a reforma do Ensino Médio e a emenda Constitucional dos gastos públicos, dois dos mais graves problemas dos jovens articulados às marcas estruturais de nosso sistema de ensino básico ruim, desigual e segregativo tendem a crescer: o da relação violenta à escola e, para parte dos seus alunos mais fracassados, o da inserção social negativa, via crime organizado (Moignard, 2007; Rolim, 2016). 

Ora, diante desse contexto societário precário e multiplicador de desigualdades e frustrações, nossos jovens estão precisando mais do que nunca de um conhecimento de tipo sociológico – onde as ciências sociais e sua reflexividade múltipla sobre o mundo social, em sua diversidade e complexidade, possam lhes oferecer recursos para melhor se situarem dentro das estruturas sociais e canalizarem essas frustrações de forma refletida e objetiva. Quando afirmo que um conhecimento científico-social é necessário aos jovens, não estou querendo dizer que nossos secundaristas não consigam perceber muitos dos danos dessas políticas educacionais pós-impeachment delinquente. Pelo contrário, penso que a rapidez e a violência com a qual esse (des)governo tem defendido medidas reforçadoras de uma lógica economicamente hiperliberal e moralmente conservadora no mundo da educação, têm sido melhor percebidas por parte dos próprios secundaristas, tendo em vista que eles protagonizaram a resistência mais criativa e mobilizadora, por isso mesmo mais reprimida, contra a MP 746, os projetos “Escola sem Partido” e a PEC 55. 

Mas tal percepção precisa ser ampliada e, acredito, pode e deve ser mediada pela contribuição que conhecimentos de pesquisas científico-sociais têm fornecido sobre o mundo da educação e do trabalho. Neste sentido, segundo a pesquisadora Nadya Guimarães (2011) – que se debruçou sobre dados brutos de pesquisa quantitativa feita em 2003 sobre jovens brasileiros - uma característica de países como o Brasil é que seus jovens são trabalhadores, tendo em vista que em torno de um terço deles ingressa no trabalho ainda criança ou adolescente e experimenta na própria pele a deterioração das chances de inclusão não-precária. Por isso,
os jovens brasileiros,(...), exprimem, com razão, um forte sentido de risco e vulnerabilidade em relação ao trabalho, elegendo-o como 2º maior problema (o primeiro foi segurança, com apenas 1% a mais de escolha). E representam o trabalho como necessidade, direito a ser suprido e mesmo como valor ético – valor da “dedicação ao trabalho” que, embora em bem menor proporção do que religiosidade e “temor a Deus”, também apareceu como valor principal de uma sociedade ideal, em equivalência com um valor geralmente tido como tipicamente juvenil, qual seja o da liberdade individual. (Oliveira, 2016, p. 8)
De tal sorte que não é surpreendente que esse forte sentimento de vulnerabilidade e risco em relação ao trabalho que já aparecia em 2003, quando se iniciava um ciclo tenso de esforços por uma educação mais efetivamente democrática e integral (Meucci, 2016), lhes pareça agora diretamente articulado a um cenário político e econômico que retira da educação os poucos recursos de acesso democrático ao ensino superior que foram criados pelos governos Lula e Dilma. Acesso que continuava difícil ou impossível para boa parte deles, mas que eles sabiam e sabem ser condição para a aquisição do trabalho tão sonhado. Mas se a percepção clara dos danos da reforma do ensino médio e da emenda dos gastos públicos, bem como as ocupações que se lhes resistiram, têm sido um aprendizado profundo para essas meninas e meninos do Brasil, articulando-os a formas recentes e horizontais de movimentos estudantis no Chile e na Argentina, a verdade é que eles estavam quase inteiramente sozinhos, como disse Eliane Brum. 

Vivemos um momento em que os setores da sociedade brasileira que discordam de uma visão de mundo economicamente hiperliberal, moralmente conservadora e politicamente cínica estão derrotados, divididos e confusos, consequentemente, com muita dificuldade de articulação mobilizadora. Enquanto isso, secundaristas apareceram como opositores mobilizados contra políticas educacionais reforçadoras da orientação mercadológica e segregativa. Isso significa que a lógica hipercompetitiva que anima as ações governamentais não tem seu correspondente completamente consolidado nas subjetividades juvenis, ou seja, nas motivações e representações dos secundaristas sobre sua educação escolar. Esses corpos, em geral franzinos porque ainda estão crescendo, como não nos deixa esquecer Brum, não são então ovelhas a guiar. Pelo contrário, em suas ocupações, acho, têm encarnado o conceito de atores sociais da já idosa teoria dos movimentos sociais de Alain Touraine (1978). Ou, melhor ainda, exprimiram-se como atores empíricos das descrições teórico-interpretativas que especialistas fazem de um novo ciclo de movimentos sociais que desabrocharam depois dos anos 2010: Primavera Árabe, Occupy Wall Street nos EUA, Indignados na Espanha, Revolta dos Pinguins no Chile, Nuits Debout na França, O Mal Educado na Argentina, etc. Todos eclodindo depois que o crash financeiro não parou mais de afligir sociedades mundo afora e indivíduos mundo adentro.

Por isso mesmo, os secundas das ocupações não podem ser ignorados por professores universitários, como se sua responsabilidade estivesse circunscrita ao ensino superior. Em primeiro lugar, porque se a repressão jurídico-policial, que também se incorporou nos espaços escolares durante as ocupações, tornar-se agressão regular sobre corpos de secundas resistentes à reforma, nós educadores, por mais enlutados e confusos que estejamos, devemos assumir o aumento de nossa responsabilidade diante da coragem que ess@s menin@s já demonstraram. Em segundo lugar, porque educadores não podem assistir passivamente à exposição de adolescentes como vítima sacrificial geracional de nossos desmazelos públicos, políticos, econômicos, éticos, etc. Enfim, porque as ocupações dos secundas já se tornaram passado ou invisíveis com a repressão e, mesmo em seu ápice, foram mais representativas em apenas dois estados do país – primeiro em São Paulo e depois no Paraná. 

Nossa responsabilidade não está em pretender guiar ou se confundir com as ocupações secundaristas. O que eles fazem é ação coletiva inspirada em movimentos sociais contemporâneos (de ocupação de espaços/bens públicos e com gestão horizontal). O que nós fazemos é ciência social e nossa responsabilidade é com a sustentação do acesso do conhecimento científico-social aos secundas, num contexto societário de retrocesso educacional instituído por quem tem poder de governo no Brasil. Responsabilidade que, de meu ponto de vista, se justifica porque a reflexividade sociológica e científico-social possibilita que atores de movimentos sociais reflitam objetiva e racionalmente sobre suas próprias ações, tendo potencial para evitar derivas como instrumentalização político-partidária (Rabenhorst, 2016), reivindicações abstratas com baixa possibilidade de legitimação social ou radicalizações emocionais – que terminam por legitimar socialmente a criminalização e a repressão jurídico-policial. 

Creio que sociólogos eticamente orientados por aquele humanismo sociológico de que nos fala Meucci, ou pela imaginação sociológica que defendia Mills, não terão dificuldades para assumir sua responsabilidade, pois como também se percebem como educadores, reconhecem o aumento drástico dos riscos crônicos a que jovens estudantes no Brasil estarão expostos em suas trajetórias escolares, quando a reforma do ensino médio e a emenda dos gastos públicos manifestarem suas consequências de médio e longo prazo. Mas mesmo aqueles que assumem uma ética estritamente profissional, ou seja sem compromisso com as implicações político-sociais do conhecimento das ciências sociais, também podem facilmente assumir sua responsabilidade, porque a presença de suas disciplinas no ensino médio é objetivamente pertinente para uma compreensão científica de relações instrumentais, apáticas ou violentas aos estudos – como a atividade do PIBID/UFS-Ciências Sociais revelou. Finalmente, para aqueles que seguem uma ética fundamentalmente estratégica (Habermas, 1997) em sua condição de cientistas sociais, resta ainda a responsabilidade com seu próprio ganha-pão: ter sido riscada da LDB de sua condição de disciplina obrigatória no ensino médio significa que a sociologia e demais ciências sociais perderão pertinência ainda maior no mercado do ensino, desvalorizando ainda mais as ciências sociais como opção dos jovens no ensino superior. 

Pessoalmente, depois de quatro anos coordenando o Pibid-Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe, deixei-o nas mãos de duas professoras experientes na formação de docentes para o ensino básico, profªs. Vilma S. Barbosa e Mônica C. S. Santana, mas minha experiência no Programa tornou-me convicta de que a inserção regular de universitários das ciências sociais na vida escolar do ensino básico é necessária. Sendo assim, embora nosso contexto sinistro esteja me afetando com tal intensidade que às vezes temo cair em melancolia mórbida, aquele velho apelo do motoqueiro sociólogo, Charles Wright Mills (2006), o apelo da imaginação sociológica, tem me retirado do abismo e me apontado caminhos de resistência. Elaborei um projeto de intervenção sociológica a ser submetido ao próximo edital do Pibix-UFS, estabelecendo parceria com a Secretaria de Educação de Sergipe (SEED), com o Pibid/UFS-ciências sociais e com o Cacam (Centro Acadêmico Caio Amado – ciências sociais). 

Este projeto objetiva uma ação regular integrando extensão e pesquisa, no qual alunos de escola pública comporão um grupo de levantamento e análise de suas dificuldades escolares, de confrontação dialógica com grupos de atores responsáveis por sua escolarização (professores, diretores, coordenadores e familiares) e de auto-análise sobre as divergências entre seu grupo e os grupos dos demais atores, numa rede de co-produção de conhecimento sobre sua própria experiência social no mundo escolar, bem como de reflexão dialógica para a solução das dificuldades escolares detectadas. Assim, numa prática processual de articulação entre as dificuldades dos alunos com os estudos e as estruturas educacionais da escola, sob a coordenação da equipe de intervenção sociológica (responsável por conduzir, restituir e discutir sobre as sessões de levantamento das dificuldades, de confrontação com outros tipos de atores e de auto-análise do grupo de alunos), esse projeto de intervenção sociológica pretende realizar-se como ação extensionista cujas atividades tragam impactos de curto, médio e longo prazo, no sentido da reconstrução de uma experiência escolar participativa, sustentada pelo diálogo constante entre alunos e demais atores escolares e em constante comunicação com a produção acadêmica sobre educação escolar. 

Soluções à instrumentalização, apatia, ansiedade e violência escolares não são fáceis nem rápidas, sobretudo em momentos de desmonte e deslegitimação institucional como o que vivemos. Todavia, mesmo sem a garantia de sua presença no ensino médio enquanto disciplina, as ciências sociais mantêm-se ambiguamente na LDB e devem permanecer como corpo vivo no espaço escolar. Corpo que parece dilapidado em seu futuro, mas que continua pulsando e responsável por aqueles que demandam nosso cuidado científico-social e ético : os jovens de todos os níveis de escolarização.

Referências

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VAN ZANTEN, A. Chosir son école. Stratégies familiales et médiations locales. Paris : PUF, 2009.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

“Velhos escombros sobre uma Base nova” ou “Requiem para uma Base insepulta”

"O Grito" - Edvard Munch, 1893.  


Por Simone Meucci (UFPR)


Calo-me, espero, decifro. 
As coisas talvez melhorem. 
São tão fortes as coisas! 

Mas eu não sou as coisas e me revolto. 
Tenho palavras em mim buscando canal 
são roucas e duras 
irritadas, enérgicas 
comprimidas há tanto tempo, 
perderam o sentido, apenas querem explodir. 

Carlos Drummond de Andrade, Nosso tempo, 1945 (In: A Rosa do Povo) 


Nesse período de instabilidade institucional em que políticas públicas estão sob ataque, quando fazemos uso da palavra, ficamos, na melhor das hipóteses, entre a explosão e a análise. Na pior, não conseguimos explodir nem analisar. Sinceramente minha tendência, nos últimos tempos, é para a explosão e, no esforço de contê-la a fim de alcançar alguma análise, tive receio, ao preparar essa comunicação, de que tudo o que eu teria para dizer aqui figurasse como uma espécie de escavação arqueológica num passado muito recente que já está, no entanto, coberto por muitos escombros. O curioso é que os escombros da superfície são muito mais velhos do que toda a matéria que sufocam. Minha fala seria então uma espécie particular de trabalho arqueológico já que se trata de buscar o novo encoberto pelo antigo. Por vezes, tenho a sensação de que todo o peso da história do país está sob os nossos ombros na forma de um presente que é sempre interrompido por um passado que nunca quer terminar. A gerontocracia de Temer não nega o que meus sentidos me sugerem.

No entanto, pelo menos a rigor, o objeto desta mesa - qual seja, a Base Nacional Curricular Comum - não é ainda propriamente um pretérito. É um documento que está suspenso em sua forma mais conhecida e que, apresentado sob uma nova forma, terá centralidade na conformação futura do Ensino Médio. Trata-se então de um documento sem presente que já é futuro. A metáfora arqueológica encontra aí o seu limite, pois estamos diante de um objeto intangível posto que não tem sequer uma presença e um presente; ao passo que sua condição de passado e futuro não está também certa. Ora, não se pode escavar o intangível, o ausente, o imaginário; como também não se pode prever o futuro sem um presente. 

Talvez nossa situação atual encontre um paralelo mais fiel com a de uma família que vê desaparecido um membro há muitos meses: a falta do cadáver não confirma a morte, ao mesmo tempo em que sua ausência, cada vez mais longa, não permite esperança. 

As últimas notícias sobre a Base vêm da Câmara dos Deputados e do Ministério da Educação. São de alguns meses atrás. Algumas notas antigas dão conta de que haverá definição da versão final da Base em novembro (estamos a pouco dias disso). Nesse sentido, por enquanto, temos apenas notícias velhas nos sites oficiais o que é quase como ver os posts antigos no Facebook de um sequestrado. 

Na Câmara, em maio, houve o seminário capitaneado pela Comissão de Educação que excluiu da sua programação os agentes responsáveis pela artesania do documento. No site do Ministério da Educação afirma-se, numa nota de junho, que a discussão sobre a Base Nacional Curricular Comum está numa nova fase, na qual seminários locais, organizados pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), sistematizam contribuições. Não obstante, a agenda pública de reuniões foi até 10 de agosto. Depois disso, um silêncio que apenas não foi absoluto devido à publicação da Medida Provisória 746 que reestrutura o Ensino Médio e que remete à Base desaparecida e aos estados alquebrados toda a ossatura curricular. 

De qualquer modo, considerando que a Medida Provisória prescreve apenas a obrigatoriedade da Língua Portuguesa e da Matemática é certo que o documento sequestrado sofrerá mutilações. Aguardamos preocupados. Numa postagem recente, para estudantes do Ensino Médio, diz-se que a previsão é de que até abril de 2017 a Base seja encaminhada ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para aprovação e que ciclos de debate e seminários envolvendo Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), escolas, professores e especialistas deverão ocorrer a partir de outubro deste ano.

Com efeito, a Medida Provisória é como se recebêssemos uma carta do sequestrador, acompanhada de alguns dedos e da orelha da vítima, anunciando seu retorno. O recado antecipou notícias de mutilações e apenas tornou mais eloquente o silêncio, mais desesperada a esperança.

Temos então uma tarefa muito difícil aqui que é a de debater um documento que foi subtraído do debate. Aliás, considerando que o documento era em si mesmo, um processo de discussão abrangente, podemos dizer que tivemos subtraído o próprio debate. Nesse caso já temos um cadáver para prantear e um morto para encantar. Vou então iniciar a elaboração do luto embora não pretenda me limitar a isso, pois quero também entender as causas da morte (não a causa do crime porque essa é impronunciável aqui - lembrando que eu optei pela análise e não pela explosão). Prometo então lidar com nosso morto e com a elaboração de sua morte de modo muito civilizado.

Como luto é também encantamento tomarei alguns poderes xamânicos da Ileizi Silva que, em artigo publicado em novembro de 2015 na Revista da Unisinos, nos diz que a Base foi, em que pese algumas dificuldades, produto e expressão de um aprendizado democrático que se manifestou através do amadurecimento da política curricular. Concordo com Ileizi: a Base foi um aprendizado maduro, que enfrentou e explicitou uma grande tensão entre a centralização e a autonomia dos currículos. Pretendeu ser um esforço de sistematização de documentos estaduais que, se externamente figurou como ação centralizadora, dentro do Ministério da Educação pretendeu enfrentar o protagonismo do INEP que induz nacionalmente conteúdos do Ensino Médio por meio do ENEM sem um consequente diálogo com a fortuna curricular dos estados.

Com efeito, o debate centralização/autonomia no Brasil é antigo e parece se explicitar de modo notável no campo educacional. Basta ver, para citar exemplos mais remotos, os dilemas dos educadores da República Velha em suas reformas estaduais impraticáveis, os debates parlamentares acerca da educação na Constituinte de 1934 e a longa jornada de discussões entre 1946 e 1961 para definição de uma lei de Diretrizes e Bases Nacional.

Essas tensões históricas no campo educacional entre a centralização e descentralização se articulam também a outros binômios, a saber: atraso/avanço e democracia/autoritarismo. Mas essa associação não se dá de modo fixo; ao contrário: a centralização é ora entendida como atraso e autoritarismo; ora como avanço e democracia em oposição a poderes regionais conservadores. Exemplos dessas associações móveis são muitos, mas vou me limitar a dois. Quem aqui não tomou a prova do ENEM de 2015 (com suas questões sobre gênero no bloco de humanas e sua redação com tema sobre violência contra a mulher) como uma resposta imperativa aos legisladores, que nos Planos de Educação municipais e estaduais, tinham recentemente abolido o termo “gênero”? Aqui o centralismo, que se expressa numa prova unificada, é visto como salvaguarda democrática contra o obscurantismo das lideranças locais. Em contrapartida, quem já não viu com certo mal-estar a política nacional de avaliação e distribuição de livros didáticos que não possibilita contemplar plenamente conteúdos regionais e que institui, através do Ministério, uma comissão de avaliadores supondo que isso não deve ser feito nas secretarias e nas escolas? Aqui, por sua vez, o centralismo pode ser visto como um obstáculo a certo ideal de democracia posto que não apenas limita a autonomia, mas também desconfia dela. 

Observem que o dilema é complexo. A mobilidade dos sentidos na combinação desses binômios centralização/descentralização, atraso/avanço, democracia/autoritarismo se expressa não apenas numa pendulação histórica das soluções políticas no Brasil, mas nas nossas posições contraditórias já que a própria realidade o é. Não há, por isso, opções simples para esse dilema tão insolúvel quanto incontornável. Enfrentá-lo é, pois, tarefa dolorosa e necessária no campo educacional brasileiro. 

Com efeito, nos últimos anos, vários esforços visaram a consolidação de um sistema educacional nacional com base em discussões sistemáticas com todos os setores da sociedade e entes da federação. Creio que o Plano Nacional da Educação é emblema disso, pois convocou gestores, profissionais da escola, estudantes e pais (além dos órgãos competentes) para a tarefa de elaboração de um sistema educacional capaz de superar alguns gargalos relativos à universalização e à qualificação do ensino em todos os níveis e modalidades (desde a pré-escola até a pós-graduação) - com especial atenção (nas metas 15 a 20) com a formação, carreira e remuneração dos docentes da Educação Básica. Apelou para a superação de uma visão fragmentada de gestão da própria rede, propondo um compromisso com uma concepção integrada, universalista e democrática, fazendo lembrar sobretudo dos compromissos com a Constituição de 1988. Infelizmente é bastante possível que o Plano Nacional de Educação desapareça num triângulo das bermudas formado pela PEC 241, pela MP 746 e pela PL 4567/16 que aprovou o fim da participação obrigatória da Petrobrás no pré-sal.

Nesse sentido, podemos dizer que os últimos governos federais tomaram para si a tarefa de organizar um pacto em direção a um Estado coordenador que também pressiona governos estaduais e municipais para suas obrigações constitucionais (claro que não foi tudo assim maravilhoso, mas me perdoem lembrando que o luto supõe esse encantamento).

A Base, como se sabe, é também parte desse contexto do PNE. Expressa, no nível do currículo escolar, os dilemas da relação entre os estados, municípios e a união. O Ministério da Educação assumiu, pois, a tarefa de propor uma definição de certos conteúdos comuns. Por isso, a Base é acusada de homogeneizadora, ainda que tenha pretendido um diálogo inédito com entes federados. Lembremos, nesse sentido, do notável esforço de examinar e incorporar o repertório curricular dos estados que resultou num impressionante banco de currículos que está disponível na plataforma online do Ministério.

Ocorre que esse esforço teve seu curso mais decisivo no momento mesmo em que o governo teve sua legitimidade solapada. Não sei se houve apenas uma infeliz sincronia entre o agravamento da crise política e o desenvolvimento dos trabalhos da Base ou se as tensões provocadas pelo governo aos estados no campo educacional, desde o PNE não é também ingrediente decisivo dessa crise. Por isso, muitas vezes, na mídia, a crítica à Base se confundiu com uma crítica ao PT, num debate social que frequentemente está embaralhando políticas de Estado e governo, ideologia e ciência, republicanismo com o que chamam de bolivarianismo. A Base, orientada por ideais republicanos, que nasce na crença do Estado coordenador e promotor da universalização, não tem condições de sustentação nesse ambiente, sobretudo depois que o Golpe se consumou.

Nesse sentido, podemos imaginar, numa nova metáfora, que a Base foi como um bebê (ainda que imperfeito, saudável e forte) que teve boa gestação, mas nasceu num momento em que o oxigênio estava escasso. Foi afastado dos pais e em coma, levado para alguma UTI obscura da qual, suspeitamos, sairá morto ou mutilado. As condições para artesania de uma política curricular baseada no debate e na pretensa universalidade do Estado se esgotaram. Isso se expressa num clima social orientado para a desqualificação generalizada da política e, na vertente religiosa, na condenação de tudo que não é a continuidade da família. A Base não enfrenta mais o debate da autonomia e descentralização, mas enfrenta agora inimigo maior que, na verdade, já estava à espreita: a vitória do privado sobre o público que se realiza através da usurpação do poder por determinados grupos para garantir o monopólio dos meios administrativos e legais.

A conciliação entre descentralização e centralização, entre poder central e poderes locais, assume então a sua pior forma no campo educacional. Tem agora a forma de um pacto apressado com governos estaduais para reforma do Ensino Médio na busca pela governabilidade ilegítima. Lembremos que o afastamento definitivo da Presidenta ocorreu em 31 de agosto e a medida foi apresentada menos de um mês depois, no dia 22 de setembro.

É assim que eu vejo a Medida Provisória: a farsa da flexibilidade que oculta a falta de opção e a privatização, a farsa da integralidade que, no entanto, oferece o mínimo de conteúdo, a farsa da formação profissional que não admite pensamento inteligente e, finalmente, a farsa da urgência pela “recuperação” da qualidade de ensino que esconde redução imediata de custos. Conforme nota do próprio MEC, uma vez aprovada a Medida Provisória, os estados poderão trabalhar a implementação da flexibilização dos currículos dos matriculados, já na segunda metade do ensino médio, a partir de 2017.

Nesse sentido, não há como não aguardar, numa nova versão da Base, descontinuidade com o desenho curricular que se consolidava pouco a pouco desde os anos de 2000 e que introduziu conteúdos inéditos no ambiente escolar, a saber...

em 2003 - História e cultura africana e afro-brasileira
em 2005 - Espanhol
e em 2008 - Sociologia e Filosofia, Musica, História e cultura afro-brasileira e indígena

Observemos que estas disciplinas e conteúdos introduziram, na escola, novas formas de expressão e interpretação do mundo. Os conteúdos escolares recentes, ao contemplar, por exemplo, a história e cultura indígena e afro brasileira, oferecem instrumentos através dos quais os estudantes negros e indígenas do ensino médio podem reconhecer a si próprios nas propriedades valorativas socialmente atuantes no currículo. Não por acaso, a área que mais sofreu mudanças foi a área de Humanas, além de Linguagens e Códigos. Foram áreas que se ampliaram notavelmente no momento mesmo em que o Ensino Médio foi considerado obrigação do Estado através da lei 12.061 de 2009. É, pois, essa abordagem inclusiva e plural que a Medida Provisória não assegura à escola.

A crítica à ampliação do repertório de linguagens, conhecimentos e valores dessa configuração curricular encontra seu argumento preferível na alegação de que há excesso de componentes curriculares que são a causa da baixa qualidade do ensino. Nesse sentido, cria-se a correlação espúria de que sociologia subtrai tempo da matemática, a filosofia de português, as artes das disciplinas técnicas-profissionais por exemplo. Quanto aos conteúdos propriamente ditos, a crítica tem a mesma lógica que não admite conciliação entre variedade de repertório e o aprendizado. No caso da história, isso foi notável logo após a publicação da primeira versão da Base, na celeuma entre a história clássica greco-romana e a dos povos ameríndios. Em muitos meios, o debate foi orientado na direção da crítica à ampliação do repertório que tem fundamentado os esforços de uma política curricular há muitos anos. Nesse sentido, a Base (tomada como epifenômeno da política curricular recente) foi, especialmente pelos setores que hoje se sentem representados nessa nova configuração de governo, condenada pela suas maiores virtudes.

Não há, portanto, muitas dúvidas de que a Medida Provisória e o sequestro da Base são, além do sepultamento do debate e do desrespeito ao protocolo democrático, uma modalidade de ataque aos direitos e às políticas públicas inclusivas. Um Estado mínimo corresponde a um currículo mínimo e a um reconhecimento mínimo.

E aí, diante desse quadro geral, eu me pergunto qual o lugar da sociologia numa política orientada nessa direção. Creio, sinceramente, que os pressupostos da sociologia não se acomodam aos princípios que norteiam esse projeto. E assim como eu acho que o ataque à política curricular recentemente consolidada é não apenas um ataque ao governo anterior, mas também ao Estado de Direito, creio que a desqualificação da sociologia em vários níveis no debate social é, rigorosamente, uma agressão à sociedade e a um certo pressuposto de humanismo. Então penso que estamos diante de dificuldades mais sérias do que a defesa desta ou daquela disciplina no Ensino Médio. Estamos vendo o assalto de um modelo societário ou, como diria Elias, estamos diante de um ciclo descivilizador que ocorre, ao meu ver, através de duas frentes que, apenas em princípio, parecem inconciliáveis: o liberalismo econômico e o fundamentalismo religioso (ambos têm o Estado como inimigo número um).

Se formos para o nível empírico e observarmos em particular o site da “Escola Sem Partido” (cuja capilaridade na sociedade e em partidos políticos da nova base de governo é ainda bastante perigosa - embora o parecer de inconstitucionalidade elaborado pelo STJ nos últimos dias nos tranquilize um pouco), vemos ali que três são os temas para o qual os delatores são mais sensíveis: a) a recusa do estatuto semelhante ao cristianismo às religiões afro-brasileiras; b) a negação da sexualidade (incluindo aí o tema do gênero) como um assunto escolar e c) a desqualificação da problematização da desigualdade social. Creio que, de certo modo (e vou a partir de agora argumentar nessa direção), a vigilância a esses três temas é uma amostra significativa das origens das dificuldades que a sociologia enfrenta na Escola Básica atualmente.

Observemos que os temas elencados manifestam, de um lado, a recusa a uma consciência objetiva da vida social e, de outro, o não reconhecimento de vínculos sociais que não aqueles que passam pela religião, pela determinação biológica e pelas trocas econômicas. Essa perspectiva não reconhece o ser humano senão numa tripla determinação: pelo deus cristão implacável, pela biologia e pelo mercado - que se apresentam como universais conciliados. Neste horizonte, não existe outra autoridade de base sobrenatural senão o cristianismo, não existe outro imperativo para a sexualidade senão o sexo biológico, não existe outro marcador social que não o mérito que atua como uma espécie de honra legítima estamentalmente distribuída. A família nuclear reconhecida por deus e forjada pelo sangue e o indivíduo orientado pelo trabalho e pelo interesse são os únicas unidades da vida social socialmente válidas. São porém anti-sociológicas: posto que são tão universais, não há alteridade nem desigualdade a ser inquirida e refletida.

Nesse sentido, o contraste entre essa perspectiva do mundo e o que vou chamar aqui de humanismo sociológico é gritante. Sabemos que a sociologia, desde seu início, sempre se confrontou com o pensamento religioso, com o determinismo biológico e com o pensamento liberal. A racionalização, a objetivação da vida social e o reconhecimento de que não há um indivíduo atômico são as operações intelectuais básicas da sociologia que, não raro, se expressaram também em compromissos com ideais republicanos. Para ficar apenas entre os fundadores, lembremos da empreitada de Durkheim para consolidação da III República na França ou da adesão de Weber ao projeto da recém fundada República de Weimar na Alemanha.

Não obstante, a base da sociologia é um humanismo difícil que não reconhece universais, que crê na responsabilidade humana ainda que acredite na incômoda objetividade do processo histórico que opõe criador e criatura. A sociologia admite essa complexidade acreditando, porém, que a consciência racional da vida social é um compromisso não apenas com o conhecimento, mas também com a preservação dos vínculos: as noções de exploração, racionalização e anomia dos clássicos me parecem ser expressão de uma preocupação engajada nesse aspecto. Por isso, entendo que a sociologia é uma reflexão a um só tempo tributária, crítica e compromissada com a modernidade.

Eu disse tudo isso para lembrar que no Brasil, a sociologia ressurgiu há 8 anos no currículo das escolas em meio ao processo de redemocratização, quando a Constituição Federal fazia 20 anos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 12 anos. Ao longo da década de 1990, apareceu como disciplina optativa aqui e ali e depois se consolidou nacionalmente junto com a filosofia, evocando sobretudo seu vínculo para o preparo da cidadania. Há, com efeito, na sociologia em especial, mas não apenas nela, uma relação muito nítida entre ciência e democracia que o texto da Base reforça.

Perscrutando os conteúdos da Base, observamos que a sociologia pretende, na Educação Básica, auxiliar o jovem tanto na compreensão dos processos de integração social quanto de subjetivação fazendo reconhecer igualmente as formas de organização social e os mecanismos identitários, as estratégias e as formas de reconhecimento nos processos de interação. Para isso, propõem que se conheça os vínculos sociais, as representações simbólicas e as formas institucionais num consórcio entre a sociologia e os conhecimentos da antropologia e da ciência política.

É portanto uma ciência escolar muito nova no Brasil. Não tem precedente histórico porque no ensino secundário dos anos de 1930 era um conhecimento das elites que foi reclamada para atuar como um braço do Estado autoritário considerado qualificado para fundar a sociedade atomizada (uma espécie de repercussão prática da tese de Oliveira Viana). Daí que seu conteúdo foi orientado para ideais de civismo e civilidade. Atualmente, a sociologia encontra dificuldades para ser reconhecida em sua dimensão científica e republicana, cuja potência ela finalmente contém: ironicamente é agora considerada uma ideologia que atua como braço de um Estado desqualificado para dividir e desorganizar a vida social fundada em unidades anti-sociológicas.

Nesse sentido, creio que a condenação de um ideal de consciência racional do mundo é também a condenação de uma dos melhores fundamentos da modernidade: a reflexividade vigilante para o sentido da vida e da ação humana em meio a complexificação inexorável da vida social. Essa preocupação que a sociologia tem para oferecer e esse valor que ela pode compartilhar não podem, ao meu ver, ser negados à juventude.

Nesse sentido, finalmente, compreendo o que Bourdieu, nos anos de 1990, nos dizia: a sociologia é um esporte de combate. Admitindo isso, teremos como tarefa (a ser realizada com força e calma) restituir o valor da palavra e dizer que não defendemos a sociologia tão simplesmente, mas empenhamos nossos esforços em, através da sociologia, defender vínculos societários que não estão baseados na exclusão e no interesse. Um pugilismo urgente num mundo dividido entre indignos e indignados (como nos disse um dia Galeano).

Bairro dos Aflitos, Recife, 23 de outubro de 2016. 

Texto apresentado na 40ª ANPOCS na mesa 16 - “O debate em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no contexto das políticas curriculares brasileiras” organizada pela Dr. Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins (USP) com a participação de Ileizi Luciana Fiorelli Silva (UEL) e Julia Polessa Maçaira (UFRJ).

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Um artesanato de iniciação à docência: mundo do trabalho e representações juvenis



Por Tâmara de Oliveira (DCS-UFS/PIBID-CAPES)

Introdução

Estava eu me deliciando numa dessas reuniões departamentais adoradas pelos professores de todo o mundo (rsss), quando uma das organizadoras do I Seminário Nacional de Sociologia da UFS (abril de 2016), professora Fernanda Petrarca, convidou-me para compor uma mesa redonda tematizando as mudanças no mundo do trabalho e o ofício do sociólogo. Pensei e disse: o que danado eu poderia dizer sobre isso se não sou especialista do mundo do trabalho? Mas a ideia de Fernanda era a de que, enquanto coordenadora do Pibid-Ciências Sociais, eu estou envolvida com um programa de certa forma articulado à abertura de um mercado de trabalho que durante décadas esteve fechado para as ciências sociais: o do ensino básico, com mais um retorno da sociologia à grade curricular. Aí eu fui atingida num ponto sensível, porque minha experiência no Pibid (que vai se encerrar em agosto de 2016) tem me apaixonado pelo potencial de uma sociologia ao mesmo tempo artesanal e pública voltada à atuação da licenciatura no ensino médio. Mas minha fala não tratou diretamente de relações diretas entre mundo do trabalho e ensino da sociologia; ela abordou o mundo do trabalho contemporâneo e os desafios que este coloca ao ofício de sociólogo, a partir de uma atividade que desenvolvi com bolsistas de iniciação do Pibid/UFS-Ciências Sociais, junto a alunos de duas escolas parceiras – por isso oscilarei entre “eu” e “nós” neste texto. Essa atividade foi a primeira parte de uma sequência didática que não pudemos realizar completamente, mas seus resultados preliminares trouxeram indicações significativas das representações (Moscovici, 2004) dos alunos envolvidos, em torno do trabalho e dos estudos. Este texto é uma versão reduzida e modificada do que preparei para orientar minha fala na mesa redonda.

A etapa realizada foi a de construção de dados com/dos próprios alunos, tematizando sua experiência juvenil, sua relação aos estudos, ao trabalho, à família e às expectativas de futuro; inspirou-se no chamado método de intervenção sociológica em sessões fechadas (Touraine, 1978; Dubet, 2007) e usou a técnica da entrevista coletiva. Falarei aqui dos resultados da turma do Colégio Estadual Atheneu Sergipense – dividida em três grupos pelos próprios alunos. A análise de conteúdo das respostas de cada grupo desenhou três idealtipos de orientações simbólicas sobre esses assuntos : a visão dos incomodados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação tensa com a escola e majoritariamente estratégica aos estudos; a visão dos desafinados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação de desgosto com os estudos e apática com a escola; e a visão dos afinados da escola – cujo traço idealtípico é o de uma relação ao mesmo tempo motivada e ansiosa aos estudos.

I- Relação instrumental aos estudos e valor subjetivo do trabalho: inversão de valores sociologicamente compreensível

Para que se compreenda as implicações sociológicas mais importantes das diferenças idealtípicas acima apontadas, vou reproduzir aqui parte do que não tive tempo de falar na mesa redonda, mas que está num texto em co-autoria que será apresentado no X Colóquio Internacional “Educação e Contemporaneidade” (EDUCON), em setembro de 2016 na UFS. Quando analisamos o que os três grupos disseram sobre a importância dos estudos e do trabalho para a realização de seus sonhos de vida futura, ficamos inicialmente intrigados com os resultados comparativos entre os dois temas. Esperávamos que a relação entre trabalho/sonhos de vida fosse muito mais instrumental do que subjetivamente valorativa, já que o trabalho é um espaço imediatamente ligado ao mercado e à aquisição de condições materiais de vida, enquanto os estudos são um espaço imediatamente ligado ao conhecimento, à abertura dos indivíduos ao mundo que os cerca, logo, a priori articulados a uma valorização existencial. Mas a verdade é que apenas num dos três grupos (os afinados da escola) o trabalho apareceu majoritariamente nessa função periférica de meio necessário para a realização de sonhos e de si mesmo, deslocando para outras atividades seu espaço de realização pessoal ou de satisfação com a vida. Para os dois outros grupos (incomodados e desafinados da escola) o trabalho apareceu majoritariamente como atividade diretamente articulada à identidade existencial: aquisição de experiência, reconhecimento e satisfação com a vida.

Quando se tratou dos estudos, mais uma vez os afinados da escola revelaram-se minoritários: foram eles que exprimiram com mais intensidade o gosto dos saberes, da abertura ao mundo que estudar pode proporcionar à vida juvenil. Além disso, enquanto os dois grupos problemáticos com os estudos ou com a escola tendem a identificar profissão, trabalho e emprego, os afinados tendem a distinguir profissão de trabalho e emprego, a primeira sendo representada como formação em curso superior, ou seja como continuação dos estudos, confirmando sua preferência valorativa dos estudos em detrimento do trabalho. Mas o fato é que na maioria da turma predominou uma relação problemática em sua relação aos estudos ou à escola, sobretudo instrumental, mas também de desgosto apático (nos desafinados), além de uma forte expressão de ressentimento para com a escola (nos incomodados).

Esse contraste entre valorização existencial do trabalho e valorização meramente instrumental dos estudos na maioria da fala dos alunos contraria a tese de Claus Off (1989, apud Guimarães, 2011) sobre os efeitos das mudanças do mundo do trabalho, tese esta que fez furor na virada do século XX para o XXI na sociologia do trabalho, segundo a qual, por ter se tornado objetivamente disforme, o trabalho também teria se tornado subjetivamente periférico, não valorizado na construção subjetiva das identidades. Vejamos como Nadya Guimarães (2011) sintetiza os impactos dessa tese sobre estudiosos do mundo do trabalho, interpretando a relação contemporânea dos jovens ao trabalho:

[Uma] sorte de “passagem pré-programada” dá lugar mais recentemente a uma situação de “inserção aleatória”(...): rompe-se a equiparação entre trabalho e emprego remunerado(...); cai por terra o modelo do trabalhador permanente e contratado a tempo completo (multiplicando-se as formas alternativas de trabalho, como tempo parcial, auto-emprego, trabalho no domicílio, entre outros); e saem de cena os contratos de longa duração, em que o vínculo empregatício “casa” o trabalhador a um mesmo empregador por toda (ou quase toda) a sua vida produtiva (de sorte que o emprego deixa de ser uma salvaguarda para o desemprego. (Guimarães, (2011, p. 155)

(...)Ante a intensidade com que foram tocados pela incerteza e pela transitoriedade dos vínculos, que faz do desemprego juvenil o principal componente do recente fenômeno do “desemprego de massa”, os jovens teriam reagido antecipando uma mutação cultural que estaria (para o conjunto da sociedade) apenas prenunciada como horizonte. Antecipando o fim da centralidade do trabalho, assumiram a condição de “exilados do trabalho”, tal como a qualifica Gorz [1997], antes mesmo que esta se impusesse de modo socialmente mais amplo.(Guimarães, 2011[2005], pp. 156/157)

Mas outras tendências da sociologia do trabalho, com pesquisas em apoio, não aceitaram essa tese. Antes de tudo porque ela idealizaria o trabalho juvenil entre a segunda guerra mundial e o final dos anos 1970 como uma “passagem pré-programada”, quando na verdade,

(...)nem tudo eram flores para os jovens. De fato, a incerteza que hoje contamina as trajetórias profissionais dos trabalhadores “maduros” era destacada, desde então, como uma característica dos percursos ditos “juvenis”, tanto nos momentos de auge como nos momentos de retração cíclica da oferta de empregos. Isso porque, na sua condição de “recém-chegados” ao mercado de trabalho, via de regra eximidos da responsabilidade de chefia do grupo familiar (e da função de provedor que a ela se associa), adolescentes e jovens expressavam uma grande rotatividade (…), em sua busca do “emprego certo”(...) - Guimarães, 2011, p. 156

Além disso, se é válido afirmar que “transformações no trabalho põem em cheque antigos valores, ao tempo em que reestruturam novas formas de produzir bens e serviços, esse movimento não é unidirecionado, nem por seu conteúdo, nem por seus atores” (Guimarães, 2011, p. 171). Melhor dizendo, não há correspondência precisa entre um trabalho “objetivamente disforme” e uma valorização “subjetivamente periférica”, porque as mudanças são complexas e porque a situação dos jovens diante do mercado de trabalho, além de historicamente problemática, tem a marca da heterogeneidade.

Neste sentido, nossos dados exploratórios e qualitativos vão na mesma direção dos dados de pesquisas empíricas no Brasil e em países com estrutura demográfica e de mercado de trabalho próximos (como o México ou a Argentina), os quais revelam que nossos jovens, longe de se exilarem do trabalho, produzem novos e diferentes sentidos subjetivos para essa atividade. Em pesquisa nacional feita em 2003 (Abramo/Branco, 2011[2005]), os jovens brasileiros, segundo Nadya Guimarães (2011), exprimem, com razão, um forte sentido de risco e vulnerabilidade em relação ao trabalho, elegendo-o como 2º maior problema social (o primeiro foi segurança, com apenas 1% a mais de escolha). E representam o trabalho como necessidade, direito a ser suprido e mesmo como valor ético da primeira modernidade - valor da “dedicação ao trabalho” que, embora em bem menor proporção do que “religiosidade” e “temor a Deus”, também apareceu como valor principal numa sociedade ideal, em equivalência com um valor geralmente tido como tipicamente juvenil, qual seja o da liberdade individual.

Seguindo ainda Nadya A. Guimarães (2011), que se debruçou sobre os dados brutos da pesquisa de 2003 acima citada, a peculiaridade objetiva dos jovens de um país como o Brasil é que se trata de uma juventude trabalhadora: em torno de 33% ingressava no trabalho ainda criança ou adolescente, experimentando diretamente as transformações no mundo do trabalho e a deterioração de suas chances de inclusão positiva (estão majoritariamente no trabalho informal e recebendo até dois salários mínimos; 1/3 deles ultrapassa 8 horas de jornada). Em tal contexto objetivo, se as mudanças do mundo do trabalho põem em questão a ética da primeira modernidade, isso não vai implicar em descentralização do sentido do trabalho para os jovens, mas, pelo contrário, resultar numa pluralidade de significados, entre os quais: provedor de necessidade; direito a ser suprido; independência; crescimento; autorrealização; e até mesmo o da ética moderna clássica (dedicação ao trabalho como valor numa sociedade ideal). E é verdade que, se do ponto de vista objetivo a maioria dos alunos do Atheneu entrevistados ainda não está na PEA, os sentidos do trabalho que eles exprimiram estão em consonância com os que apareceram nessa pesquisa nacional e também na pesquisa de Bernard Charlot (2006) sobre jovens sergipanos, realizada a pouca distância dessa pesquisa nacional. Sobretudo os mais articulados à construção da própria identidade e da autorrealização – experiência, reconhecimento e satisfação com a vida –, apesar da distância de mais de 10 anos entre as pesquisas quantitativas nacional e estadual e a nossa entrevista coletiva.

Por outro lado, o sistema escolar brasileiro é uma variável importante da condição de vulnerabilidade e risco que os jovens brasileiros vivem e representam em relação ao trabalho, tendo em vista que as classes popular e média instável sofrem de uma “intensa deterioração das condições do mercado de trabalho para trabalhadores sem níveis educacionais adequados” (Guimarães, 2011, p. 169). A reprovação, a evasão e o atraso escolar continuam a atingi-los fortemente, sob um modelo demasiadamente desigual e segregativo de oportunidades escolares. Ora, o público do Atheneu é predominantemente de classe média instável ou popular e os 3 grupos compostos espontaneamente pela turma entrevistada revelou que aqueles que têm mais problemas com os estudos e/ou a escola (os incomodados e os desafinados) são os mesmos que investem seus sonhos e expectativas de vida futura mais no trabalho do que na continuação dos estudos.

Foram esses dois grupos que imprimiram, na análise da entrevista coletiva da turma, a marca de uma continuidade negativa em sua relação aos estudos (da instrumental à de desgosto) ou à escola (a de apatia, mas sobretudo a de ressentimento diante do que eles representam como descaso de seus responsáveis pelos alunos não excelentes, ou seja, não claramente competitivos no ENEM). Mas mesmo os afinados da escola, dançando animadinhos a melodia dos saberes escolares, da pressão por excelência, do imperativo categórico do ENEM e de outras cobranças competitivas o dia inteiro, num prédio improvisado, calorento e com comida ruim (segundo eles mesmos), muitas vezes falaram em cansaço e revelaram a marca de uma ansiedade escolar que chegou a se manifestar como ceticismo agudo na fala de uma aluna.

Então articulemos: em suas falas sobre estudos e escola, os incomodados e os desafinados são os que mais exprimem problemas com os estudos ou com a escola – e isso é um indicativo de que são vulneráveis à reprovação, ao atraso ou à evasão escolares; embora tenhamos falhado na coleta de dados complementares que confirmassem nossa observação, temos indícios de observação direta que nos levam a lançar a hipótese de que os grupos do Atheneu espontaneamente compostos revelam um corte de classe socieconômica: os afinados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições socioeconômicas superiores à média do público do Atheneu; os incomodados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições de classe média instável; os desafinados provavelmente sobrerrepresentados por alunos com condições de classe popular. Sendo assim, por origem de classe e por relações negativas aos estudos e à escola, são os incomodados e os desafinados os que terão mais dificuldades de inserção não precária no mercado de trabalho, embora seja no trabalho que eles prefiram apostar mais suas fichas de reconhecimento e satisfação com a vida.

Talvez esses dois grupos tenham essa preferência simplesmente porque experimentam concretamente os problemas de uma escola submetida a uma lógica competitiva, reprodutiva e produtiva de desigualdades (Bourdieu/Passeron, 1970; Dubet, 2008; van Zanten, 2009), enquanto têm uma relação apenas abstrata com o mercado de trabalho, podendo mais facilmente transferir para esse espaço desconhecido suas expectativas e sonhos de futuro – já que sua experiência escolar não os ajuda a sonhar com o prolongamento dos estudos como caminho de satisfação com a vida. Por outro lado, os afinados parecem menos vulneráveis a reprovação, atraso ou evasão escolares porque têm uma relação positiva aos estudos e à escola (e provavelmente também por origem social), mas são vulneráveis a uma ansiedade prejudicial ao longo percurso de escolarização que eles pretendem perfazer, posto que tal ansiedade seja articulada a uma lógica escolar competitiva que seleciona/elimina alunos sob a falsa “boa consciência” de buscar excelência e de ter que se sustentar na competição entre escolas por aprovações no ENEM e outros vestibulares.

Os resultados da etapa da sequência didática realizada remeteram-me a algo que já escrevi num capítulo de livro aguardando publicação, afirmando que o processo fragmentado, multidimensional e acelerado de socialização das novas gerações as colocam diante de uma espécie de imperativo categórico: o da equação estudar + arranjar emprego = poder consumir muito enquanto orientação e finalidade da vida. Mas tal equação torna-se cada vez mais difícil de ser resolvida para aqueles que não são herdeiros de muito boas condições socioeconômicas, ou seja, para a maioria dos jovens contemporâneos. Por isso é sociologicamente compreensível que eles desenvolvam uma relação à escola ou aos estudos instrumental ou ansiosa (sobretudo os que têm chances reais ou imaginárias de conseguir emprego qualificado e alcançar um nível de consumo idealizado), apática ou violenta (sobretudo os que se percebem sem chance nessa competição cega por diplomas, empregos e nível de consumo).

II- Sobre artesanato sociológico: como o ensino médio da sociologia pode contribuir para aumentar o gosto dos saberes

Experimentamos assim como a abertura de nossa imaginação sociológica a uma abordagem do ensino da sociologia como artesanato intelectual pode ser útil. Combinamos dialogicamente (Levine, 1997) diferentes autores que sustentam a indissociabilidade entre aprendizado teórico e aprendizado prático, aplicando tal combinação a uma iniciação à docência que privilegie uma formação integrando ensino e pesquisa. Os autores são Charles Wright Mills ([1957]2006) e sua noção de artesanato intelectual (apêndice de The sociological imagination), Richard Sennet e sua noção de habilidade artesanal (The craftsman ([2008]2013), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron com sua noção de pedagogia racional (Les héritiers (1964). Entendemos a habilidade artesanal como “impulso humano básico e permanente, o desejo de [fazer] um trabalho benfeito por si mesmo” (Sennet, 2013). Impulso este que, se para Wright Mills teria desaparecido da maior parte das atividades humanas no século XX e sobrevivia na imaginação sociológica, para Sennet sobrevive em múltiplas e variadas atividades e continua capaz de atuar contra formas destrutivas do trabalho, da educação, do uso dos recursos naturais e das organizações institucionais em geral, no século XXI. Assim fazendo, podemos apresentar o caminho artesanal que estamos traçando a partir dos argumentos de Molénat sobre a posição de Bourdieu e Passeron a respeito do ensino universitário:

A relação pedagógica entre os estudantes e o professor se funda muito mais no carisma deste último, em sua virtuosidade e em sua capacidade a ser um “guru” do que em seus talentos de pedagogo. Segundo P. Bourdieu e J.-C. Passeron, um professor que se obrigasse a ensinar as técnicas do trabalho intelectual (definição de conceitos, elementos de retórica e de lógica, maneira de construir um fichamento e de definir uma bibliografia), “abdicaria de sua autoridade de 'mestre' para aparecer aos olhos dos estudantes com a imagem de professor de escola básica perdido no ensino superior”. (Molénat, 2014, pp. 54-55)

Nosso caminho artesanal implicou então em se afastar do papel de professor-guru e se aproximar do papel de professor pedagogo, para identificar as dificuldades de aprendizagem de bolsistas e trabalhar com elas, ao mesmo tempo em que os introduzimos em atividades nas escolas partindo do levantamento das representações sociais dos alunos sobre o eixo temático do projeto. Num indo-e-vindo entre dimensões prazerosas, subjetivas e dialógicas do aprender (como a entrevista coletiva que tanto motivou os bolsistas do Pibid e os alunos das escolas parceiras) e dimensões exigentes e cansativas do mesmo aprender (como estudo e produção de textos sobre os mesmos temas das entrevistas), buscamos fazê-los compreender que estudar ou aprender a ensinar não se realizam sem dificuldades, erros, recuo e paciência, mas que podem trazer satisfações para além da orientação competitiva, desigual e segregativa da experiência estudantil que eles vivem.

Se reorientamos nossas atividades a partir de uma articulação entre as visões de artesanato intelectual de Mills ou Sennet e da defesa de uma pedagogia racional de Bourdieu e Passeron, foi porque, sintetizadas, elas se exprimem como um apelo motivante e prático a um ensino científico-social existencialmente engajado. Queremos dizer com isso que nossa prática de formação dos bolsistas no eixo temático do subprojeto busca articular vida pessoal e trabalho de estudante, buscando incutir satisfação com um trabalho benfeito de aprender a ensinar, e que, tendo em vista que objetiva formar professores, ou seja trabalhadores sociais educacionais, não pode prescindir de posições e proposições reflexivas, empiricamente fundamentadas, sobre o estado econômico, político e sociocultural do mundo onde vivemos.

Sendo assim, não é verdade que a sociologia pode ser relegada a conteúdo transversal de outras disciplinas; nem a filosofia. Pelo contrário, elas e demais ciências sociais, diante da perplexidade com que se observa mudanças hiper-aceleradas e destrutivas de laços sociais e do meio ambiente, profundamente articuladas às mudanças no mundo do trabalho, têm em sua tradição muitos recursos teórico-metodológicos para que a experiência de aprender deixe os limites problemáticos de uma relação apática, ansiosa, instrumental ou violenta à escola e contribua para que as novas gerações recuperem o gosto e a necessidade tão intrinsecamente humanos de articular seus problemas pessoais às estruturas sociais. Buscando combinar formação artesanal à docência com atuação artesanal nas escolas parceiras do Pibid, acreditamos que o ofício do sociólogo é potencialmente capaz de aumentar as possibilidades dos jovens do ensino médio e da licenciatura a desenvolverem uma reflexividade empiricamente fundamentada diante de seus problemas estudantis e de suas chances futuras no mercado de trabalho. Todavia, pensamos que "mudanças estáveis e duradouras são contínuas e lentas, pacientes e persistentes" (Freire Costa in NOVAES, R/VANNUCHI,P. (org.). Juventude e Sociedade. Trabalho, Educação, Cultura e Participação. São Paulo, Editora Perseu Abramo/Instituto Cidadania, 2003/2011). E neste sentido, as ameaças intermitentes que o Pibid tem sofrido desde 2015, assim como o assustador projeto de Escola Sem Partido (que mal dissimula seu caráter de ideologia conservadora e opressora das diversidades humana e científica), agridem violentamente a potencialidade de atuação da sociologia, e das ciências sociais e humanas em geral, diante das mudanças do mundo do trabalho e dos problemas graves de nosso sistema de ensino. Mais que nunca precisamos continuar artesãos da sociologia, porque navegar é preciso.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, P. / PASSERON, J.-C. La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris : Les Editions de Minuit, 1970.
________________________________ Les héritiers. Paris: Éditions de Minuit, 1964.
CHARLOT, B. Juventudes Sergipanas. Relatório de Pesquisa. Aracaju: J. Andrade, 2006.
DUBET, F. « Déscolariser la société. Rencontre avec François Dubet. » In: Sciences Humaines, nº 199. Paris: déc. 2008. Disponível em : http://www.scienceshumaines.com/descolariser-la-societe_fr_23000.html.
__________ L 'expérience sociologique. Paris : La Découverte, 2007.
__________ L'école des chances. Qu'est-ce qu'une école juste ? Paris : Éditions du Seuil et La République des Idées, 2004.
GUIMARÃES, N. A. “Trabalho: uma categoria-chave no imaginário juvenil?” In: ABRAMO, H. W./BRANCO, P. P. M. Retratos da juventude brasileira. Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo/Instituto da Cidadania, 2005/2011.
LEVINE, D. Visões da tradição sociológica. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1997.
MOLÉNAT, X. « Les héritiers, cinquante ans après. » In : Sciences Humaines. Mensuel – Nª 264. Paris : Novembre, 2014.
MOSCOVICI, S. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis : Vozes, 2004.
MILLS, C. W. L'imagination sociologique. Paris : Éditions La Découverte, 2006.
SENNET, R. O Artífice. Rio de Janeiro/São Paulo : Editora Record, 2013.
TOURAINE. A. La voix et le regard. Paris : Éditions du Seuil, 1978.
VAN ZANTEN, A. Choisir son école. Stratégies familiales et méditations locales. Paris : PUF, 2009.

domingo, 31 de julho de 2016

Cristianismo e Alinhamentos Étnicos



 Por Renan Springer de Freitas - UFMG

A crença de que o Cristianismo foi a religião que tornou diferenças étnicas irrelevantes ao substituir, através do trabalho missionário do apóstolo Paulo, os “laços de sangue” valorizados pelo Judaísmo por uma fraternidade universal baseada na “fé em Cristo” se manteve inabalada no interior do pensamento cristão até muito recentemente. Uma boa síntese dessa crença está na afirmação do teólogo protestante Albert Ritschl, em 1875, de que “o reino de Deus consiste daqueles que acreditam em Cristo, na medida em que tratam uns aos outros com amor, sem considerar diferenças de sexo, posição social, ou raça, criando, dessa forma, uma comunhão baseada na atitude moral (...)”[1]

Ninguém em nossos dias confunde “laços de sangue” com laços baseados em uma fé comum. Damos como certo que “sangue” é algo que se herda e “fé” é algo que se adquire. Entretanto, por mais óbvia que se nos afigure, a distinção entre “herdar” e “adquirir” um atributo não fazia muito sentido no mundo mediterrâneo do apóstolo Paulo. Nesse mundo a fé não era, como modernamente tendemos a pensar, uma crença abstrata a ser internalizada, ou uma disposição mental a ser adquirida, mas um traço de caráter que se herda de algum ancestral. No mundo de Paulo se acreditava que os traços de caráter eram atributos hereditários. Herda-se do pai a honestidade ou a desonestidade, do mesmo modo que se herda o nariz grande ou pequeno, ou uma casa ou um jumento. Um raciocínio semelhante valia para a fé. A única diferença é que, no caso da fé, havia um ancestral particularmente talhado para legá-la: o patriarca Abrahão. Para Paulo, somente um verdadeiro descendente de Abrahão (como, aliás, ele próprio acreditava ser) poderia herdar a fé redentora de Cristo. Isso trazia um problema: quem não era judeu não era descendente de Abrahão. Como tornar a fé acessível a esse gentio, ou não-descendente? A resposta era: através do batismo. O batismo fazia de um gentio um descendente (espiritual) de Abrahão, assegurando-lhe, com isso, o direito à herança do patriarca, outrora restrito aos descendentes carnais. Através do batismo se estabelecia, então, uma nova linhagem, para ser mais preciso, uma nova “raça abrahâmica”, ao lado da que já existia. A que já existia, isto é, os judeus, era constituída pelos descendentes carnais; a que veio a existir, isto é, os cristãos, era constituída pelos descendentes “espirituais”. O fato de os cristãos não serem descendentes carnais, mas, apenas, “espirituais”, não altera o fato de se perceberem como uma raça, uma nova raça, a “raça cristã”, porque, no mundo de Paulo, a “carne” e o “espírito” não eram vistos como antitéticos. O próprio “espírito” (o pneuma) era visto como uma entidade material transmitida de pai para filho.[2] Por mais paradoxal que pareça, ele fazia parte do corpo. Um herdeiro “espiritual” era também, nesse sentido, um herdeiro carnal e tinha, por essa razão, os mesmos direitos que este último.

Na medida em que os cristãos, eles próprios, podem ser considerados como o resultado de um alinhamento étnico estabelecido através da oferta de um ancestral comum para aqueles que ainda não dispunham de um, não é de todo surpreendente que o Cristianismo tenha, ele próprio, nas mais variadas circunstâncias históricas, estabelecido alinhamentos étnicos conectando a fé ao sangue de uma forma como nenhuma outra religião mundial o fez.

Com efeito, foi o Cristianismo católico que estabeleceu, pela primeira vez, alinhamentos étnicos na Espanha medieval. Como ensina o historiador Leon Poliakov, depois que os visigodos invadiram a Espanha, o Arcebispo Isidoro de Sevilha se encarregou de emparentar os iberos invadidos e os visigodos invasores. Ele o fez tornando os iberos descendentes de Tubal e os visigodos descendentes de Magog, ambos filhos de Jafé. Nosso bom arcebispo não deixava de conceder a superioridade à raça dos visigodos, mas, por meio dos “laços de sangue” agora estabelecidos, os conquistados puderam ser promovidos à dignidade de seus “primos”.[3] De forma semelhante, foi com a Reforma Protestante que se ofereceu aos alemães, pela primeira vez, um ancestral bíblico comum: Asquenaz, filho de Gômer, filho de Jafé, filho de Noé.[4] E, justamente na França racionalista do séc. XVII, na qual as “genealogias circunstanciadas” eram uma coisa do passado, “a nação e a humanidade se encontravam dissociadas”, e os teólogos e filósofos contentavam-se em “saudar com uma barretada, de passagem, Jafé, o antepassado comum da Europa”,[5] havia ainda congregações católicas que conservavam o interesse por genealogias bíblicas, pois é por meio delas que julgavam ser possível mostrar aos franceses seu “verdadeiro berço”. Assim, por volta do ano de 1700, o beneditino bretão Dom Pezron recorreu aos capítulos IX e X do Gênesis e aos escritos dos Padres da Igreja e de Flávio Josefo para mostrar aos franceses que eles eram na verdade gauleses, uma vez que descendiam todos de Gômer, filho de Jafé.[6]

Se, por um lado, o cristianismo conectou a fé ao sangue oferecendo, em circunstâncias históricas as mais variadas, uma ancestralidade bíblica aos mais diferentes povos, por outro ele o fez ao criar e implementar uma ideologia racial que grassou na Europa ibérica por três séculos, a saber, a ideologia da “pureza do sangue”. Com efeito, na época da “Reconquista cristã” (consumada com a queda de Granada, em 1492), os teólogos espanhóis desenvolveram a doutrina de que nem todo sangue é compatível com a fé cristã.[7] De acordo com esta doutrina, a rejeição de Cristo pelos judeus e mouros do passado era uma mácula de sangue que se transmitia hereditariamente. Essa mácula, ou “nota”, era tão devastadora que anulava o efeito regenerador do batismo. Dessa forma, seria inútil um judeu ou mouro se converter ao cristianismo pelo batismo porque sua “nota” o impedia de se tornar um verdadeiro cristão – como corolário, impedia também seus descendentes.[8] Assim, em 1391 teve início uma conversão em massa de judeus ao cristianismo na Espanha e, passados cem anos, os descendentes batizados desses judeus convertidos não podiam ser considerados verdadeiros cristãos porque eram portadores do “defeito de sangue”. Eram, então, chamados “conversos”. Dessa forma, uma conversão em massa, longe de conduzir a uma “fraternidade universal”, acabou por estabelecer duas etnias, os cristãos-velhos, de puro sangue, e os “conversos” (posteriormente chamados, em Portugal, de “cristãos-novos”), de sangue impuro.

Isso dito, é importante realçar que embora a ideologia da “pureza do sangue” tenha se originado na Espanha, ela foi institucionalizada pelo Vaticano. Um breve do papa Paulo IV (1555-59), de 1558, determinava que o ingresso na vida eclesiástica fosse condicionado à “pureza do sangue”, a ser averiguada mediante “diligências de gênere”. Quatro pontificados consecutivos - Gregório XIII (1572-85), Sisto V (1585-90), Clemente VIII (1592-1605) e Paulo V (1605-21) - confirmaram esta necessidade de “pureza do sangue”.[9] O papa Sisto V, por exemplo, ordenava, através do breve “Dudum Charissimi”, de 25 de janeiro de 1588, que nenhum cristão-novo fosse promovido em qualquer benefício eclesiástico.[10] Não há mérito em multiplicar exemplos. Importa, porém, salientar, que as “diligências de gênere” foram uma prática habitual por cerca de três séculos, as quais inicialmente limitaram-se a investigar os clérigos dos cabidos catedralícios (clérigos de “sangue impuro”, isto é, descendentes de judeus ou mouros, não poderiam ser aceitos na carreira eclesiástica) mas, com o passar do tempo, esta prática “estendeu-se celeremente ao clero regular e secular, às ordens militares, câmaras municipais, confrarias, irmandades, magistratura etc.”[11]

Na verdade, o fato de o Cristianismo ter promovido alinhamentos étnicos e uma ideologia racial, como também conferido a genealogias bíblicas uma assombrosa relevância social (a ponto de exumar corpos de conversos para queimá-los),[12] só é surpreendente na medida em que se pressupõe que o sentido do trabalho missionário do apóstolo Paulo era a abolição de barreiras étnicas de modo a imprimir no Cristianismo a marca indelével do universalismo. Se o Cristianismo pode mesmo, em nossos dias, ostentar essa marca, isso nada tem a ver com o trabalho missionário de Paulo. Curiosamente, enquanto os próprios teólogos cristãos têm crescentemente rejeitado a ideia de que o cristianismo nasceu para tornar diferenças étnicas socialmente irrelevantes, muitos sociólogos respeitáveis continuam subscrevendo essa ideia de forma acrítica, na esteira do pensamento seminal de Max Weber.


[1] A. Ritschl, Instruction in the Christian Religion (1875)..
[2] Veja-se Caroline J. Hodge, If son, then heirs,  A study of kinship and ethnicity in the letters of Paul, Nova York: Oxford University Press, 2007,  pp. 74 a 76. 
[3] L. Poliakov, O Mito Ariano, São Paulo:Perspectiva [1971]1974, p. 68.
[4] Esta genealogia está em Gênesis 10:1-3.
[5] L. Poliakov, op. cit., p. 15.
[6] Idem.ibid.
[7] É possível que esses teólogos tenham se inspirado no Cânone 65, do IV Concílio de Toledo, realizado em 633. De acordo com este cânone, redigido pelo já citado Arcebispo Isidoro de Sevilha (560-636), reputado como o autor mais influente da Europa pré-carolíngia, tanto os judeus quanto os cristãos de origem judaica deveriam ser proibidos de exercer cargos públicos. Veja-se Albert, Bat-Shelva, “Isidore of Seville: his attitude towards Judaism and his impact on early medieval Canon Law”, The Jewish Quarterly Review, LXXX, 3-4, p. 207-20, 1990.
[8] L. Poliakov, O Mito Ariano, citado, p. 5.
[9] José Gonçalves Salvador, Cristãos-Novos - Jesuítas e Inquisição, São Paulo:Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 4.
[10] Idem. p. 5
[11] E. C. de Mello, O Nome e o Sangue, citado, p. 28. Tanto no Brasil quanto em Portugal e na Espanha as “diligências de gênere” se deram desta forma: no início restringiam-se ao clero e, depois, se expandiram para outros setores.
[12] Cabe registrar que em 1448, antes mesmo da implementação dos chamados “estatutos da pureza de sangue”, nos três autos-de-fé ocorridos em Toledo, mais de cem corpos de conversos foram exumados e queimados. Em um único dia, em 25 de Maio de 1490, foram exumados e queimados os corpos de mais de quatrocentos conversos. Veja-se J. Friedman, “Jewish Conversion, the Spanish Pure Blood Laws and Reformation: A Revisionist View of Racial and Religious Anti-Semitism”, Sixteenth Century Journal, 18(1):3-30, 1987.