sábado, 22 de setembro de 2007

Da Subordinação das Mulheres: Auguste Comte, John Stuart Mill e o Empirismo


Woman in Chains, por HeatherB, a partir da obra de Bouguereau:
"Retrato de Gabrielle Cot"

O século XIX testemunhou a ruptura intelectual de dois gigantes das ciências sociais, Auguste Comte e John Stuart Mill, com base na discordância política sobre um tema considerado por Comte como a base mais elementar de todas as hierarquias sociais: a subordinação das mulheres. Profundo admirador do positivismo comteano, Mill, então um jovem estudante, foi a Paris participar do Curso de Filosofia Positiva, dando início, em 1841, a uma correspondência na qual temas de interesse mútuo eram discutidos. Esta correspondência foi editada e publicada por Kenneth Thompson em 1976 (Auguste Comte: The foundation of Sociology. Londres: Nelson).

Carta vai, carta vem e, cerca de dois anos mais tarde, tornou-se claro que a posição dos dois pensadores era inconciliável: para Comte, a desigualdade entre os sexos era inata e desejável, devendo ser mantida; para Mill, culturalmente condicionada, indesejável e deveria ser mudada. O que parecia um debate temático marginal revelou divergências metodológicas profundas, o que explica, em parte a influência limitada do positivismo na Inglaterra, assim como o abismo existente entre o empirismo britânico e o francês.

Como ocorre em todo debate político, as posições dos dois pensadores baseavam-se em uma série de pressupostos metodológicos que iam se tornando mais explícitos à medida que a correspondência prosseguia. O conservadorismo político de Comte justifica-se por uma série desses pressupostos, sendo que o principal refere-se ao princípio do que ele chamava de “estática social”, isto é, a investigação das leis de ação e reação das diferentes partes do sistema social, de acordo com o qual “deve sempre haver uma harmonia espontânea entre o todo e as partes de um sistema social, cujos elementos devem inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, combinar-se de um modo inteiramente conforme sua natureza” (citado em Thompson, 1976: 91). Para o autor, se pudesse ser demonstrado empiricamente, via leis de sucessão (ligadas ao princípio de “dinâmica social”), que dois fatores sempre se relacionaram de uma forma específica, então, de um ponto de vista da co-existência desses fatores, sua relação era necessária e imutável. Além de apoiar-se na dinâmica social, ou no estudo das “leis de sucessão”, as leis de co-existência entre os sexos foi ainda fortalecida com base na “comparação com animais inferiores” (um sub-método do método comparativo de Comte). Isto porque, para ele, a subordinação das mulheres, que supostamente ocorria em todas as sociedades, deveria apontar para uma inferioridade orgânica, algo que ele supostamente confirma ao estabelecer que em todo o reino animal o sexo feminino é anatômica e fisiologicamente constituído em uma espécie de “infância radical”. Este conjunto de supostas leis biológicas e sociais forneceu a base para a sua afirmação, numa carta escrita a Mill em 5 outubro de 1843, de que “qualquer pessoa que seriamente goste das mulheres como algo além de brinquedinhos deliciosos” ainda não chegou ao estágio positivo ou científico de pensamento, um estágio que, no seu Curso de Filosofia Positiva era ainda chamado de “viril”. Nesta mesma carta, Comte (Ibid: 203) enumera as conseqüências do que ele considerava a “inferioridade natural” das mulheres:

Sua característica incapacidade para a abstração e o argumento, a quase completa impossibilidade de deixar de lado inspirações passionais em operações racionais [e que] devem continuar indefinidamente a impedi-las de alcançar qualquer nível elevado na organização das coisas humanas, não apenas na ciência e na filosofia ..., mas também na vida estética e mesmo na vida prática ... [Elas] são radicalmente incapazes de qualquer governo mesmo das questões domésticas, a menos que sejam de natureza secundária. Em nenhuma esfera elas são aptas à direção ou execução; elas são essencialmente capazes apenas de dar conselhos e modificar os planos de outras pessoas ...

A perspectiva essencialista e, por que não dizer, misógina, de Comte apóia-se em uma concepção de lei causal de base empirista (humeana) segundo a qual leis causais referem-se a “conjunções constantes entre eventos”, ou seja, a eventos que ocorrem juntos, um depois do outro, numa ordem determinada (sempre que uma causa A ocorre, segue-se um efeito B). Assim, um determinado processo ou estado de coisas deveria ser explicado por leis de sucessão ou por leis de similitude que basicamente afirmam que “as coisas são assim porque sempre foram assim”. Em outros termos, as mulheres são consideradas inferiores porque se observa este fenômeno em todas sociedades (e na maioria das espécies conhecidas). De acordo com a perspectiva de Comte, uma regularidade deste tipo seria suficiente para estabelecer a existência de uma lei, e leis só são passíveis de modificação “em termos de sua velocidade” (Ibid: 97), pois não se pode ir contra a natureza das coisas. Neste sentido, a “inferioridade” das mulheres é concebida como algo fixo, imutável e, devido à sua concepção de estática social (a tal “harmonia” entre as partes de um todo), desejável. No que diz respeito à concepção de explicação de Comte, causas são concebidas como condições suficientes e necessárias para a ocorrência de um dado efeito (se A, então B; ou, se mulher, então inferior).

A discordância de Mill em relação às idéias de Comte sobre as mulheres assume, inicialmente, a forma de divergências sobre a doutrina da estática social. Para Mill, dada a independência relativa da estática social em relação à história, a passagem desta doutrina para o estágio positivo demandaria o desenvolvimento de uma ciência subsidiária, a etologia, ou a “teoria acerca da influência das várias circunstâncias externas, sociais ou individuais, sobre a formação do caráter moral e intelectual” (citado em Thomson, 1976: 206). Para Mill, portanto, a menor habilidade das mulheres em atividades intelectuais como a ciência só poderia ser explicada ao se levar em conta “as diferenças de educação e posição social” entre homens e mulheres, pois,

quer as mulheres sejam inferiores ou não em termos de sua capacidade de esforço intelectual prolongado, não há dúvidas de que não há nada em sua educação que seja arranjado de forma a desenvolver nelas essa capacidade ... [Para] a grande maioria das mulheres, a obsessão perpétua com os cuidados diários da vida doméstica, algo que distrai a mente sem ocupá-la, não provê qualquer trabalho intelectual que demande isolamento físico ou mesmo uma aplicação contínua (Ibid: 200)

Para Mill, o que está implícito na idéia de que não há necessidade na inferioridade das mulheres é uma concepção não determinista de lei causal segundo a qual as causas de um evento ou de um fenômeno podem ser contrariadas por outras causas, impedindo assim sua efetivação. Em uma passagem do seu The Logic of the Moral Sciences de 1872 (Londres: Duckworth, 1987 [1872]: 26), que poderia ter sido escrita em resposta ao determinismo fatalista de Comte, ele afirma que “a doutrina da necessidade ... está muito distante do fatalismo... Um fatalista acredita, ou meio que acredita (já que ninguém é um fatalista consistente), não apenas que o que quer que esteja prestes a ocorrer será o resultado infalível das causas que o produzem ... mas, além disso, que não faz sentido lutar contra elas”.

Embora Mill ainda parta de uma concepção humeana de lei como conjunção constante entre eventos, a ocorrência da causa é considerada uma condição necessária, porém não suficiente (como em Comte) para a ocorrência de um determinado efeito. Daí a ausência de determinismo (ou fatalismo, como ele prefere). O que está implícito em sua “explicação” para a “inferioridade das mulheres” seria a ausência de condições (como educação e participação das mulheres na vida política) que possibilitassem o pleno desenvolvimento de suas capacidades. A importância das considerações metodológicas de Mill pode então ser interpretada como apontando para um conjunto de práticas discriminatórias que necessitam ser explicadas (e modificadas).

Para os empiristas, explicar significa, na maioria dos casos, estabelecer uma conjunção constante entre dois eventos: um evento A precede e é regularmente seguido de B, e nós compreendemos A como, de alguma forma não especificada, gerando B. A questão que fica sem resposta, e que é central à própria noção de explicação, é como A pode gerar B, como as causas têm a capacidade de gerar determinado estado de coisas. Em outros termos, explicar significa compreender o que ocorre num nível mais profundo do que o nível dos fenômenos e dos eventos, descobrir uma combinação dos mecanismos por meio dos quais determinados eventos ocorrem ou não ocorrem. Por exemplo, não se pode explicar por que as mulheres menstruam simplesmente estabelecendo uma conjunção constante entre o corpo feminino e a menstruação (se mulher, então, geralmente menstruação), mas deve-se inventar ou imaginar uma história causal que diga respeito às capacidades ou poderes da estrutura genética, hormonal, anatômica, psico-social etc relativos às mulheres e sua interação com o ambiente para, posteriormente, checar-se a adequação empírica desta história causal.

Diferentemente de Comte, no entanto, para Mill, o problema concreto era o de saber como uma determinada organização social (que restringia as mulheres à dimensão doméstica da vida social) gerava um grupo de pessoas “intelectual e moralmente inferior”, o que quer que isso significasse para ele. De maneira significativa, esta questão era esclarecedora e lançava luz em hipóteses novas, ou pelo menos não triviais para a maioria das pessoas e permitia transcender, em larga medida, a visão estreita de explicação causal dos empiristas. Nos dias de hoje, a questão é consideravelmente mais ampla e, em vez de uma suposta inferioridade, o problema é melhor colocado em termos de desigualdades sistematicamente reproduzidas, como menor renda média em relação aos homens para todos os níveis de escolaridade considerados (em especial para os mais altos); maior sujeição à violência doméstica, ao assédio sexual e a diversas formas de discriminação direta; dupla jornada de trabalho, menor participação em cargos políticos e no mercado de trabalho primário etc. Com a complexificação (e melhor especificação) dos problemas, as respostas requeridas também tornaram-se consideravelmente mais complexas e uma explicação baseada na conjunção constante entre eventos tem sido corretamente questionada por todas as tradições pós-positivistas e pós-empiristas, especialmente aquelas que, de uma maneira ou de outra, sofreram a influência da chamada “virada lingüística” nas ciências sociais. De forma geral, o que se tem considerado é que “explicações” desse tipo não esclarecem nada acerca das questões que realmente importam para as ciências sociais (como as que dizem respeito ao caráter eminentemente significativo e/ou socialmente construído dos fenômenos sociais), são triviais, ou são manifestamente falsas (dado que tais fenômenos não obedecem a regularidades como as que podem ser observadas no domínio natural).

De fato, assim como ocorre com diversos dos escritos substantivos de Durkheim, muitos dos princípios metodológicos defendidos por esses autores não puderam ser aplicados aos seus próprios estudos. Ao tentar explicar a relação entre uma determinada forma de organização social e a submissão de um determinado grupo de pessoas, Mill introduz uma série de pressupostos filosóficos e políticos relativos à moral à justiça, assim como outros relativos às motivações e aos significados (não diretamente acessíveis à observação empírica), que possibilitam uma explicação mais ampla do fenômeno do que seria possível a partir de uma explicação causal em moldes empiristas puros. Claro que, em certo sentido, o mesmo se aplica a Comte: afirmar a “infância radical” das fêmeas de todas as espécies dificilmente consiste na descrição de um fato empírico. No entanto, ainda que tanto Comte quanto Mill demonstrem a impossibilidade da aplicação consistente da concepção empirista de causa defendida por eles, diferentemente do primeiro, Mill tenta, ainda que de forma incipiente, demonstrar o porquê da conjunção mulheres, por um lado, e “inferioridade” racional e moral, por outro. Na verdade, ele redefine a questão, que passa a ser colocada em termos da sujeição das mulheres aos homens. Como ele afirma em A Sujeição das Mulheres (São Paulo: Ed. Escala, 2006: 31-32) escrito por ele e Harriet Taylor (e só assinado por ele!),

Todas as causas, sociais e naturais, se unem para tornar improvável uma revolta coletiva das mulheres contra o poder dos homens. Elas estão em uma posição tão diferente de todas as outras classes subjugadas, que seus senhores exigem algo mais do que seu serviço efetivo. Os homens não querem unicamente a obediência das mulheres; eles querem seus sentimentos. Todos os homens, exceto os mais brutais, desejam encontrar na mulher mais próxima deles, não uma escrava conquistada à força, mas uma escrava voluntária; não uma simples escrava, mas a favorita. Portanto, eles colocam tudo o que for possível em prática para escravizar suas mentes. Os senhores de todos os outros escravos contam com o medo para manter a obediência: ou o medo deles mesmos, ou o medo religioso. Os senhores de mulheres queriam mais do que simples obediência e eles usavam a força da educação para atingir seus propósitos.
Simples conjunção constante entre eventos? No way, José...

A ser revisado.

Cynthia Hamlin

9 comentários:

Anônimo disse...

Tô me sentindo ludibriada por Mill agora. Não sabia que Harriet Taylor tinha escrito com ele.

Le Cazzo disse...

Gostei muito do post. Jonatas

Le Cazzo disse...

Fique não, Leila. Mill era um cara legal! Embora Harriet Taylor tenha escrito outros livros com Mill, inclusive os Princípios de Economia Política, foi o ex-marido de Taylor quem, preocupado com o escândalo de não apenas ter uma (ex)mulher intelectual, mas uma que vivia em pecado com outro homem depois da separação, proibiu qualquer referência à contribuição dela nas obras de Mill. Embora o casal tenha se submetido às ameaças do John Taylor, Mill fez questão de se referir à participação intelectual da companheira em sua biografia. Mais tarde, quando o ex-marido morreu e os dois puderam, finalmente, se casar, Harriet continuou a relutar em colocar seu nome nas obras conjuntas dos dois, inclusive as que ela havia escrito a maior parte, para evitar um ostracismo ainda maior do que os dois já viviam. Eram tempos difícies para as mulheres que pretendiam alguma produção intelectual ou participação na esfera pública. Se hoje isso nos é garantido é, em parte, devido a J.S. Mill, um militante ativo que lutou pelo voto feminino, contra a violência de gênero e a favor da educação feminina.

Além disso, ele parece ter vivido uma grande história de amor, ao contrário de Comte, que passou a vida seintindo um amor platônico por Clotilde de Vaux, como só ia acontecer com um homem que acreditava que as mulheres são a fonte de todo o mal do mundo e que qualquer contato físico "macula" a sua amada. Pior para ele...

Cynthia

Anônimo disse...

Ótimo post.

Anônimo disse...

Estou lendo a biografia de Mill agora...é bem verdade, Cynthia, ele era um cara legal!
Por favor, me diz uma coisa...como é que "A sujeição das Mulheres" foi recebido na época? Porque além de ter vivido uma grande história de amor(e aí, pobre do Comte...), Mill escreve como um "romântico", sempre falando da felicidade, da moral, da igualdade, da liberdade, sentimentos, etc. Confesso que tenho muito mais prazer em lê-lo do que a outros livros menos apaixonados ou mais árduos e técnicos na escrita, mas ele foi levado a sério e obteve repercussão no seu tempo? Se de um lado, Mill deu excelentes contribuições para a causa feminista, (exemplo da sua própria vida e militância) o mesmo não conseguiu aprovar seu projeto de voto político extensivo às mulheres no parlamento. Então a obra dele (e de Taylor), foi vista como um construto teórico, nova abordagem sociológica etc. ou como algo idealista?

Le Cazzo disse...

Leila,

Tanto Mill não foi levado muito a sério em seus argumentos que não conseguiu com que não conseguiu aprovar o voto feminino no parlamento inglês. Mas isso que você chama de estilo "romântico" (no sentido usual do termo) é, na verdade, uma orientação utilitarista e liberal, cuja ênfase está na maioria dos elementos que você lista (liberdade, felicidade de todos etc). Quanto à dimensão moral que estava misturada em tudo isso, é preciso lembrar que, em primeiro lugar, o utilitarismo (especialmente o de Bentham) é uma doutrina moral; em segundo lugar, as ciências sociais, tal como as conhecemos hoje, ainda não existiam. Mill era um economista político, um sistema de pensamento que faz nascer tanto a economia ("sua filha bastarda e amoral", nas palavras de Thomas Leithauser), quanto a psicologia e, em algum grau, a sociologia. Neste sentido, o que hoje concebemos como a dimensão política, moral, psicológica e social eram todas levadas em consideração nos escritos desses pensadores.

No que se refere ao livro A Sujeição das Mulheres, ele não vai influenciar a sociologia (esse não foi um tema sociológico relevante até cerca dos anos de 1960), mas influencia o que se conhece hoje como feminismo liberal, de certa forma, parte das teorias sociológicas ligadas a gênero.

De certa forma, eu compartilho com a sua preferência por clássicos como este: pelo menos em termos de linguagem e de escopo de preocupação, eles são bem mais agradáveis de ler...

Cynthia

Anônimo disse...

não gostei porque a gente preocura uma coisa é vocês mandam outra
vai se fude porra

" Pensante " disse...

Olá, profª Cynthia,

meu nome é Sérgio, sou mestrando em sociologia pela Federal de Alagoas e um leitor assíduo deste blog... Só registrando a felicidade de poder ter acesso a esse rico conteúdo, ótimo post!!!
Abs

Cynthia disse...

Pois seja bem-vindo, Sérgio! Fico feliz que o post lhe tenha sido útil.

Abraço