domingo, 13 de abril de 2008

Borges não joga dados com o universo: uma crítica anti-pós da ironia vazia



Valha-me Deus, eu deveria estar escrevendo outra coisa, mas tem hora que a gente não resiste a uma provocação! O que eu pretendo aqui é dar continuidade às minhas reflexões sobre humor, agora por um viés mais sociológico do que filosófico. A idéia é mostrar algumas mudanças na produção contemporânea do humor e sugerir que, embora abra a possibilidade e uma maior reflexividade social e individual, ela tem caminhado para uma noção de ironia vazia que reflete uma visão de mundo extremamente cínica, apolítica e desencantada. A sociologia será utilizada aqui de acordo com a imagem memorável de Peter Berger: ela nos permite confrontar uma visão precária da realidade e os sociólogos aparecem como os bobos da corte que, de acordo com a tradição, seguravam um espelho e mostravam às pessoas aquilo que elas realmente eram, sem justificativas ou ideologias pomposas (Zijderveld, 1983).

Ao enfatizar a irracionalidade, mecanização dos corpos (Bergson, 1993 [1900]), a distorção das faces, o feio e o ridículo (Aristóteles, 1959), o cômico foi não apenas cuidadosamente interditado a categorias sociais nas quais se valoriza o controle e a racionalidade, o belo e a modéstia, como é o caso de alguns grupos profissionais, no primeiro caso, e das mulheres, no segundo, mas também dirigido a essas categorias como expressões de poder dominação.

Até recentemente, diversas categorias profissionais eram instadas a excluir o humor de suas práticas, considerado inadequado diante da seriedade de seus propósitos. Assim, em sintonia com o consenso hegemônico da era da ética da produção taylorista, Claude Hopkins, pioneiro da racionalização do conhecimento publicitário, condenava a utilização do humor em qualquer tipo de publicidade, argumentando que “o negócio do cliente é uma coisa séria para ser vendida por um palhaço”. Nos últimos anos, entretanto, é possível observar uma grande quantidade de anúncios que fazem uso do humor, inclusive de um humor mordaz, que ridiculariza o produto, o consumidor, ou ambos. Diversos profissionais da área argumentam que o humor é um método praticamente infalível para se chamar a atenção dos consumidores. Muitos estudos contemporâneos confirmam este fato – embora os artigos publicados nesta área sejam praticamente unânimes em alertar os publicitários para os riscos envolvidos nesta estratégia, já que eles ignoram solenemente os mecanismos envolvidos na produção do humor.

Um processo semelhante vem ocorrendo na área de saúde. É bem documentado na literatura sociológica o uso do humor entre profissionais desta área, seja como forma de se lidar com situações de estresse, seja como forma de se delimitar o status dos diferentes atores envolvidos em uma organização. Em um estudo clássico sobre o riso entre o staff de um hospital psiquiátrico, Lewis Coser (1960) mostra que a distribuição do humor e do riso obedece a um padrão hierárquico rígido. Com base na observação de uma série de reuniões de trabalho, Coser contabiliza uma média de 7,5 chistes proferidos por psiquiatras, 5,5 por residentes e meros 0,7 por outros profissionais de saúde, os chamados para-médicos. Apesar disso, o caráter de racionalidade, seriedade e sobriedade conferido às profissões de saúde fazia com que o uso do humor fosse excluído das relações entre aqueles profissionais e os pacientes e, muito embora reconhecidamente utilizado entre os membros do staff, não era deliberadamente utilizado como parte de sua socialização ou treinamento (Moran e Massam, 1997; Koller, 1988). Nos últimos anos, no entanto, o uso do humor vem sendo enfatizado não apenas como um importante elemento de socialização profissional para aqueles envolvidos em atividades consideradas especialmente estressantes (como os serviços de emergência), mas também seu uso terapêutico em pacientes (Kuperman e Slavutzky, 2005).

A hierarquia que estrutura as relações de gênero também está relativamente bem documentada nos estudos sobre humor, embora não necessariamente de uma perspectiva sociológica. Robert Provine, um psicólogo evolucionário que tem dedicado parte substancial de suas pesquisas ao estudo do riso, identificou padrões muito interessantes de distribuição social do riso entre homens e mulheres. Com base na observação da conversação de 1.200 díades em ambientes públicos, Provine e seus assistentes de pesquisa mostraram que as mulheres riam mais do que os homens, quer estivessem falando, quer estivessem ouvindo. Mais especificamente, “as mulheres que falam riem 127% mais do que sua audiência masculina. Em contraste com isto, homens que falam riem cerca de 7% menos do que sua audiência feminina. Nem homens nem mulheres riem tanto de mulheres que falam quanto riem de homens que falam” (Provine, 1996: 41). Como o próprio Provine sugere, o trabalho das comediantes não é fácil, independentemente do fato de sua audiência ser masculina ou feminina.

As descobertas de Provine são compatíveis com aquilo que Helga Hotthoff (2003) denomina de “dupla marginalização” do humor feminino. No passado, as mulheres eram com freqüência o objeto, mas não o sujeito do humor, especialmente em público. Havia uma discriminação objetiva em relação ao lado “bobo” ou bufão das mulheres, em parte, associada à falta de controle do corpo. A própria noção de feminilidade estava intimamente ligada a valores como a beleza, a modéstia, a decência, e o riso dirigido a elas era, como autores de Platão a Bergson, passando por Aristóteles e Hobbes, enfatizam, o riso do dominador sobre o dominado. Além do controle social exercido por meio desta política do corpo, da ética e da estética que efetivamente reduzia a participação humorística das mulheres na esfera pública, essas atividades eram tornadas invisíveis à medida que elas eram ainda excluídas de antologias literárias sobre humor, de exibições de caricaturas e de reflexões por parte de autores importantes nesta área, como é o caso de Bergson ou de Freud.

Apesar de este ainda ser o padrão dominante, segundo Hotthoff (2003), nos últimos quinze ou vinte anos o modelo corrente do homem produtor de humor e da mulher sorridente e receptiva de humor tem perdido terreno. Uma maior visibilidade das atividades humorísticas produzidas por e para mulheres tem sido garantida por uma variedade de métodos de pesquisa que possibilitam a apreensão do caráter dialógico do humor em seus contextos naturais (isto é, em situações sociais concretas). Por outro lado, a própria política de gênero do humor tem mudado, revelando um declínio da incompatibilidade tradicional entre a expressão de feminilidade, por um lado, e a produção ativa de humor, particularmente de tipo agressivo. Um caso interessante disso é o que se tem chamado de “novo humor feminino”, cujo exemplo mais bem acabado no Brasil é o delicioso “Eu Sento, Rebolo e Ainda Bato um Bolo”, de Andréa Cals e Marcela Catunda. Sério.

Pressupor que as mulheres não têm senso de humor ou que devem continuar rindo de coisas que, para nós, não têm a menor graça, implica não apenas perpetuar a imagem da mulher sorridente e abobalhada, mas ignorar que muito do “humor” produzido para as mulheres não preenchem os requisitos necessários para que os caracterizemos como humor. Levar algo “a sério” significa, com freqüência, interpretá-lo literalmente, expurgar toda e qualquer ambigüidade, desordem, caos. É não atentar para significados duplos, desviantes, que fogem ao controle ou que têm por base outros quadros de referência. Em contraste com isto, a idéia de que existe algo como um “erro aceitável” é essencial à presença do humor (Shibbles, 2006). A questão pura e simples, portanto, é que onde não existe ambigüidade ou erros aceitáveis, não existe humor: muitas vezes existe violência simbólica, dominação, agressão; outras, a mera expressão de algo entre a oligofrenia e a idiotia. Simples assim.

(continua...)

2 comentários:

asadebaratatorta disse...

engraçado. um ex-amigo meu, tentando me constranger numa roda de amigos, tentou contar a seguinte piada: "um professor de física, em uma aula de sociologia para o curso de economia, diante da confusão que é dizer o que é sociologia, preferiu explicar aos alunos baseando-se na teoria da reencarnação. Disse-lhes: se vocês forem bons alunos e boas pessoas, reencarnarão como físicos. Caso contrário, reencarnarão como sociólogos."
As pessoas, a maioria das áreas duras, riram bastante(exceto pelo meu amigo da área de computação). Eu, muito "calmo", perguntei se o professor havia respondido aos alunos o que é sociologia. Eles se calaram, um tanto constrangidos. E foi a minha vez de rir. =P

Esse teu post, Cynthia, foi muito bom. Eu não tinha percebido a questão de gênero no humor e a verticalização entre o que gera o humor e o que "sofre".
Sobre a questão do humor na publicidade, me pergunto se eles não se utilizam daquela idéia que você colocou aqui: a do "erro aceitável", para basearem boa parte de suas publicidades.


Asadebaratatorta diz respeito a uma música de Zeca baleiro e Zé Ramalho: Bienal. MAs é claro que o aspecto asqueroso tem um tom interessante. =P

Grato pela visita! ^^

Bom resto de fim de semana. Um abraço.

Anônimo disse...

Raphael,

O que diabos um professor de física estava fazendo, dando aula de sociologia para alunos de economia? O mais triste é que tenho visto esse tipo de coisa no curso de formação de professores do ensino médio que estamos oferecendo.

O termo "ex-amigo", seguido da piada, já foi um bom indicativo do tipo de relação e da forma como o riso se manifestou. Mas sua resposta foi ótima.

Humor de gênero em publicidade: dá uma olhadinha nas propagandas de cerveja e repara se as mulheres não são totalmente reificadas? Algumas exceções têm surgido, por ex., as propagandas da brastemp, onde o homem se torna o objeto do humor. Mas são propagandas direcionadas às classes mais altas e o tipo de humor é a ironia, feita com jogos de palavras relativamente complexos para serem compreendidos por todos. O padrão dominante ainda é a mulher como o alvo e o uso de um humor menos intelectualmente sofisticado.

O asa de barata torta continua a me soar meio nojento. Esse é um daqueles termos que me fazem pensar no objeto de forma concreta e realista. Morro de nojo de barata. Especialmente das que mostram as asas.

Abraço