sábado, 19 de abril de 2008

Profissionalização, autoformação e pesquisa: sociologia dialógica versus ideologia de boteco I



Os estudos sobre educação da década de 1970 representaram uma espécie de revolução copernicana nesta área. Embora a educação sempre tenha sido, em maior ou menor grau, relacionada a processos sociais mais amplos, como a democracia, o desenvolvimento econômico, a urbanização, a mobilidade social etc (Fernandes, 1977), é apenas nesta década que outra de suas dimensões começa a se tornar visível: a educação como um mecanismo de reprodução das desigualdades sociais, especialmente as de classe. Na França, por exemplo, trabalhos de autores tão heterogêneos como Pierre Bourdieu e Passeron (1970) e Raymond Boudon (1981 [1974]) começaram a apontar para esses mecanismos, seja em função de uma cultura escolar definida a partir da cultura familiar das classes dominantes, seja de desigualdades de acesso à educação devido às diferenças entre essas duas culturas. Trabalhos como o de Foucault e Althusser enfatizaram ainda o aspecto disciplinante e de controle das escolas, com vistas à formação de uma classe trabalhadora dócil o suficiente para se ajustar à lógica de produção capitalista (Young, 2007). Como resultado, começou-se a refletir sobre formas de romper o ciclo vicioso que a educação formal engendra.

Uma dessas formas é pensada por meio do conceito de autoformação, criado por Chombart de Lauwe (1976) a partir do trabalho pioneiro de Silke Weber (1976) que, sob sua orientação, demonstrava em sua tese de doutoramento que as aspirações à cultura e à educação no Brasil eram definidas a partir de valores das classes dominantes, e não simplesmente a partir de processos como a urbanização, que supostamente homogeneizariam tais aspirações. De maneira geral, a autoformação pode ser definida como a valorização e a incorporação daquilo que os professores criam em suas atividades, em seu processo de trabalho. A idéia por trás disso é romper com a simples reprodução do conhecimento produzido e testado em outros ambientes, levando a uma reflexão por parte dos atores envolvidos que possibilite a construção de algo novo e mais contextualmente relevante. De uma perspectiva mais ampla, este processo aponta para uma dimensão democrática dupla: por um lado, pressupõe uma concepção de conhecimento como uma construção coletiva. Em termos pragmáticos, poderíamos afirmar que o que está em jogo aqui é o embasamento dos processos cognitivos em situações problemáticas concretas e uma busca cooperativa pela verdade, no sentido de se tentar resolver problemas reais de ação (Lewis e Smith, 1981; Oelkers, 2008). Por outro lado, pressupõe que os atores envolvidos na construção de um conhecimento deste tipo são agentes sociais competentes e não simples receptáculos de idéias pré-concebidas. Neste sentido, a discussão pública gerada por esses atores pode contribuir efetivamente para a reflexão e para mudanças na construção de aspirações, assim como na cultura escolar e familiar que dão sustentação aos mecanismos de reprodução de desigualdades anteriormente mencionados.

Embora estas questões devam ser levadas a sério e, como tal, devam estar presentes na concepção de educação de qualquer professor, acredito que elas devam ser relativizadas. Como argumenta Michael Young (2007), ao se focar o aspecto disciplinante e reprodutor da educação, uma questão importante foi negligenciada nas últimas quatro décadas: qual o papel específico das escolas? O que ela tem de único em relação à família, às prisões, aos hospitais e a outras instituições a que foram comparadas? A resposta, de uma simplicidade desconcertante, é que as escolas “capacitam ou podem capacitar jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para adultos, em seus locais de trabalho” (Ibid.:1294). Importa sublinhar, no entanto, que, ao resgatar o papel da escolaridade como transmissão de conhecimento, Young enfatiza que a palavra “transmissão” pressupõe de forma explícita o envolvimento ativo do aprendiz neste processo. Sendo assim, a questão da autoformação e a dimensão coletiva e contextual da produção do conhecimento não devem ser percebidas nem como um empecilho à sua transmissão, nem como o objetivo último da educação, mas como algo que está a seu serviço.

As reflexões de Young são importantes porque, dentre outras coisas, nos permitem pensar na autoformação como algo intrínseca e primordialmente ligado ao papel específico da educação. Em outros termos, ainda que consideremos os aspectos pragmáticos envolvidos na idéia de autoformação, é necessário considerar que eles devem estar subordinados à noção mais ampla de transmissão de um tipo de conhecimento que não pode ser adquirido em outras instituições. Isto significa reconhecer que:

1)O conhecimento escolar é diferente do não-escolar por ser especializado. Ele é independente do contexto, no sentido específico de que não simplesmente diz às pessoas como resolver problemas do cotidiano, mas é geral, teórico (Young, 2007).
2)Os atores envolvidos no processo de construção do conhecimento têm competências diferenciadas. Antes de tudo, o professor é, ou deve ser, profissionalizado na área em que atua.

O que pretendo argumentar aqui é que não reconhecer estes dois pontos abre a possibilidade de que a autoformação degenere numa simples produção/reprodução ideológica, numa espécie de “glorificação” do senso-comum sob a ilusão de um conhecimento especializado. Isto é especialmente verdadeiro no caso da sociologia, pois, como todos sabemos, os atores sociais devem ter algum tipo de conhecimento acerca do funcionamento da vida social a fim de que possam viver em sociedade. Parafraseando Schütz, somos todos sociólogos espontâneos. Mas é preciso reconhecer que a sociologia é também um tipo de conhecimento especializado e, como coloca Durkheim (1981), relativamente opaco ao entendimento espontâneo da vida cotidiana. É este tipo de conhecimento especializado que deve ser ensinado nas escolas na disciplina sociologia.

A partir destas considerações, algumas questões imediatamente se colocam: que tipo de especialista deve ser o professor de sociologia? Que tipo de conhecimento ele deve estar apto a transmitir? Que tipo de conhecimento ele produz em sua atividade de ensino? A fim de nos ajudar a refletir sobre essas questões, efetuarei agora uma leitura não muito ortodoxa da distinção entre sociologia profissional e sociologia pública efetuada por Michael Burawoy (2005). Pretendo sugerir que o professor de sociologia do ensino médio é uma espécie de sociólogo público e, como tal, sua atividade é guiada por objetivos distintos da sociologia profissional. Além disso, as normas de validação e justificação desta atividade também têm algumas especificidades. Conforme argumentarei, esta distinção entre a sociologia profissional e a sociologia pública implica relações distintas com a pesquisa empírica e com a investigação científica, de forma mais geral.

Em uma conferência presidencial da Associação Americana de Sociologia, em 2004, Burawoy (Ibid.) estabelece uma divisão do trabalho sociológico no qual distingue quatro tipos principais de sociologia: 1) uma sociologia profissional, voltada para uma audiência acadêmica e cujo conhecimento se caracteriza como instrumental; 2) uma sociologia crítica, também voltada para o público acadêmico, mas de caráter reflexivo; 3) uma sociologia pública, de caráter também reflexivo, porém voltada para um público extra-acadêmico; 4) uma sociologia aplicada a políticas públicas e sociais (policy sociology), destinada a uma audiência extra-acadêmica e de caráter instrumental.

Esta divisão do trabalho de forma alguma deve ser entendida em termos de uma separação estanque entre as diversas atividades desenvolvidas pelos sociólogos, mas como uma ênfase maior ou menor em dois eixos principais: o tipo de público ou de audiência a que se destina, por um lado; a natureza instrumental ou reflexiva da atividade, por outro. A distinção entre uma audiência acadêmica e extra-acadêmica é óbvia o bastante para não requerer nenhuma explicação detalhada. Já a distinção entre um conhecimento instrumental e um conhecimento reflexivo merece alguma elaboração. Partindo da distinção weberiana entre racionalidade axiológica e racionalidade instrumental ou técnica, Burawoy entende por conhecimento reflexivo aquele voltado para o questionamento dos próprios fins da sociedade e da sociologia. O conhecimento instrumental, por seu turno, diz respeito às formas mais eficazes de se alcançar aqueles fins.

(continua...)

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