sexta-feira, 30 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: Um ensaio sobre corpos não-civilizados



A Vênus Hotentote (Parte 3): A Segunda Mirada na Vênus

Woman is the nigger of the world (John Lennon)

Sara Baartman começa a ser exibida em Paris em 1814 pelo treinador de ursos e de macacos Sieur Réaux. Lá, suscita a mesma curiosidade que na Inglaterra e sua popularidade chama a atenção de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, pai da teratologia (ou ciência que estuda os monstros) moderna. Antes de desenvolver seus trabalhos em teratologia, no entanto, Étienne Saint-Hilaire foi mentor e colega (e depois arquiinimigo) de Georges Cuvier, pai da anatomia comparada e da paleontologia. Ambos trabalhavam no Museu de História Natural de Paris e a chegada da Vênus na cidade fez com que Saint-Hilaire (então administrador do museu) escrevesse uma carta ao chefe da polícia daquela cidade, relatando o desejo dos naturalistas de “se beneficiarem da circunstância (oferecida) pela presença, em Paris, de uma fêmea bosquímana que pode fornecer, com mais precisão do que jamais foi feito até hoje, as características distintivas desta raça curiosa” (apud Garrec, 2002: 7). Foi assim que, no início de abril de 1815, a nudez de Baartman foi exposta ao olhar de cientistas e artistas no Jardin du Roi. Nesta exibição, ela posou para as ilustrações que compõem parte das imagens do livro de Cuvier e Saint-Hilaire, editado alguns anos mais tarde: História Natural dos Mamíferos. Estas imagens (um detalhe das quais está reproduzido abaixo) representam um olhar completamente diferente dirigido ao corpo de Baartman. Ao contrário das caricaturas relativas à sua estadia na Inglaterra, as imagens que ilustram a História Natural dos Mamíferos representam-na como uma espécie natural, dentre inúmeras outras, especialmente de macacos. Nas palavras de Sadiah Qureshi (2004: 241-42):

As poses de Baartman nessas imagens são impressionantes; ela aparece rígida, parecendo uma espécimen empalhada e não um modelo vivo. Ao invés de retratar uma pose clássica, o artista apresenta cenas enquadradas de forma semelhante às de outras espécimens de mamíferos que aparecem no volume e que são análogas aos perfis anteriores e laterais usados nas ilustrações zoológicas. O colorido delicado visa claramente ao realismo; detalhes como o cabelo, as veias do tecido aureolar e as unhas contribuem para a precisão clínica. Um cenário minimalista dá pistas sobre uma localização geográfica, mas sem interferir com o sujeito humano/animal. Uma escala enfatiza a intenção de acuidade anatômica. Estas pistas indicam uma aspiração no sentido da objetividade visual e incorpora convenções do período. Representações artísticas de negros poderiam fazer uso de artifícios óbvios; no entanto, em ilustrações etnográficas o papel do artista era o de alguém supostamente passivo...

Um dos principais objetos de interesse anatômico em relação a Baartman era sua esteatopigia e a sua genitália. Diversos relatos de viajantes, desde o século XVII, afirmavam que os homens Khoisan tinham apenas um testículo e, as mulheres, um “avental”, ou uma saliência genital cuja forma era objeto de muita especulação. Nada surpreendente, se considerarmos que o que caracterizava a inferioridade de mulheres e negros era sua suposta ênfase na sexualidade em lugar da razão, do corpo em detrimento da mente. Em uma das primeiras descrições por escrito da genitália dessas mulheres, em um livro publicado em 1686, Wilhelm ten Rhryne, médico da Companhia das Índias Ocidentais, afirmou que “elas têm esta peculiaridade em relação a outras raças, a maioria delas possui apêndices em forma de dedos, sempre duplos, pendurados de suas partes privadas; trata-se, evidentemente, de nymphae” (a palavra latina para pequenos lábios) (apud Baker, 1974). Uma outra descrição, provavelmente do comandante de um navio francês chamado François Lequat, de cerca de 1708, refere-se à genitália das mulheres Khoisan como uma dobra de pele semi-circular que pende da parte inferior do abdômen, cobrindo a genitália externa (Ibid.). Foi esta descrição que deu origem ao nome “avental hotentote”, chamado em francês de tablier. Outros relatos de viajantes, ligando mais diretamente as características anatômicas dos Khoisan aos animais, questionavam-se a respeito da relação entre o avental hotentote e a cauda dos animais, o que revela as dúvidas que pairavam acerca da própria humanidade dos Khoisan.

É com base nestas idéias que Saint-Hilaire escreve seu relatório, após a observação de Baartman. A aproximação desta com os animais é evidente, por exemplo, na descrição de sua face que, segundo ele, comporta a “base de um focinho ainda mais pronunciada que a do orangotango vermelho que habita as maiores ilhas do Oceano Índico” (apud Garrec, 2002: 7). O relatório afirma, ainda, que “o tamanho extraordinário de suas nádegas” lhe inspiram uma comparação entre as fêmeas dos macacos mandril na época do cio (Ibid.). Cuvier (apud Richet, 2002), ecoando as palavras de Saint-Hilaire, afirma que “seus movimentos tinham qualquer coisa de brusco e de caprichoso, o que lembrava o movimento dos símios. Ela tinha, sobretudo, uma maneira de projetar os lábios para frente que parecia com aquela que observamos no orangotango” Assim como Saint Hilaire, ele também faz referência à “enorme protuberância de suas nádegas e à aparência brutal de sua figura” (Ibid.). Nada se afirmou sobre as características de sua genitália, o que só ocorre alguns meses mais tarde, após sua morte.

Informado da morte de Baartman pela polícia, Cuvier solicita uma permissão especial para dissecar seu cadáver. A permissão decorria do fato de que, segundo a lei francesa, apenas a Faculdade de Medicina e o hospital de la Pieté poderiam executar autópsias. Assim, fim de levá-la para o laboratório de anatomia do museu, Saint-Hilaire redige uma carta ao prefeito de Paris, solicitando a doação de seu corpo para que “ele possa auxiliar no progresso do conhecimento humano” (Garrec, 2002:7). A dissecação do cadáver foi precedida pela moldagem do corpo em gesso e seguida da extração de seu cérebro e sua genitália, que foram preservados em formol e exibidos no Musée de L’Homme até 1974, juntamente com seu esqueleto. O relatório de Cuvier, objeto de uma conferência na Academia de Medicina em 1817, chegava a conclusões semelhantes às de Saint-Hilaire e às dele próprio após a observação de Baartman no Jardin du Roi, mas apontavam de forma inequívoca para uma concepção cientificista de raça, com base em um sistema taxonômico moderno. Como afirma Anne Fausto-Sterling (1995:26), as crenças de Cuvier sobre as diferenças humanas espelham a transição de uma ênfase de diferenças em graus de civilização para a construção científica de raça e seu trabalho no corpo de Sara Baartman “incorpora as contradições que esta transição inevitavelmente gera”. Antes de investigarmos o conteúdo de seu relatório, algumas palavras sobre a noção de raça.

De acordo com o Houaiss, a origem etimológica do termo raça (de razza, em italiano) data do século XV e, tradicionalmente, considera-se que deriva de uma de duas palavras latinas: generationis (geração) ou rationis (natureza, motivo, causa). Ainda segundo o Houaiss, aventou-se ainda a possibilidade de que o termo tenha derivado do francês antigo, haraz, ou “estabelecimento destinado à produção de cavalos”. Curiosamente, menciona-se que as duas primeiras aparições do termo race (raça, em francês) ocorrem nas memórias de um certo Philippe de Commynes: o primeiro volume, escrito entre 1488 e 1492, faz menção à raça de Philipe de Lalaing; o segundo, escrito em 1497, faz referência à raça dos cavalos napolitanos. De acordo com Nicolas Médeviele (2006: 145), o termo italiano, razza, designa essencialmente os cavalos de sangue puro e, por extensão semântica, passa a fazer referência às linhagens reais. Assim, usa-se, na França, o termo “primeira raça” para se referir aos reis merovíngeos, “segunda raça” para se referir aos carolíngeos e terceira raça para os capetos. Segundo o mesmo autor, a partir dos anos de 1550, o termo passa a designar outras famílias da nobreza e, mais tarde, de forma geral, uma hierarquização social de base hereditária, ainda que os mecanismos de sua transição não sejam conhecidos. A pureza da raça relaciona, ainda, características físicas (o suposto sangue azul da realeza, a esteatopigia dos hotentotes) com traços morais. Interessante, se pensarmos que, nos dias de hoje, é necessária a referência à biologia para que se pense raça em termos estritamente sociais. Mas isso é outra estória.

O que é importante é que, até o século XVIII, a idéia de raças biológicas distintas permaneceu subdesenvolvida. Muitos dos que utilizavam este termo não concebiam a diversidade humana em termos hereditários ou estritamente físicos (Fausto-Sterling, 1995), mas como uma mistura de elementos cuja base repousava sobre as crenças do senso comum acerca da inferioridade dos povos não-europeus. Mesmo no século XVIII, naquilo que Stephen Jay Gould (2003: 21) chama de a

primeira definição formal das raças humanas, em termos taxonômicos modernos, Lineu mesclou traços do caráter com anatomia (Systema naturae, 1758). O Homo sapiens afer (o negro africano), afirmava ele, é “comandado pelo capricho”; o Homo sapiens europaeus é “comandado pelos costumes”. Sobre as mulheres africanas, escreveu ele: Feminis sine pudoris; mammae lactantes prolixae – mulheres sem pudor, seios que segregam leite em profusão. Os homens, acrescentava, são indolentes e untam-se com sebo.

A tradução de sine pudoris como “sem pudor” é depois corrigida pelo próprio Gould em O Sorriso do Flamingo (2004): o termo que Lineu teria usado seria sinus pudoris (cortina do pudor) e não sine pudoris (sem pudor). A cortina do pudor refere-se justamente ao “avental hotentote” que tanto fascinou os viajantes europeus e os naturalistas daquele período, dentre eles, Georges Cuvier, que dedicou nove (nove!) das 16 páginas de seu manuscrito sobre Sara Baartman à descrição de sua genitália (Blackledge, 2003: 141). É, realmente, muita obsessão pela genitália alheia, e haja ciência para disfarçar tanto voyeurismo. E justificativas científicas era o que não faltava. Diversos cientistas do período também relacionavam mulheres com macacos: enquanto os homens brancos (não os negros, cuja genitália, como Jonatas argumentou abaixo, também eram objeto de interesse dos europeus) eram diferenciados de outros primatas por meio de características como a linguagem, a razão, a cultura etc., os cientistas se utilizavam de características anatômicas sexuais as mais diversas para distinguir as mulheres dos animais: “a forma dos seios, a presença do hímen, a estrutura do canal vaginal e a localização da abertura uretral” (Fausto-Sterling, 1995: 27). O interesse de Cuvier em Sara Baartman é, portanto, inestimável. É como se ela fosse duas pelo preço de uma: além de mulher, era negra, o que a tornava um objeto privilegiado de investigação científica, já que estava duplamente ligada à natureza (em oposição à cultura).

A exposição da genitália de Baartman é longamente precedida de sua identificação em termos raciais, pois é esta identificação que permitiria sustentar sua tese acerca da origem comum dos seres humanos, uma posição conhecida como monogenismo. “Permitiria” porque, ao contrário do que intentava, Cuvier acaba por se enrolar numa série de contradições que expõem a fragilidade de sua posição. Segundo Gould (2003), as justificações deste período para a hierarquização racial assumiam duas formas principais: um argumento brando, defendido pelos monogenistas, e um argumento mais duro, defendido pelos poligenistas. Ambos eram anteriores à teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. Os primeiros, ao misturar religião, senso comum e ciência, argumentavam que todos os povos descendem de Adão e Eva, isto é, de uma origem comum. As raças humanas seriam produto da degeneração da perfeição do paraíso e, (surpresa!) a menor degeneração ocorreu com a raça branca e, a maior, com os negros. Em seu Trinta Lições em Anatomia Comparada, Cuvier expõe sua posição:

Eu sou um monogenista, todos os seres humanos vêm de uma criação única dividida em três raças: caucasianos, etíopes ou negros e mongóis. Não é coincidência que a raça caucasiana tenha ganhado o domínio sobre o mundo, enquanto os negros ainda estão mergulhados na escravidão e nos prazeres dos sentidos e, os chineses, perdidos na obscuridade de uma linguagem hieroglífica (citado em Chase-Riboud, 2003: 125)

Os poligenistas, por seu turno, rechaçavam a versão bíblica, considerando-a uma mera alegoria, e defendiam que as raças humanas eram espécies distintas e descendiam de mais de um Adão (Gould, 2003). Esta visão, é claro, era estritamente compatível com a escravidão, mas não era facilmente defensável. De acordo com a definição biológica, o que caracterizaria uma espécie era a possibilidade de cruzamento e da geração de descendentes férteis, o que, claro, era possível entre negros e brancos - apesar das tentativas de Artur de Gobineau em afirmar o contrário quando, a pedido de D. Pedro II, desenvolve um relatório sobre a miscigenação no Brasil e conclui que a população brasileira desapareceria em 270 anos, devido à geração de descendentes inférteis ou malsãos (Readers, 1997). Os monogenistas detinham, portanto a vantagem, embora isto não os impedisse de elaborar argumento extremamente criativos a fim de tentar justificar a superioridade da raça branca. Um famoso anatomista francês, Etienne Serres, defensor da monogenia, tentou estabelecer, em meados do século XIX, critérios objetivos (mensuráveis) para hierarquia das raças. Segundo ele, os negros adultos corresponderiam às crianças brancas e os mongólicos adultos, aos adolescentes brancos. Seu critério objetivo (que lembra em muito o positivismo de Cesare Lombroso) era a distância entre o umbigo e o pênis: na vida embrionária dos seres humanos, a distância entre o pênis e o umbigo é pequena. À medida que crescem, esta distância aumenta, sendo muito maior entre os brancos do que entre os mongólicos e, especialmente, os negros. Para Serres, defensor ardoroso da monogenia, os homens negros são sempre como os meninos brancos, o que sinalizaria sua inferioridade (Gould, 2003).

Os argumentos de Cuvier não são muito diferentes. Embora defendesse a origem comum dos seres humanos e fosse um opositor ferrenho da escravidão, sua análise do corpo de Baartman revela uma tentativa absurda de localizá-la o mais próximo possível dos símios, distanciando-a da humanidade. Um dos recursos que ele utilizou para isto foi negar seu status de hotentote e caracteriza-la como bosquímana, uma raça que vivia nas profundezas da África, ainda mais profunda do que os hotentotes. Embora não acreditasse na idéia de evolução, ao caracterizar Baartman como bosquímana, em vez de hotentote, ele acaba por caracterizá-la como o elo perdido entre os seres humanos e os macacos. Diferentemente dos hotentotes, os bosquímanos eram inteiramente selvagens, pois sua estrutura social havia chegado a tal grau de degeneração que “eles não conhecem nem o governo, nem a propriedade; raramente se organizavam em famílias, mas apenas quando sua paixão os ditava... Eles subsistiam apenas pelo roubo e pela caça, viviam apenas em cavernas e cobriam seus corpos com os animais que haviam matado” (Cuvier apud Fausto-Sterling, 1995: 36). Para Fausto-Sterling (Ibid.), a relação que Cuvier estabelece entre a descrição da genitália de Baartman e as profundezas da África aparece claramente na sua reclamação de que ela havia escondido seu “avental” entre as pernas, ou em algum lugar mais profundo, durante sua exibição no Jardin du Roi, alguns meses antes. Além disso, ele teria relacionado a existência de um povo primitivo e supostamente oculto com um primitivismo animal, tornando-os mais próximo dos orangotangos do que dos negros. São essas relações entre genitálias estranhas, colônias distantes e animais exóticos que constituem a crítica dos movimentos sociais do final do século XX não apenas às relações estreitas entre a ciência e o colonialismo, mas às próprias noções de raça e gênero que lhes dão sustentação. Essas críticas voltam, mais uma vez, o olhar contemporâneo para Sara Baartman, constituindo o que chamei aqui de a terceira mirada na Vênus e que será o tema do meu próximo post.

Femme de Race Bochismann (detalhe) - litografia a partir de de Walis, Geoffrey Saint-Hilaire e Georges Cuvier, 1824. National Portrait Gallery, Londres.

Cynthia Hamlin

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Educação Moral



Toc, toc... Tem alguém aí?! Silêncio, ninguém responde. Onde está o pessoal? Será que se jogaram do alto do CFCH? Serão, meus diletos amigos, suicidas? Intelectuais lemingues, quem sabe. Mas eu entenderia, pois não é fácil trabalhar naquele prédio horroroso. E dizem que as condições de trabalho no PPGS da UFPE são terríveis, e há boatos de trabalho escravo, coisa do gênero. E a vida, né, sem aumento, a inflação chegando, sei não...

Bem, já que desapareceram, aproveito e invado a seara de Cynthia. Estimulado pelo seu escrito sobre o ensino de sociologia no ensino médio, dei um rolé por alguns textos e parei num de Durkheim sobre educação. Claro, o tema tem uma relação um tanto distante com a discussão realizada pela nossa queridinha, mas, já que fui parar por aqui, bora em frente!

Durkheim, Emile - L'EDUCATION MORALE - Paris: Fabert, 2007

Pessoalmente, acho os textos de Emile relativos à educação um misto de ciência acadêmica com ideologia. Seu intervencionismo moral seria bastante visível. Numa outra obra (Educação e sociologia), Emile afirmou que a educação era a socialização metódica da nova geração. Tal conceito de educação gerou um aporte teórico fecundo que, inclusive, influenciou bastante Piaget. Assim, cada geração deve socializar-se a partir de modelos culturais transmitidos pela geração precedente. Contudo, ao contrário de Piaget, que percebe a socialização como uma construção, Emile apreende a socialização do ponto de vista de uma transmissão do espírito da disciplina. O texto analisado é, digamos assim, uma apologética da disciplina.

Durkheim tenta oferecer uma base "natural" à disciplina ao defender que o homem vive sob determinadas condições ambientais, limitando as suas possibilidades de ação. Para ele, o ser humano precisa adaptar tais limitações às suas necessidades, e isso requer um acordo disciplinar entre a natureza e o homem. Assim, a disciplina seria útil não somente no contexto dos interesses da sociedade e suas formas de cooperação, mas também para o bem-estar do próprio indivíduo. A disciplina é o controle voluntário dos desejos, e tal controle é fundamental para alcançar a felicidade. A formação da personalidade teria como base justamente o controle de si e a disciplina.

Nesse escrito, Durkheim redefiniu a natureza da coerção moral, diminuindo, digamos assim, sua "externalidade". Relacionou a moral à obrigação e ao dever. A coerção moral seria um jogo entre a obediência e a adesão voluntária a um dever. Convenhamos, uma conceituação de coerção bem mais interessante do que aquela encontrada na Da Divisão do Trabalho Social. Aqui, considerando a obediência e a adesão voluntária, pode-se conectar o poder restritivo das normas com a "autonomia" da ação subjetiva. Creio que o cabra tenha, de fato, realizado tal conexão com uso da noção de ritual (um uso ainda repleto de defeitos, vale dizer) na sua obra As formas elementares da vida religiosa.

Emile é um defensor das chamadas liberdades positivas: a liberdade só pode ser viabilizada, se enquadrada nas leis. Por isso, o indivíduo só pode ser livre através da disciplina moral. Nesse sentido, ele seria contra o utilitarismo (Bentham) e as visões anarquistas da liberdade (apologia da liberdade negativa). Sem regras, não há moral, e, como a moral é o campo da liberdade, para usar uma visão kantiana, a liberdade precisa estar formatada por normas de conduta. A moral é fundamental à coesão social, e a educação é o demiurgo da moral. Emile justifica a racionalidade da disciplina, defendendo sua relação com a emancipação e a liberdade humanas: a disciplina é o meio pelo qual o homem realiza sua natureza — aqui, Emile é um sintoma de toda a querela disciplinar, tão bem analisada por Foucault. Contudo, sendo histórica a constituição da natureza humana, a disciplina muda quando muda a constituição do homem, transformando-se também os modos pelos quais a disciplina é introjetada no ser humano — por exemplo: a solidariedade mecânica envolve um modo disciplinar diferente da solidariedade orgânica.

E, claro, disciplina sem autoridade é uma contradição flagrante. Por isso, as regras morais precisam ser investidas de autoridade. Não há subversão nesse mundo disciplinar? Sim, quando há a necessidade de substituir-se velhas regras caducas por outras — Jesus e Sócrates representariam uma quebra de regras, mas não no sentido da anomia e sim de um novo modo disciplinar. O mundo moral de Durkheim, de fato, requer a disciplina. Ora, na sua época, o controle do corpo passa pelo controle da "alma". Um mundo aonde a tradição vai aos poucos perdendo sua força normativa, dissolvendo-se no "desencanto do mundo".

Qual seria o paradigma emocional da disciplina? Repressão sexual, conflito e culpabilidade. A disciplina moral exige a culpa, pois a culpabilidade lembra sempre o vínculo com o passado, e o passado é a lembrança de regras e normas de conduta; exige o conflito, pois sem ele como tomar consciência da tentação? É o mundo da histeria, psicopatologia-mor da época de Emile. A política pedagógica baseada na disciplina criou personalidades fortes, mas também uma clientela assídua para Freud.

Durkheim ficaria horrorizado com o nosso mundo. Se leu realmente Nietzsche, deve ter ficado preocupado. Nosso tempo é a época do indivíduo sem disciplina! O duo permissão-proibição escafedeu-se: é proibido-proibir! O individualismo radicalizou-se, e a disciplina foi trocada pela decisão e pela iniciativa pessoais. A pessoa não age mais conformada a uma ordem externa; age utilizando seus próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas. Não vai ter mais medo da culpa, pois ficará apavorada com o fracasso. O nosso mundo significou o deslocamento normativo da culpa para a responsabilidade. O indivíduo começou a sentir o peso da liberdade e da soberania da individualidade. Estamos em plena radicalização da modernidade; estamos na pós-modernidade. Estamos no mundo da depressão!

Enfim, Emile iria mandar pastar todos os construtivistas da pedagogia...

Artur Perrusi

sábado, 24 de maio de 2008

Fui parar em Marx...


Para os Perrusi, por tradição, alguém sempre é culpado. Na longa história de nossa genealogia, tal projeção poupou-nos de julgamentos, prisões e autocomiserações. Orgulho-me de tal conduta, pois sei que a minha sanidade mental depende dessa espetacular estratégia. Por isso, digo logo: a culpa é de Cynthia! Sim, é sua culpa o fato de eu não ter escrito sobre Habermas e continuado a transcrever minhas anotações de aula. Pois saibam que ela foi lá no meu blog e fez um tratado sobre a noção de raça nas ciências sociais. Isso me intimidou, claro. Sou vulnerável a bons argumentos, principalmente quando são diferentes dos meus. Fiquei tão abufelado que prometi responder à discussão, defendendo a inutilidade do conceito de raça nas ciências sociais. Estou até hoje feito um maluco procurando argumentos para defender minha humilde tese. Tenho insônia, não como direito, pensei até que estava com dengue. Não sei mais o que fazer.

Bem, não fiz nada, propriamente dito, e parei em assuntos completamente fora de propósito, que não têm relação alguma com o assunto. Acho que estou com depressão. E, quando me deprimo, leio Marx, ficando ainda mais deprimido. É uma dialética infernal, cá entre nós. Ler, por exemplo, os Manuscritos Econômico-Filosóficos e partes do Grundrisse é clamar por uma morte rápida. O cérebro torna-se algo bem mole e pastoso, depois da corrosão cognitiva, causada pelo hermetismo do escrito. Pelo menos, antes de me jogar do meu prédio, publico alguns comentários sobre essas instigantes obras. Meu objetivo, com minha resenha, é socializar minha depressão, torná-la uma contaminação, uma plataforma para o suicídio coletivo. Espero que Cynthia leia...

1. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Martin Claret, 2001, pp. 61 a 193
2. MARX, Karl. "Introduction" e "The chapter on Money". In: Grundrisse. Middelsex, Penguin Books, 1974, pp. 81 a 111 e 115 a 238

Manuscritos Econômico-Filosóficos (MEF)

Os MEF tem como base a seleção dos escritos ditos de juventude de Marx. O termo juventude presta-se a alguns mal-entendidos, já que se infere daí que os textos "juvenis" seriam inferiores aos textos "maduros" de Marx — entre a juventude e a maturidade haveria necessariamente uma evolução. Discussão um tanto difícil, visto que muitos marxistas reconhecem-se muito mais nos escritos "juvenis" do que nos "maduros". Mas uma coisa é certa: Marx mudou muito em relação a algumas teses econômicas encontradas nos manuscritos, como atestam suas posições nos Grundrisse e no Capital; filosoficamente, também, a começar que o Marx "maduro" praticamente abandona, por exemplo, a noção de "alienação", embora possamos ver, em algumas discussões no Capital, a temática ser retomada (o descontrole da acumulação capitalista; a liberação de forças sociais impossíveis de serem controladas pelos indivíduos; a perda do sentido do trabalho...). No Capital, o tema da alienação aparece mais relacionado ao tema da falsa consciência (a uma noção de ideologia) e da perda de sentido, enquanto nos MEF a noção possui, aparentemente, um parentesco com o tema da Queda da teologia judaico-cristã, isto é, possui um sentido um tanto metafísico.

Nos MEF, a economia marxiana começa esboçar-se de forma concreta. O tema da transformação do trabalhador em mercadoria é repetido de forma exaustiva, bem como a relação da economia capitalista com a exploração e com a dominação. O trabalhador, para Marx, perde praticamente em toda situação econômica, nem mesmo numa situação de prosperidade; em suma, o capitalista ganha mesmo quando perde e, quando ganha, não traz benefício algum ao trabalhador — análise em tanto questionável, se olharmos a sociedade contemporânea. Como Marx ainda não maneja o conceito de força de trabalho, fica-lhe difícil perceber a raiz da exploração capitalista no seio mesmo da atividade produtiva; assim, a exploração ainda é vista a partir da circulação e da crítica às condições assimétricas nas quais é realizado o contrato de trabalho. Sem o conceito de força de trabalho, Marx não pode aprofundar o conceito de mais-valia. Conseqüentemente, a prioridade analítica da produção ainda não está completamente caracterizada. De todo modo, acredito que Marx, através de sua "economia política", amplia conceitualmente o campo de estudo ao perceber o capital como o "poder de domínio sobre o trabalho e sobre seus produtos" (2001: 80); ora, para Marx, a economia não é apenas "econômica", mas também "sociológica" e, principalmente, "política".

Voltando ao tema da alienação, consideramos que necessariamente tal conceito é normativo, isto é, seria impossível, ao analisar um fato através da noção de alienação, não inscrever um julgamento, baseado em valores, no ato mesmo da análise. Claro, pode-se alegar que todo conceito é normativo. Sim, admito isso, mas apenas da seguinte forma: a normatividade do conceito é resultado de procedimentos e de valores internos à própria conceituação científica (parto da premissa de que a verdade é um valor que tem a propriedade de julgar os valores). Além disso, alienação não é apenas uma "noção", mas também uma categoria de valor, complicando sua transformação em conceito. A noção de alienação impõe uma premissa: através de seu uso, comparam-se as sociedades existentes a uma sociedade utópica ou modelo ideal de sociedade humana (a sociedade comunista) — um modelo que envolve uma visão metafísica do humano: a postulação de indivíduos absolutamente livres que vivem num mundo sem escassez, seja absoluta ou mesmo relativa ou, ainda, a postulação de um indivíduo soberano em relação a si mesmo e aos outros (acredito que tal concepção de indivíduo possui um parentesco com uma visão monadológica da individualidade — uma afirmação forte da minha parte, pois Marx pensa que está fazendo uma crítica da individualidade burguesa, isto é, do indivíduo como Robinson Crusoé). O problema maior não é a construção ideal do modelo, mas sim a crença de que tal modelo seja "realista", ou seja, de que o modelo realizar-se-á ao se acabar com a alienação. Evidentemente, toda sociedade que é comparada a tal modelo aparece como necessariamente alienada. Diante do "tudo bom" da sociedade comunista, tudo passa a ser ruim!

Nos MEF, Marx toma o trabalho como a essência humana. Mas, como o trabalho é alienado, a essência do homem aparece na existência como essência alienada; portanto, a essência estaria separada da existência. A proximidade dessa concepção, cuja característica maior é a separação da essência da existência, com a teologia cristã e, claro, ainda com a filosofia hegeliana, é um tanto forte. Para o "jovem" Marx, a história não passa do desenvolvimento da essência, primeiro como sua negação, depois como sua realização. O divórcio entre a essência e a existência só termina com a realização da "missão histórica" do proletariado. Ora, se os indivíduos concretos e o mundo real são alienados e possuem uma existência que manifesta uma essência alienada, a verdadeira essência não estaria mais localizada no ser, e sim no dever-ser, isto é, no campo normativo de um futuro a ser realizado. Contudo, Marx historiza o conceito de alienação ao construir o conceito de "trabalho alienado". Tal conceito vem de Hegel, mas com uma fundamental diferença: para Hegel, a ontologia do trabalho é alienada por si mesma; para Marx, o trabalho é alienado historicamente. Como a essência será realizada na história, a alienação do homem deixa de ser absoluta e passa a ser histórica; logo, necessária, mas em desaparecimento, porque histórica — desse ponto de vista, o "jovem" Marx supera uma visão filosófica que postula que toda objetivação humana é alienada por princípio. Entretanto, como a realização da essência não está na realidade dos indivíduos concretos, mas sim no dever-ser, isto é, no futuro a ser realizado, a cobra volta a engolir o seu próprio rabo, e o problema ad huc judice lis est: a questão fica ainda pendente.

Grundrisse

Devido à complexidade do texto, farei comentários em forma de esquema:

1. Na introdução, Marx postula o método da economia política e produz uma série de considerações epistemológicas fundamentais. Lembrar que, nessa época, Marx relia a Lógica de Hegel; assim, sua epistemologia possuia uma afinidade considerável com a hegeliana. Marx defende que a apreensão do real deve partir do abstrato, chegando ao concreto. Tal movimento significa apropriar-se teoricamente do concreto, transformando-o em "concreto pensado". Numa passagem famosa, afirma: "o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, portanto, a unidade do diverso". A apreensão teórica da realidade é um processo de síntese, reconstruindo progressivamente o real ou o concreto a partir de suas determinações abstratas ou, no dizer de Marx, mais simples. Vale assinalar que, aqui, Marx distancia-se da concepção de Durkheim da simplicidade: um simples... simples, isto é, uma simplicidade original não-complexa; na verdade, o simples é produto do complexo (para falar como Bachelar), pois seria uma "síntese de múltiplas determinações". Do abstrato ao concreto, eis o brasão de Marx.

2. Contudo, pode-se perguntar, no caso específico dos Grundrisse, se Marx não caiu nas rédeas da Lógica de Hegel e não conseguiu desbaratar-se de seus tentáculos epistemológicos. Segundo Thompson,

"Marx foi colhido por uma armadilha: a armadilha preparada pela "Economia Política". Ou, mais exatamente, ele foi sugado por um redemoinho teórico e, apesar de toda a energia com que agita os braços e nada contra a corrente, fica girando lentamente em torno de vórtice que ameaça engoli-lo. Valor, capital, trabalho, dinheiro, valor, estão sempre reaparecendo, são interrogados, re-categorizados, para voltar no movimento circular das mesmas velhas formas, para o mesmo interrogatório"

3. O que Thompson critica nos Grundrisse é o hegelianismo epistemológico de Marx. Hegel deriva as diversas categorias ontológicas uma das outras; Marx parece fazer o mesmo em relação às categorias econômicas. Parece que defende, como Hegel, a "autodeterminação do conceito", personificada na "autodeterminação do capital".

4. Um exemplo disso seria quando Marx produz a famosa cadeia lógica das categorias econômicas: produto => mercadoria => valor-de-troca => dinheiro => capital => trabalho (pp. 87). Sinceramente, ficamos sem saber quem anima o processo. O próprio Marx parece fazer uma retificação confusa quando admite o mistério da correspondência entre a cadeia lógica das categorias econômicas e o processo concreto no qual as categorias aparecem na realidade. Ele fala explicitamente de corrigir a maneira idealista da exposição (pp.88). Idealista ou não, Marx continua "hegeliano" quando persevera na sua visão da "autodeterminação do capital". Tal noção é simplesmente conceitual ou faz parte do comportamento de agentes concretos? — parece não existir agente nesse movimento fechado do capital.

5. Acredito que o grande mérito de Marx, no capitulo do dinheiro dos Grundrisse, foi o esboço de uma sociologia do dinheiro — afinal, dinheiro é uma coisa por demasiada importante para deixar nas mãos dos economistas. Marx afirma uma relação estrutural entre o dinheiro, a riqueza, o capital e a distribuição do poder na sociedade capitalista. O dinheiro não seria politicamente neutro, como sempre quis a economia clássica; pelo contrário: a posse do dinheiro estaria relacionada a questões de poder. Marx percebe as utilidades funcionais do dinheiro, mas tenta mostrar que a funcionalidade do dinheiro pode ser entendida também via uma apreensão política econômica. O dinheiro não seria apenas um instrumento utilizado para coordenar as atividades de produtores independentes no âmbito de uma divisão social do trabalho, mas também a forma fundamental mediante a qual a força de trabalho pode ser transformada em mercadoria — sem dinheiro não haveria trabalho assalariado. Para Marx, pelo que entendi, o dinheiro pode ser até politicamente neutro, se considerarmos apenas a esfera da circulação dos bens; mas, fundamentalmente, o dinheiro seria uma expressão das características das relações econômicas e das tensões no capitalismo. Ele seria a expressão e não a causa direta das contradições do capitalismo, como queriam os proudhonistas. A abolição do dinheiro não amenizaria as contradições capitalistas; ao contrário, por ser expressão das relações econômicas, ele retornaria novamente de alguma outra forma.

6. Pelo que entendi, o dinheiro é uma condição sine qua non para o surgimento de uma sociedade capitalista. Através dele, o trabalho abstrato pode ser quantificado e, principalmente, liberado de constrangimentos sociais e espaciais, como acontecia no feudalismo. Marx produz uma sociologia do dinheiro ao analisar a forma pela qual as relações de produção capitalistas assumiram graças ao papel do dinheiro, principalmente na sua função de "mercantilizar" o trabalho abstrato. Pode-se afirmar que a explicação marxiana da formação do dinheiro no capitalismo está umbilicalmente relacionada à sua teoria da organização e distribuição do poder na sociedade capitalista.

7. Marx parece deduzir a auto-expansão do valor (capital) do conceito de dinheiro. E, como o valor é deduzido do trabalho, o sobre-trabalho é deduzido de uma apropriação monetária do trabalho. Marx finca seu conceito de dinheiro na produção, já que produz uma relação de determinação entre a troca e a atividade produtiva. Não seria o papel especial que tem o dinheiro nas relações de troca que dariam o seu valor no capitalismo, mas sim do seu status de mercadoria, e a determinação dessa condição vem da produção (pelo menos, essa posição é explícita no Capital). O dinheiro, assim, seria a cristalização das relações de produção capitalistas.

8. A vinculação do dinheiro à produção pode ser interessante por um lado, mas, por outro, pode trazer alguns problemas analíticos. A relação entre a produção e os setores financeiros não pode, na atualidade, ser explicada a partir de um modelo econômico centrado na produção. A troca (logo, o dinheiro) precisa ter uma autonomia, no mínimo relativa, em relação à esfera da produção. Como explicar as transações financeiras na globalização pelo modelo marxiano? Não se explica, simplesmente.

9. Apesar de propor uma sociologia do dinheiro, a teoria marxiana não consegue (na verdade, não se interessa em) caracterizar os comportamentos dos indivíduos em relação ao dinheiro. Como os indivíduos, principalmente os agentes financeiros, lidam com o dinheiro? O papel do dinheiro, nas atuais transações financeiras, funciona muitas vezes como informação monetária, influenciando o comportamento dos indivíduos. A teoria do dinheiro de Marx não consegue atingir as motivações e as razões individuais por trás da demanda de dinheiro.

10. Enfim, se a teoria do dinheiro em Marx não consegue atingir o comportamento dos agentes econômicos, já que estes são muito mais personificações de estruturas econômicas do que verdadeiros sujeitos com um mínimo poder de ação, tal teoria tem uma dificuldade intrínseca em analisar um fenômeno fundamental do mundo contemporâneo: o consumismo — até porque Marx sempre centrou sua análise muito mais no produtor do que no consumidor, pois sempre privilegiou analiticamente a esfera produtiva. E, por fim, analisar os comportamentos concretos dos indivíduos em relação ao dinheiro precisaria de um exame estrutural da relação entre o dinheiro e o Estado — a análise marxiana não dá conta de tal questão.

Aaaah, isso sou eu caindo do prédio... Eu avisei...

Durante a queda, repito a todo momento: _até aqui tudo vai bem...

Artur Perrusi

________
E. P Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 71.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

'O Homem de Areia', por Paul Berry

Muito boa adaptação de Paul Berry do conto de ETA Hoffman. Entre outras razões, o conto ficou célebre pelo uso que dele faz Freud em seu ensaio "O Estranho". Infelizmente, as cores da animação ficaram muito estouradas nessa cópía disponibilizada pelo Youtube. De qualquer modo, aí vai.

Nota Cultural



Como o Cazzo também é cultura, não poderíamos deixar de postar uma notinha sobre um dos eventos culturais mais importantes do ano, o novo filme de Indiana Jones. É o seguinte: Indy continua o mesmo. Já o Spielberg, hum... não sei, não.

Cynthia

terça-feira, 20 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não-civilizados



A Vênus Hotentote (parte 2)

A primeira mirada na Vênus

Embora nos últimos anos Sara Baartman tenha se tornado objeto de um grande número de artigos, romances e até documentários, sabe-se pouco sobre ela. A maioria das informações vem de artigos de jornal, de relatórios “científicos” daqueles que a examinaram e de autos de um processo no qual esteve envolvida. Como enfatiza Anne Fausto-Sterling (1995: 28), isto aponta para a construção social de sua identidade a partir de “marcas históricas escritas da perspectiva de uma cultura dominante” e que não leva em conta a perspectiva da própria Baartman e de seu povo. As fontes diferem, por exemplo, em relação a sua data de nascimento e de sua morte. Diversos autores afirmam que ela nasceu em 1789 ou 1790 e que tinha entre 19 e 20 quando chegou à Inglaterra, em 1810 (ver Blackledge, 2003). Outros, ainda, entre eles o próprio Cuvier, afirmam que ela tinha 28 anos quando faleceu em Paris, no final de 1815, enquanto a inscrição da caixa em que ela foi exibida no Musée de L’Homme, que ela morreu aos 38 anos (Fausto-Sterling, 1995). O que é certo, no entanto, é que chegou à Inglaterra em 1810, trazida por Alexander Dunlop, médico de um navio inglês que exportava espécimes da fauna, flora e nativos das colônias inglesas. Como Baartman chegou às mãos de Dunlop já não é tão certo.

Acredita-se que Dunlop a tenha comprado de Peter Cezar, um fazendeiro holandês que habitava próximo à Cidade do Cabo, embora não existam evidências que comprovem que ela tenha sido vendida e não acompanhado Dunlop por livre e espontânea vontade. De fato, dada a subjugação sistemática a que seu povo foi submetido por holandeses e ingleses, não é impossível que ela tenha partido para a Europa voluntariamente, em busca de um futuro melhor e diante de promessas de dinheiro fácil. Baartman passou a trabalhar para Peter Cezar depois que seu pai, um pastor de animais, foi morto. Acredita-se, ainda, que ela tenha tido pelo menos um filho. Seu status de escrava não é comprovado, mas foi da família Cezar que recebeu o seu nome, cujo diminutivo Saartjie (pronuncia-se Sar-qui), “ou pequena Sara em africâner” (Gould, 2004: 272), era um tratamento comum dispensado aos escravos e aos negros em geral, ao atribuir a eles o status de crianças (Qureshi, 2004: 235).

A nação hotentote estava oficialmente sob a guarda do governador britânico no Cabo da Boa Esperança “em razão do seu estado de imbecilidade geral” (Kirby apud Fausto-Sterling, 1995: 29) e suspeita-se de que Dunlop tenha se aproveitado de seu status para conseguir autorização para sua exportação da mesma forma que conseguia autorização para a comercialização de plantas e animais exóticos (Qureshi, 2004). Segundo Stephen Jay Gould, no entanto (2004), foi Hendrick Cezar, irmão de Peter Cezar, que conseguiu a documentação necessária para levá-la à Inglaterra e a permissão foi concedida pelo Governador Geral da Província do Cabo, Lord Caledon, que arrependeu-se mais tarde, ao compreender plenamente os objetivos da viagem.

Com a autorização em mãos, Dunlop leva Baartman à Inglaterra, juntamente com um couro de girafa. Ao chegar lá, oferece-a a William Bullock, colecionador de produtos exóticos trazidos das colônias e, mais tarde, proprietário do Salão Egípcio, um museu localizado no número 225 da rua Piccadilly, Londres. Bullock recusa a oferta e Baartman é então oferecida ao mesmo Hendrick Cezar que Gould afirma ter conseguido a autorização para levá-la para a Europa. Pouco se sabe dele, mas alguns autores sugerem que era ele o showman responsável pela exibição pública de Baartman no próprio Salão Egípcio, dado que o nome é holandês e sabe-se que seu guardião falava com ela em holandês durante as apresentações (Kirby apud Qureshi, 2004).

A exibição de Sara Baartman não tinha nada de excepcional se considerarmos que a exibição de curiosidades humanas, objetos e animais exóticos era comum na Inglaterra. Anões, gigantes, mulheres barbadas, negros, indígenas, porcos falantes, animais monstruosos e raros compunham a estranha fauna. De fato, os shows de anomalias (chamados “freak shows”), zoológicos humanos e animais, museus, feiras e circos faziam parte das possibilidades de entretenimento oferecidas nas cidades européias. Alguns desses shows eram intinerantes e viajavam pelas pequenas cidades do interior. Estas formas de entretenimento tornaram-se um dos principais veículos para a criação de visões específicas acerca um mundo não-branco (Fausto-Sterling, 1995).

Foi neste contexto que, pouco depois de sua chegada, Baartman foi exibida no Salão Egípcio, onde o público poderia observá-la em grupos de no mínimo 12 pessoas, acompanhados por uma mulher, “se requerido”, ao preço de 2 xelins por cabeça. A propaganda para o show enfatizava ainda que ela possuía formas grandemente admiradas por seus compatriotas e que sua roupa, muito apertada e no tom de sua pele, dava a impressão de que ela estava nua. Além disso, usava contas e penas de avestruz, elementos associados à sua ancestralidade africana, e, ocasionalmente, tocava um instrumento de uma corda só. Baartman era exibida ao lado de outras curiosidades humanas: “o menino com pintas; o elegante anão, conde Boruwaski; o esqueleto humano; Daniel Lambert, um homem de 36 anos pesando mais de 50 stones [ou 300kg); a senhorita Crackham, uma jovem medindo apenas 22,5 polegadas [cerca de 57 cm], cujo nome artístico era ‘a Fada Siciliana’.” (Qureshi, 2004: 236-37).

O show do qual Baartman era atração estabelecia uma relação íntima e direta entre as noções da fêmea selvagem, por um lado, e de uma sexualidade perigosa e incontrolável, por outro. No início de sua apresentação, encenada em uma plataforma, ela era conduzida por um treinador ou carcereiro (possivelmente Hendrick Cezar) que a ordenava a sair e entrar em sua jaula, sentar-se e levantar-se. A imagem de sua natureza selvagem e perigosa era ainda enfatizada à medida que Baartman balançava-se para frente e para trás em sua jaula, como um animal selvagem (Fausto-Sterling, 1995). Um freqüentador da cena do entretenimento londrina, o comediante Charles Matthew (apud Qureshi, 2004: 236), afirmou após sua visita a Baartman:

[Ela estava] rodeada por muitas pessoas, algumas, mulheres! Uma a beliscou; um senhor a espetou com sua bengala; uma senhora se utilizou de sua sombrinha para ter certeza de que tudo era, como ela chamou, ‘natural’. A pobre criatura suportava esses ataques desumanos com uma indiferença solitária, exceto após algumas provocações, quando ela parecia inclinada a se ressentir da brutalidade... Nessas ocasiões, era necessária toda a autoridade do treinador para subjugar seu ressentimento.

O que tornou a exibição de Sara Baartman tão especial? Afinal de contas, ela era apenas mais uma das monstruosidades exibidas em Londres. Parte da explicação é que ela era mulher. Embora Londres tivesse uma população negra substancial para a época (estima-se em cerca de 20.000 o número de negros residentes em Londres em 1764 e o censo de 1801 registra uma população total de 958.863 habitantes naquela cidade), a grande maioria dos ex-escravos eram homens (Qureshi, 2004: 240-41). Mulheres, especialmente Khoisans, não eram comuns. Mas isso não explica a história toda. De fato, Baartman só se torna um sucesso de público quando uma questão política vem à tona e seu caso passa a ser percebido a partir de uma outra perspectiva: a do movimento abolicionista inglês.

A escravidão foi abolida na Inglaterra em 1807, isto é, meros 3 anos antes da chegada de Baartman, tendo perdurado até 1833 nas colônias inglesas. Os anos que se seguiram à abolição na Inglaterra correspondem ao período em que o movimento anti-escravagista estava reunindo forças para estender a abolição para as colônias (London Sugar & Slavery S/D) e uma de suas estratégias políticas consistia em criar uma imagem unitária do negro que apagava as diferenças entre os diversos povos (Qureshi, 2004: 241). Certamente que Baartman era diferente: sua caracterização como hotentote (o que, como vimos, aponta para um ethos específico, de acordo com a percepção dos ingleses do século XVIII), seu tamanho diminuto, sua esteatopigia e a forma de sua genitália (objeto de debate desde o século XVII) apontavam para características específicas que não eram compartilhadas pelos ex-escravos que habitavam as cidades inglesas. Não é, portanto, evidente que ela pudesse ser identificada como membro de um mesmo grupo (negros) apenas a partir da cor de sua pele. Mas foi justamente isso que aconteceu. Um membro de uma das diversas organizações abolicionistas que atuavam na Inglaterra do início do século XIX, a Associação Africana, assistiu uma das performances de Baartman, que descreveu da seguinte forma:

Ao receber a ordem do carcereiro, ela saiu... A hotentote foi apresentada como um animal selvagem, e foi-lhe ordenado que andasse para trás e para diante, e que saísse e entrasse na jaula, mais como um urso treinado do que como um ser humano. (citado em Gould, 2004: 273).

Em 12 de outubro de 1810, o jornal inglês Morning Chronicle publicou uma carta de denúncia enviada por “um cidadão inglês” que acreditava que a exibição de Baartman era “contrária a todo princípio de moralidade e ordem” na medida em que relacionava “ofensa à decência pública com a mais terrível das situações, a escravidão”. A resposta de Hendrick Cezar veio na forma de duas cartas, onde enfatizava que ela tinha o mesmo direito de se exibir para ganhar a vida que um “gigante irlandês ou um anão” (citado em Qureshi, 2004: 238). O caso acabou na justiça e os abolicionistas, que se auto-proclamaram protetores de Baartman, argumentaram no tribunal que a exibição era indecente e que ela estava presa contra sua vontade. Juntamente com a Associação Africana, os abolicionistas tentaram repatriar Baartman para sua terra natal. Questionada em holandês perante o tribunal, ela afirmou que não sofria abuso sexual, que foi para Londres por livre e espontânea vontade, que compreendia perfeitamente bem que haviam lhe prometido metade dos lucros e que tinha até dois negrinhos para servi-la, mas que gostaria de roupas mais quentes (Gould, 2004; Fausto-Sterling, 1995). Ao final, a corte decidiu em favor de Hendrick Cezar quando este apresentou um contrato (possivelmente forjado) entre Baartman e Alexander Dunlop (Qureshi, 2004).

Assim, o show continuou e foi exibido por outras cidades inglesas e irlandesas até cerca de 1814, quando Baartman deixou de ser uma novidade e foi para Paris, onde passou a ser exibida pelo criador de animais S. Réaux. Sua temporada em Paris, que dura até sua morte em 1815, constitui o que chamei de segunda mirada na Vênus e que será o tema do próximo post.

Cynthia Hamlin

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Punição



A ComCiência, Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, publicou hoje um número especial sobre 'Punição'. Vale a pena ler. Você encontra um link para a ComCiência nas Páginas Úteis do Cazzo.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (tem mais)



Mármore da Afrodite Calipígia, Museo Archeologico Nazionale, Nápoles

A Vênus Hotentote (parte 1)

Neste post, encomendado por Jonatas a facão, chantagem emocional e outros métodos academicamente pouco ortodoxos, farei um breve relato sobre Sara Baartman, mais conhecida como a Vênus Hotentote. A idéia é que ela pode representar um estudo de caso interessante para ilustrar a constituição de um discurso civilizador que atinge sua forma mais perfeita de justificação com a emergência das ciências biológicas. Aqui, vale um adendo. Embora reconheça uma dimensão ideológica no discurso científico, acredito que sua abertura intrínseca à crítica ainda o torna superior a outras formas de discurso que pretendem algum compromisso com o real. Neste aspecto, continuo ultra-Iluminista. Nada de identificações pós-modernas entre ciência, literatura, religião e bruxaria, portanto. Às vezes, acredito que esta visão é compartilhada por Jonatas e, neste sentido, pode ser que nossas reflexões se complementem.

Esses prolegômenos, confesso, fazem parte de um mecanismo de auto-convencimento que aciono sempre que sinto certo, como diria... pânico diante de uma tarefa que me é confiada. Jonatas escreve umas coisas difíceis que quase sempre acabam me convencendo contra a minha vontade. Tenho horror quando ele faz isso. Além do mais, dá um medo danado de que ele me arraste para o armário onde, vez por outra, veste sua fantasia de pós-moderno. Se alguém notar que ele está me arrastando para o armário, por favor, me socorram! Dito isto, vamos ao que interessa.

Quem foi Sara Baartman? Quando foi que esta mulher, uma negra de cerca de 1,37m de altura, saída das profundezas do que hoje corresponde ao território Sul-Africano, tornou-se objeto do olhar? Mais importante, como este olhar a constituiu como um ícone do colonialismo, do racismo, do sexismo? Uma pista importante nos é dada pelo próprio nome com que ficou conhecida: Vênus Hotentote. A junção dessas duas palavras poderia parecer um oxímoron, não fosse aquilo que Jonatas chamou em um post anterior de “a força ambígua do estereótipo”. Temos aí, na verdade, dois estereótipos em um só. Por um lado, a imagem da Vênus, a deusa do amor e da beleza (Afrodite, para os Gregos); por outro, uma concepção do que seria o povo mais selvagem, mais animalesco, mais aparentado com os orangotangos que povoava a imaginação dos europeus do século XIX. Uma piada de mau-gosto? Talvez. Mas como muitas piadas de mau-gosto revela repulsa e atração, fascinação e desprezo. Em suma, muito do que é necessário para capturar o olhar.

A riqueza da imagem de Afrodite reside em suas representações múltiplas do feminino. Em sua origem, era uma deusa da fertilidade e sua ação se estendia a toda a natureza, plantas, animais, seres humanos. Em seguida, torna-se a deusa do amor, de suas formas mais nobres às mais degradantes. A Afrodite Urânia (ou Celeste) representa o amor puro, ideal; a Afrodite Genetriz (ou Nínfia) presidia os partos; a Afrodite Hetaíra (ou Porné, ou Pandemós) era a deusa da lubricidade, do amor venal, patronesse das prostitutas (Guirand, 1935). Essas eram as principais formas em que era adorada na Grécia antiga. Mas existe uma representação particular da deusa que é especialmente intrigante: a Afrodite Kallipygus, ou Vênus Calipígia, a das belas nádegas ( de “kallos”, que quer dizer “beleza”, e “pyge”, nádegas). Adorada na Siracusa, na antiguidade clássica, tem sua representação mais famosa na forma de uma estátua de mármore romana (copiada de um original grego) e que se tornou conhecida ao ser adicionada ao Museu Real de Nápoles em 1802 (Baartman chega à Inglaterra em 1810). O catálogo do museu (http://www.sacred-texts.com/sex/rmn/rmn04.htm) nos dá uma idéia do poder de atração que a Vênus Calipígia tem exercido desde o século XIX, quando se encontrava no palácio Farnese, como propriedade do rei de Nápoles:

[A estátua] não é parte do gabinete de obras de arte privadas, mas é colocada em uma sala reservada, onde os curiosos só podem entrar sob o olhar vigilante de um guarda, embora nem mesmo esta precaução tenha evitado que as formas arredondadas que emprestaram à deusa o nome Calipígia tenham ficado cobertas com uma camada escura, que trai os beijos profanos que admiradores fanáticos imprimiam lá todos os dias. Nós mesmos conhecemos um jovem turista alemão tomado por uma paixão louca por este mármore voluptuoso; e a comiseração que o seu estado mental inspirou nos fez abandonar qualquer idéia de ridículo.

Como veremos mais adiante, uma das coisas que atraíam o olhar dos europeus a Sara Baartman era o que poderíamos chamar de suas virtudes calipígias. Em uma linguagem menos poética, o que se conhece como esteatopigia, ou uma hipertrofia das nádegas por acúmulo de gordura. Mas não era só isso que a ligava à Vênus. Uma das idéias implícitas nesta associação era a de que as mulheres de climas mais quentes tinham impulsos sexuais mais fortes, menos controlados, mais bestiais, do que as européias “devido à influência do passional planeta Vênus” (Blackledge, 2003: 141). Outra, intrinsecamente associada a ela (e que explica também a suposta natureza, ora hiper-sexualizada, ora de uma “frigidez feminina”, de homens negros, asiáticos e nativos das américas), é a identificação de terras descobertas pelos europeus como femininas, prontas a serem penetradas, exploradas, desbravadas e civilizadas.

O outro nome associado a Baartman, a Vênus, era Hotentote. O termo foi utilizado pelos colonizadores holandeses da África do Sul desde o século XVII como uma espécie de onomatopéia que descrevia os sons de clique característicos de alguns dialetos africanos, em especial, de grupos que se localizavam entre a Cidade do Cabo e a Namíbia. “Hot-en-tot” era um termo que significava “gago” e, segundo a definição do Oxford Dictionary, designa “alguém de cultura e intelecto inferior”. Isto é compatível com a visão européia, predominante até o século XVIII, que classificava os povos de acordo com graus distintos de civilização – algo que, como veremos, muda substancialmente no século XIX a partir da introdução do conceito de raça. Os próprios hotentotes, por seu turno, designavam-se Khoi Khoi, que significa “homens dos homens”. Cerca de sessenta anos após o estabelecimento dos holandeses, os Khoi Khoi, como uma cultura distinta e organizada, foram extintos, especialmente devido à varíola e à invasão holandesa de suas terras. Nos séculos XVIII e XIX, os europeus continuavam a se referir aos hotentotes, embora de maneira intercambiável com o termo “bosquímanos”. Para os antropólogos, entretanto, os bosquímanos ou Khoisan constituem um grupo fisicamente parecido, mas culturalmente distinto, que vivia próximo aos Khoi Khoi (Fausto-Sterling, 1995: 22). A caracterização de Sara Baartman, ora como hotentote, ora como bosquímana, está intimamente relacionada à substituição de uma classificação dos povos com base em graus de civilização por uma de bases raciais.

A incivilidade ou o barbarismo daqueles descritos como hotentotes aparece claramente nos relatos dos viajantes ingleses dos séculos XVII e XVIII. Em um site da universidade americana de West Chester, acerca da percepção dos ingleses do século XVIII sobre a África, podemos encontrar os seguintes relatos acerca dos hotentotes:

Seu barbarismo nativo e sua vida ociosa no deserto, juntamente com uma ignorância infeliz acerca de todas as virtudes, impõem sobre suas mentes toda forma de prazer cruel. Por meio de sua ausência de fé, de sua inconstância, mentira, engano, traição e preocupações infames com todo tipo de lubricidade, eles exercem sua vilania. (Holden, 2003)

Ou, ainda:

Eles têm o temperamento de animais selvagens(Ibid.).

E:

As mulheres podem ser distinguidas dos homens por sua feiúra(Ibid).

Neste período, portanto, percebe-se que algo que inicialmente designava um modo de falar passa a designar o caráter de um povo. De hotentote, passamos a hotentotismo, termo que serve de justificação às missões religiosas e outros projetos civilizatórios e exploratórios. Como afirmou um dos maiores poetas do romantismo inglês, Samuel Taylor Coleridge, “alguns hotentotes foram convertidos do hotentotismo por meio do trabalho piedoso da Sociedade Missionária” (Coleridge, 1850: 957).

Assim, é a partir dessas representações de uma Vênus hiper-sexualizada, por um lado, e de um povo que se encontrava na base da hierarquia civilizatória, por outro, que podemos compreender os olhares dirigidos a Baartman em sua chegada à Inglaterra, em 1810. Seu período inglês corresponde ao que chamarei aqui de a primeira mirada na Vênus, quando a politização do seu corpo apaga as diferenças específicas de seu povo à medida que ele é apropriado pelo movimento anti-escravagista inglês. A segunda mirada, que corresponde ao período que passou em Paris, refere-se ao olhar clínico dos cientistas da época, notadamente o de Georges Cuvier, um dos maiores anatomistas franceses do século XIX, conhecido como o pai da paleontologia. Por fim, a terceira mirada corresponde à dos movimentos sociais contemporâneos, que elevaram Baartman a ícone das lutas anti-colonialistas e a heroína nacional da África do Sul ao constituir objeto de uma intensa negociação entre os governos de Nelson Mandela e de François Mitterand, numa querela política que durou cerca de sete anos, a fim de que seus restos mortais fossem retirados do Musée de L’Homme, em Paris, e devolvidos ao seu povo.

(continua)

Cynthia Hamlin

Enquanto issso, na Sala de Justiça....

terça-feira, 13 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (terceira parte)


Perfis de Criminosos, segundo Lombroso

A circulação de Corpos Negros

Na história da teratologia, Ambroise Paré é considerado um divisor de águas entre o pensamento medieval e a cultura renascentista. Janis Pallister, tradutor para o inglês do célebre Des monstres et prodiges, chegou a afirmar que o empirismo de Paré, no que concerne ao surgimento de monstruosidades, sua ênfase nas causas, no fenômeno da reprodução, torná-lo-iam um “moderno” na Querela dos Antigos e Modernos - o que, a meu ver, é um claro exagero. Paré é um homem dividido entre o compromisso de produzir manuais para seus pares cirurgiões em língua laica, de difundir, compartilhar conhecimento, e mesmo de definir critérios empíricos para qualificá-lo, e, por outro lado, concessões à autoridade da tradição - quer essa autoridade venha de Aristóteles, Hipócrates, Plínio ou de um digno funcionário do Conde Fulano de Tal. A lógica que orienta a escrita de Monstros e Prodígios é classificatória. Todos e qualquer monstro pertenceria a um de quatro domínios: terra, água, ar ou fogo (Pallister in Paré, 1983, p. xxvi).

Quanto à sua causa, os monstros seriam de vários tipos, entre os quais, destacamos: “determinados pela glória de Deus”, “por sua cólera”, “pela quantidade de sêmen” (demasiada ou escassa), “pela imaginação” (feminina, sempre), “postura indecente da mãe”, “hereditariedade”, pelo ardil de Demônios ou Diabos, “pelo artifício de mendigos”. Esse último caso merece uma nota especial, visto que segundo uma lógica classificatória que estivesse mais próxima do conhecimento científico moderno ele seria desprezado. Ora alguém que finge lepra ou ter três braços, ou seja, alguém que consegue esse efeito por fraude, dificilmente seria classificado como monstro, mas apenas como impostor. Paré não vê aqui uma contradição: trata-se de um impostor, mas ao mesmo tempo precisa ser classificado no rol dos monstros por aparecer diante de todos como tal. Ao nos depararmos com o princípio de organização de Monstros e Prodígios, difícil não lembrar de As Palavras e as Coisas, daquilo que Foucault julga como um passo na direção de uma episteme moderna, ou seja a preocupação com a taxonomia, de classificar os seres a partir de suas similitudes. Difícil também deixar de citar o delicioso texto de Borges com o qual Foucault abre aquele livro.

“Esse texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde será escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas” (Foucault, 2002, p.x)


Assim, podemos dizer a respeito de Monstros e prodígios que, em meio às explicações do demonólogo, do católico convicto, do moralista, é possível perceber a tentativa de explicação que pretende ser objetiva. Ora, como veremos, a preocupação com objetividade, com o teste empírico, não é antídoto para a violência requerida pela própria prática científica. Objeto de conhecimento obtido metódica e empiricamente ou legitimado pela autoridade da tradição, a mulher tem sempre um papel central na reprodução da monstruosidade, embora, diferentemente da visão que predomina no final da Idade Média, Paré não acredita que o monstro seja sempre fruto do pecado (Ver Kappler, 1994, 360).

“Os antigos também observaram através de longas experiências que a mulher que concebeu durante suas regras engendrará aqueles propensos à lepra, escorbuto, gota, escrófula, e mais, ou sujeitos a mil doenças diferentes: tanto mais porque a criança concebida durante o fluxo menstrual nutre-se e cresce – estando no ventre de sua mãe – do sangue contaminado, sujo, e corrupto [...]”. (Paré, 1983, p. 5)


Em um post anterior, afirmamos que, com o declínio do feudalismo, diante da evidência da circulação de corpos considerados negros, monstruososos, corpos estrangeiros transformados em mercadoria, a vontade classificatória, ou seja, de poder perceber o lugar preciso em que cada coisa pertence, é em princípio reforçada, mas termina por se enfraquecer - e esse enfraquecimento significa a consolidação do pensamento científico moderno e sua inserção nas estratégias de poder do capitalismo. O argumento é: o pleno desenvolvimento do capitalismo não pode operar confortavelmente a partir da noção de um lugar próprio para todos os seres, mas a partir da plena circulação dos corpos, ou seja, a partir da idéia de um espaço vazio em que tudo possa ser trocado. Evidentemente, as pressões desse tipo de circulação demandam formas de controle político bastante específicas. A taxonomia pode ser entendida a partir dessa necessidade.

Em A Mind of its Own. A cultural history of the penis, David Friedman nos conta da reação dos primeiros aventureiros ingleses ao pisar solo africano diante de uma natureza exuberante, dificilmente comparável aos padrões estéticos europeus. Uma parte da natureza do continente africano chama particularmente a atenção de aventureiros como Richard Jobson. Em 1623 ele reconta de sua experiência de exploração do Rio Gâmbia, na África ocidental. “Os olhos desse cavalheiro quase saltaram de suas órbitas anglo-saxãs quando seu barco foi abalroado por um hipopótamo, e Jobson ficou igualmente perplexo diante da visão de um formigueiro mais alto que a maioria das casas de Londres”. Tudo isso, de fato, parecia suficientemente surpreendente.

“Mas foi uma outra exibição de vida selvagem local que abriram ainda mais seus olhos. ‘Os Senhores Negros desse país, Jobson escreveu dos nativos da tribo Mandingo que ele encontrou dos dois lados do rio, ‘são dotados de membros tão colossais que se tornam um estorvo para eles’” (Friedman, 2001, p. 103).


Um certo Dr. Jacobus Surtor, algumas décadas depois de Lord Jobson teve a oportunidade de encontrar nos sudaneses exemplos de uma máquina ainda mais “aterrorizante”, mais próxima do pênis de um “jumento” que de um “ser humano”. O pênis do africano foi objeto de curiosidade não apenas de exploradores, mas da investigação “de cada uma das escolas de anatomia de Londres” (Ibid, p. 105).

O negro circula pela Europa como escravo, como mercadoria, e como possuidor de perigosas máquinas de reprodução. E essa circulação significa, por vezes, literalmente castração, ou seja, a circulação de membros amputados como curiosidade científica. A ciência constrói canais através dos quais esses objetos de medo e admiração, de horror e de fascinação, circulariam de modo seguro: em jarras próprias à observação. Além disso, ela constrói um discurso que pavimenta esse trânsito. O anatomista Edward D. Cope escreve no século dezenove que “o cérebro maior do caucasiano prova sua superioridade intelectual e status civilizado, mas o maior pênis do negro prova sua inferioridade intelectual e selvageria inata” (Friedman, 2001, p. 106). Esse tipo de discurso será repetido à exaustão no século XIX por cientistas como Gobineau, Lombroso, Galton.

Bem antes, no entanto, na History of Jamaica, de 1774, um certo Edward Long observa: “Eu não penso que um marido oragotango desonre uma fêmea hotentote” (Ibid, p. 112). Em tom menos sisudo, por essa época, encontramos o seguinte depoimento de Bocage, fascinado por um certo e bem dotado negro Ribeiro:

“Ações famosas do fodaz Ribeiro,
Preto na cara, enorme no mangalho,
Eu pretendo cantar em tom grosseiro,
Se a musa me ajudar neste trabalho:
Pasme absorto escutando o mundo inteiro
A porca descrição do horrendo malho,
Que entre as pernas alberga o negro bruto
No lascivo apetite dissoluto.
............................................
Em Tróia, de Setúbal bairro inculto,
Mora o preto castiço, de quem falo;
Cujo nervo é de sorte, e tem tal vulto,
Que excede o longo espeto de um cavalo:
Sem querer nos calções estar oculto,
Quando se entesa o túmido badalo,
Ora arranca os botões com fúria rija,
Ora arromba as paredes, quando mija”.

O fodaz Ribeiro é tosco, sujo, descomunal, pura potência sexual. O que aqui surge como grotesco, não deixa de denotar fascinação e inveja. Foi necessário muita explicação científica para que esses sentimentos fossem anestesiados pela objetividade científica: a um ser mais próximo da natureza, ou seja, mais próprio de um animal, um jumento, um orangotango, cai bem tamanha enormidade entre as pernas; a um ser da razão, a um ser evoluído, seria mais adequado um pênis mais modesto e um crânio mais desenvolvido. Nossas ciências sociais nascentes não podem deixar de depor a esse respeito. Assim, as considerações de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala acerca da aptidão civilizadora proativa do branco envolvem observações acerca do tamanho de seu pênis em relação ao do escravo índio – nesse caso, todavia, com desvantagem para os segundos. No contexto, fica claro o sentido da observação freyreana: a civilização nos trópicos exigiu a energia sexual do branco português; sem ela, a ocupação do litoral teria sido impossível.

"Segundo alguns observadores, entre certos grupos de gente de cor os órgãos genitais apresentam-se em geral menos desenvolvidos que entre os brancos; além do que, como já foi dito, os selvagens sentem necessidade de práticas saturnais ou orgiásticas para compensarem-se, pelo erotismo indireto, da dificuldade de atingirem a seco, sem o óleo afrodisíaco que é o suor das danças lascivas, ao estado de excitação e intumescência tão facilmente conseguido pelos civilizados. Estes estão sempre prontos para o coito; os selvagens, em geral, só o praticam picados pela fome sexual. Parece que os mais primitivos tinham até época para a união de machos e fêmeas". (Freyre, G. Casa Grande e Senzala, p. 102)



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(por editar)
Jonatas Ferreira

domingo, 11 de maio de 2008

Os movimentos divididos e as ilusões mescladas


José Carlos Guimarães morto com um tiro na cabeça na rua Maria Antônia em 1968

Apenas alguns dias depois do golpe militar de 31 de março de 1964, li na porta do banheiro masculino que ficava no fim do primeiro lanço de escada da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, esta ponderação: “Em terra de cego, quem tem um olho emigra.” Em 1968, os estudantes tomariam o prédio da Faculdade. Acabariam sendo atacados por grupos direitistas organizados, da Universidade Mackenzie, o prédio incendiado com coquetéis molotov e todos seríamos deportados para a Cidade Universitária. Em 1977 teríamos nossas acomodações definitivas numa construção de melancólicas paredes brancas. Logo nos primeiros dias, um estudante grafitou com enormes letras vermelhas, manuscritas, num dos corredores de acesso às salas de aula: “Parede, eu te livro dessa brancura!”

É nesse desencontrado imaginário de ceticismo, esperança e ímpeto libertador que se pode compreender 1968 aqui nos trópicos. O maio de 68 francês era outra coisa. O que aqui aconteceu pouco tem a ver com o que aconteceu na França. Lá os estudantes arrebataram a bandeira da luta de classes das mãos da classe operária, uma circulação de elites nas lutas sociais. Aqui as ilusões se mesclaram. Aqui era a classe média alcançada pelo arrocho salarial da ditadura que alimentara esperanças de ascensão social por meio da Universidade e experimentara a luta dos excedentes no começo daquele ano, os aprovados para os quais a Universidade não tinha vagas. Os banidos da esperança, os sem futuro, agarravam-se às asas do último avião.

O movimento estudantil estava dividido e as esquerdas dividiam-se mais ainda. Tinham uma concepção do processo que vivíamos norteada pelo marco de realidades muito diferentes da nossa. Os estudantes tentavam encaixar-se na luta de classes, embora fossem de uma classe que não luta nem tem contra o que lutar, a classe média, uma classe híbrida e da ordem. Reivindica em nome de interesses, mas não tem como lutar contra estruturas sociais sem negar-se e anular-se.

Os acontecimentos de 1968, na rua Maria Antônia, longe de terem sido expressão de convergência de idéias e de propósitos e de um grande encontro político, foram expressão de divisão, de falta de clareza quanto ao que acontecia no Brasil. As fantasias juvenis da Maria Antônia, libertárias e belas, não davam conta nem mesmo do que estava em andamento lá dentro do prédio. Os estudantes atacaram a Universidade imaginando que por esse meio atacavam a ditadura e, em conseqüência, atacavam o capitalismo. Queriam uma revolução social com o que era apenas um vago projeto de reforma política da Universidade. Atacaram a instituição como se fosse um remanescente da sociedade feudal e demoliram justamente um dos últimos poderes de afirmação da liberdade de pensamento e de criação no contexto de um regime ditatorial.

Depois de anos de disputa política com os comunistas, a direção do movimento estudantil estava nas mãos da Ação Popular, dissidência da Juventude Universitária Católica. Os estudantes sussurravam no saguão da Faculdade informações sobre um levante próximo da classe operária nas fábricas de Osasco. De fato, a greve teve início em 16 de julho e expandiu-se para várias indústrias. A Cobrasma foi ocupada. De comum entre o sindicalismo de Osasco e a liderança dos ocupantes da Faculdade de Filosofia a forte presença da Ação Católica, em oposição ao Partido Comunista e outras organizações de esquerda, que só se aproximariam em meados dos anos setenta.

O ministro do Trabalho, coronel Passarinho, voou para Osasco, decretou intervenção no Sindicato, pôs o Exército nas ruas e nas fábricas, prendeu gente. A greve operária durou três dias. A aliança operário-estudantil terminava ali. A ocupação da Faculdade de Filosofia terminou em outubro, as aulas transferidas para a Cidade Universitária. Pouco depois, em abril de 1969, professores seriam aposentados compulsoriamente, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço. Do movimento estudantil, muitos iriam para a prisão e o exílio, outros para a luta armada e a morte.

Ao contrário do que aconteceu na França de maio de 1968, aqui pouco sobrou das lutas da Maria Antônia. A repressão ao movimento enfraqueceu a Universidade, privou-a de docentes de renome, abriu caminho para uma reforma universitária de cima para baixo. Mesmo assim, no caso da USP, levou à desagregação da Faculdade de Filosofia e à formação dos Institutos, fortalecendo várias áreas científicas. Antigos valores sociais se tornaram subitamente anacrônicos. Novos valores surgiram. A experiência do confronto e da impotência ante as imensas e invisíveis forças da ordem tornou obsoletas concepções relativas à interdição da atividade política à mulher, quebrou tabus, abriu caminhos. Mostrou, sobretudo, a dominância do cotidiano no processo político. Os jovens da Maria Antônia insurgiram-se contra a vida cotidiana em nome da História. O cotidiano os derrotou, demoliu as inconciliáveis utopias do futuro longínquo, gerou um novo e atualizado conformismo social, amansou corações e mentes, sepultou os mortos. Legou-lhes a imensa parede branca do vazio para que nela grafitassem o vermelho da liberdade.

José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

O Estado de S. Paulo [Caderno Cultura], domingo, 11 de maio de 2008, p. D7.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (continuação)


Caricatura francesa de 1812.

O Monstruoso: visibilidade e trânsito

A epígrafe que abre este ensaio (ver post anterior) sintetiza alguns motivos pelos quais elegemos o corpo monstruoso como imagem que sintetiza algumas de nossas preocupações teóricas. Primeiro, o conteúdo misógino do referido trecho do Malleus Malificaram, manual da Inquisição que levou à perseguição e à morte mais de 100 mil mulheres em quatro séculos, é aqui apresentando nos termos de uma relação entre ver e ser visto; entre controlar e ser controlado pelo olhar; entre a possibilidade do domínio de homens ou de monstros; entre tornar alguém objeto ou tornar-se objeto deste alguém. Ver, neste contexto, significa a possibilidade de controlar. Ser visto significa a iminência de ser destruído – pois, tornar-se objeto e ser destruído aqui significam a mesma coisa.
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Existem miradas capazes de nos paralisar, de exercer controle sobre nossos espíritos – e os aniquilar como tais. A este tipo de conclusão chega com freqüência o pensamento francês. Sartre, Bataille, Foucault, em particular, mostraram-se bastante sensíveis com relação ao poder do olhar no ocidente, com a cumplicidade íntima que existe entre filosofar, teorizar, fixar o outro no pensamento e no ocidente[1]. A citação em questão pode ser entendida como aceitação, implícita é claro, dessa relação: contra o poder do olhar do Outro, da Outra, o espelho, o ardil, a tortura, a fogueira. Segundo, a mirada do monstro, da bruxa, envenena a atmosfera, atuando como veículo de forças demoníacas, coléricas, caóticas. Lembremos que a moderna ótica ainda não se instalou: o olho não é apenas uma tela que recebe os raios de luz rebatidos pelos objetos; o olhar projeta sua luz. Se o outro me vê, diluo-me enquanto sujeito, desfaço-me enquanto instância primordial que antecede ontologicamente o seu existir.

O monstro é caos formal, é carência de um princípio ordenador no concreto de seu corpo. Um lado do discurso civilizador afirma que a monstruosidade não constitui portanto a ameaça de um novo poder civilizador, mas o risco de que toda civilizade pereça. De acordo com Kramer e Sprenger, o demônio não possui força criativa, seu poder corruptor está em, com a permissão de Deus, misturar de modo nocivo elementos já existentes no mundo. Assim, poder-seía dizer que o demônio é pura entropia. Sua força reside em retirar tais elementos de seu lugar próprio, combinando-os de modo caótico, monstruoso. A ação do demônio evoca necessariamente questões de pertencimento e de circulação, de trânsito de lugares adequados para lugares inadequados.

Nesses termos, insinua-se no Malleus uma discussão acerca da prerrogativa divina sobre a criação. Lembremos que é exatamente uma usurpação dessa prerrogativa que faz cair Lúcifer. O Demônio está fadado a atuar mediante a corrupção da ordem, esse é seu único poder e seu ardil, já que todo princípio de criação, tendo origem Divina, lhe é vetado. A misoginia daquele texto está intimamente relacionada a um investimento civilizador no ato de criação e de procriação - ato 'natural' por excelência. Ora, o que aqui está em discussão é em que medida a associação entre mulher e fecundidade não deve estar subordinada ao controle masculino e civilizador. De um lado, temos o poder, o direito de um deus capaz de propiciar a concepção mesmo na ausência do ato sexual, um deus capaz de criar o mundo ex nihilo; de outro, a resistência de mulheres que são levadas à fogueira por reivindicarem um acesso não subordinado à natureza e à procriação.

A solução desse impasse é fundamental na estruturação do poder patriarcal. Perguntariamos o que tem orientado recentemente a postura da Igreja Católica no que diz respeito a assuntos controvertidos como engenharia genética, pesquisa com células-tronco, clonagem terapêutica senão a afirmação da necessidade desse controle: quem teria o direito de produzir a vida – falamos produzir e não reproduzir - senão Deus? Desde o Da Geração dos Animais, de Aristóteles, a reivindicação de tal acesso é encarada com preocupação. Ali aprendemos que se forças materiais, naturais, femininas prevalecem sobre forças formais, civilizadoras e masculinas o processo de geração resultará na produção de corpos monstruosos. Não é fortuita a confluência entre helenismo e cristianismo, patente na utilização do mito de Medusa como lastro das considerações religiosas de Kramer e Sprenger acerca do poder da visão. Digamos algo a esse respeito.

Para o grego, o monstruoso é hybris, desproporção, falha ou impossibilidade de civilização. Essa falha materializa tanto no corpo feminino quanto no corpo do bárbaro, demasiadamente frios para trafegarem sem o auxílio de roupas, demasiado frios para ocuparem espaços políticos de decisão. Sem o calor do princípio formal e civilizador masculino, a natureza se reproduz de modo metastático, monstruoso. A produção de monstros seria, portanto, o resultado de um tipo peculiar de acasalamento entre dois princípios fundamentais: de um lado, um princípio formal, uma causalidade eficiente, uma força masculina e quente; de outro a matéria, o âmbito feminino, material e frio de geração do mundo biológico: "Aquilo que o masculino contribui para a geração é a forma e a causa eficiente, enquanto que o feminino contribui com o material... Se, então, o masculino significa o efetivo e ativo, e o feminino, significa o passivo, segue-se daí que aquilo que o feminino contribuirá para o sêmen masculino é [...] o material sobre o qual o sêmen trabalhará”(Aristóteles, 729a).


Em Alexandre e César: Vidas comparadas, Plutarco se refere ao calor do corpo de Alexandre como sendo uma evidência de sua virilidade. Mas não apenas isso, esse calor também é responsável pela fragrância de seu hálito e o cheiro de seu corpo. “Li, nas memórias de Aristoxeno, que sua pele era perfumada, exalando-lhe da boca e de todo o corpo um odor agradável, que lhe perfumava a roupa. Talvez isso se devesse ao calor de se temperamento, que era ardentíssimo; pois o bom odor é [...] o produto da cocção de humores, mediante o calor natural”.

Sempre que a força e o calor do princípio formal não prevalecerem sobre o mundo material e feminino, teremos a produção de seres monstruosos. Em sua negatividade o corpo monstruoso intima, não apenas ao ver, mas ao ver a partir de uma lente ordenadora. Por oposição, essa experiência materializa um campo que corresponde à mirada civilizada. No caso do homem grego, essa mirada projeta um mundo gerado segundo princípios de ordem e de proporção. A educação civilizada [a Paidéia] significa a busca da proporção, da beleza das formas como princípios que devem se realizar no concreto desse homem. A natureza sem controle, o monstruoso, o bárbaro, devem ser sempre remetidos para além do mundo civilizado, masculino – na privacidade do lar, fora dos muros da polis.
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Por esse motivo, o Minotauro precisa ser confinado. A fúria desmedida de Aquiles diante do corpo de Heitor, sua recusa em conceder-lhe sepultamento, deve ser punida: a desproporção dessa fúria não pode constituir um princípio de convívio entre os homens. Ela é tempestade, pura potência natural. A górgona Medusa deve viver apartada dos homens, numa caverna, a espera de suas vítimas[2], ela própria vítima de sua pretensão desmedida: mortal, comparou sua beleza à de Atena. Também se diz que sua cabeça vaga no limite entre o Hades e o mundo dos vivos. Como lembra Jean-Pierre Vernant (1988, p. 393), as górgonas (Medusa, Euríale e Esténea) são “instrumento de morte mágica”, capazes de transformar pelo olhar o corpo quente (calor associado ao corpo masculino e civilizado) na pedra fria.

O monstro é um encontro com o Outro, com a Outra, com algo não facilmente passível de apropriação pela mirada civilizada. Não é à toa, portanto, que é para o viajante, para aqueles que perderam provisoriamente o seu lugar, como Alexandre, como Marco Pólo como Colombo, que os monstros se revelam com mais freqüência. Por isso mesmo, o Oriente é para a imaginação ocidental cenário de maravilhas terrenas, de perfeição incomparável ou inalcançável, mas também de monstros. A descoberta de terras povoadas ao sul do Equador produzirá um efeito semelhante na imaginação européia. É comum que a cosmografia medieval confira um lugar próprio a cada criatura. Há um lugar adequado para o extraordinário, o fantástico, para o avesso. Para o pensamento medieval, “cada criatura é o seu próprio lugar” (Ibid, p. 46). Disso decorre a necessidade lógica de uma divisão necessária do mundo em dois pólos: existe um lugar para a perfeição, beleza e bondade; e outro lugar para o disforme e mau. “A terra é como um corpo cuja parte mais nobre é o rosto. [...] É evidente que só podemos habitar a parte superior do universo, ‘a dianteira da terra’, ou seja, a parte que está voltada para a ‘dianteira do céu’. [...] O hemisfério de baixo estaria, de algum modo, ‘estragado’, corrompido, pois foi nele que Satã se enfiou como ponto final da queda” (Kappler, 1994, p. 32).
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Se é possível para Agostinho pensar num lugar para os monstros no projeto Divino, esse lugar é da alteridade, o lugar não-civilizado diante do qual a beleza civilizada é realçada. Como sugerimos acima, retirar o próprio de seu lugar é agir de modo a contrariar os propósitos Divinos, ou procurar usurpar seu poder de colocar cada coisa em seu próprio lugar. A circulação de bens, mercadorias, seres humanos que acompanha as grandes navegações põe em xeque um fundamento do projeto medieval de civilização, ou, ao menos, age de modo a tornar problemática a cosmografia sobre a qual se constituem lugares civilizados em oposição a lugares bárbaros. Para a imaginação medieval esse tipo de deslocamento significaria tirar o próprio de seu lugar. O Malleus Malificarum é prolífico em exemplos e considerações acerca do significado demoníaco do ato de deslocar elementos de seu âmbito.

A feitiçaria, como vimos, envolveria o trânsito de elementos para fora de seu lugar adequado, próprio. O ato de procriação, portanto, pode estar ungido das bênçãos de Deus, em cujo caso, estamos falando de uma união com características específicas. Estamos falando de uma mulher confinada ao âmbito doméstico, recatada, aquela que certamente não será arremessada de um lado para o outro pelos ventos da luxúria, como acontece com os luxuriosos – mas sobretudo com as luxuriosas – no inferno pintado por Dante. “Que as mulheres se calem nas assembléias, pois não lhes é permitido tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a própria lei o diz” (Coríntios 14: 34-5 apud Delumeau, 1999, p. 315).

O oposto da fertilidade do recato – aquele recato que confere ao toque da mulher virgem o poder de tornar fértil uma planta – também pode ocorrer. Quando isso não ocorre, o Diabo pode, com a permissão de Deus, interferir na procriação. Seu modo de agir é complicado, envolvendo o transporte de sêmen mediante a intermediação de Súcubos e Íncubos. Esse transporte conspurca a força formadora desse sêmen, mas é incapaz de o gerar. A feitiçaria é o trânsito de elementos a serviço de forças de corrupção, ou seja, forças que procuram retirar as coisas de seu lugar próprio. Esse deslocamento, em primeiro lugar, atinge o corpo da feiticeira, espaço de prazeres proibidos, veículo da força demoníaca, capaz de perder homens, mulheres, crianças, animais, colheitas.

Como seria possível aceitar a circulação de escravos negros em terras civilizadas? É preciso, portanto, que uma nova lógica se imponha.
[1] Martin Jay (1994), em Downcast Eyes, de uma perspectiva crítica, oferece uma excelente análise do ‘anti-ocularcentrismo’ que marca o pensamento francês do século XX.
[2] “À parte as variantes que dele apresentam as concepções coríntia, ática e laconiana, podemos, em primeira análise, distinguir duas características fundamentais da representação de Gorgó. Primeiro, a facialidade. Contrariamente às convenções figurativas que regem o espaço pictórico grego na época arcaica, a Górgona é sempre representada de face, sem qualquer exceção. [...] Em segundo lugar, a ‘monstruosidade’. Quaisquer que sejam as modalidades de distorção empregadas, a figura sistematicamente jogo com as interferências entre o humano e o bestial, associados e misturados de diversas maneiras” (VERNANT, 1988a, p. 39).

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(por editar)
Jonatas Ferreira

quinta-feira, 8 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados


Caricatura de Baartman (século XIX; emprestado da wikipedia)

Há três ou quatro anos, a professora Eliane Veras, Cynthia Hamlin e eu pretendíamos fazer um trabalho com o título acima sobre Saartjie Baartman, conhecida como "Vênus hotentote". Baartman era sulafricana e foi exibida na Europa do século XIX como curiosidade, como aberração corporal em circos mambembes. AS dimensões de sua genitália, de suas nádegas, as medidas "incivilizadas" de seu corpo, atraíam a curiosidade européia. Morreu em 1815, vítima de pneumonia, mas o seu corpo permaneceu insepulto por mais de um século - objeto de curiosidade científica, de autópsias e novas exposições em museus. É sobre esse caso que pretendíamos fazer um ensaio. Publico minhas anotações sobre o tema em seguida, em dois ou três posts. Quem sabe Cynthia ou Eliane não se interessam em retomar o projeto.

Quando um lobo vê primeiro um homem, deixa-o subitamente mudo. Quando um basilisco, o monstro em forma de serpente, vê primeiro um homem, seu olhar é fatal, mas, quando sói de o homem vê-lo primeiro, também é capaz de matá-lo pela vista; [...] o basilisco é capaz de fulminar o homem pelo olhar porque, ao vê-lo, dado o seu impulso colérico, põe em movimento pelo corpo um terrível veneno que, lançado pelos olhos, impregna a atmosfera com sua substância mortífera. O homem, ao respirar naquela atmosfera, fica entorpecido e cai fulminado. Mas quando é o homem que vai ao encontro da fera guarnecido de espelhos – com o intuito de matá-la, por exemplo -, o resultado é diverso: o monstro, vendo-se refletido nos espelhos, lança seu veneno contra o seu próprio reflexo: o veneno é repelido, retorna sobre ele e o mata. [Kramer; Sprenger. 1991: Malleus Malificarum. O martelo das feiticeiras, p. 73]


Introdução

Na história do pensamento ocidental, negros, mulheres e monstros têm algo em comum, sua suposta proximidade com a natureza. Em contraposição a essa proximidade, um espaço de civilização deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. Mediante o ardil, a razão, Ulisses deve evitar diluir-se no canto das sereias, nas promessas de prazer de Circe, ou de esquecimento junto aos lotófagos. Macunaíma, nossa promessa de um herói sem areté, deve evitar poderes maiores que os do gigante Venceslau Pietro Pietra: os encantos da Iara, aos quais por fim sucumbe – e com ele as esperanças de uma via brasileira de civilização. A constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus idéia.

Essas dicotomias, no entanto, fundam compreensões ambíguas acerca do outro, ou seja, daquilo, daqueles ou daquelas sobre o que se procura exercer um controle civilizador. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre, e constitui nosso lugar dentro da existência. Ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é fecundidade e luto. Não é fortuito que tal percepção esteja associada a algumas imagens culturais da mulher e do negro. Por um lado, a mulher é vista como mãe santificada, mãe puríssima, caminho para a salvação. Seu corpo pode estar associado à fertilidade, à fecundidade, possuir qualidades apotropáicas. Esse é o caso, por exemplo, das Sheelas-na-Gig, esculpidas desde a Idade Média em igrejas e castelos do Reino Unido e França. Essas imagens de corpos femininos seriam dotadas de certas qualidades mágicas, tais como, promover a fecundidade e evitar a aproximação de maus espíritos, que se manifestam na exibição de suas genitálias. Que poder, héin? Ver a esse respeito, por exemplo, Catherine Blackledge (2003, p. 29-33). Mary Del Priore (1993) também nos fala de algumas gravuras medievais em que o Diabo é expulso de determinados ambientes pela exibição da genitália feminina – esse ato é encontrado, de resto, em diversas culturas como parte de rituais de fecundidade ou de exorcismo de maus espíritos.

Ao mesmo tempo a mulher é percebida como puta, agente do demônio, noturna, caminho para a perdição, "vagina dentada", ausência de pênis. Os exemplos de ansiedade diante do corpo feminino são abundantes em várias culturas. No século X, por exemplo, encontramos de um abade o seguinte depoimento, ilustrativo em sua contundência misógina: “A beleza física [feminina] não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele das mulheres, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponto do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” (Apud Delumeau, 1999, p. 318). Que coisa terrível, não? Interessa-nos aqui, porém, não essas visões em sua parcialidade, mas a produtividade de sua ambigüidade.

“Essa ambigüidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice de vida e de morte” (Delumeau, 1999, p. 312).


Com o negro ocorre algo semelhante. Se é comum encontrarmos discursos onde ele é apresentado como bom selvagem, força da natureza, alma dócil, pacífica, objeto de desejo, o negro é, ao mesmo tempo, desregrado, macaco, lugar de vício, luxúria, repulsa. A docilidade e a intriga, por exemplo, amalgamam-se na descrição do caráter do africano que nos pinta Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. De modo semelhante, o suicídio da negra Bertoleza, no Cortiço, de Aluísio Azevedo, é traduzido como a voz da natureza acuada, caos de sangue e tripas, escamas de peixe, a confirmação da legitimidade de sua condição subalterna, e ao, mesmo tempo, a negação radical dessa condição. “Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue” (Aluísio de Azevedo, O Cortiço. Editora Ática, São Paulo, p. 159) Mas o curioso, e talvez insuportável para o racismo de Aluízio de Azevedo seja o fato de que, ao se suicidar, Bertoleza nega a propriedade sobre seu corpo e, portanto, sua condição escrava.

O discurso civilizador não se estrutura de nenhum dos lados desse tipo de oposição: pois ele precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. Por isso, positiva ou negativamente avaliada, a proximidade que existiria entre negros, mulheres e a natureza é o que importa aqui. É a produção discursiva dessa proximidade que será objeto de desejo de controle e de ansiedade. Como lembra Homi Bhabha (2001, p. 105), a força ambígua do estereótipo, necessidade de civilização e impossibilidade de civilização, merece nesses casos uma apreciação cuidadosa.

Um aspecto importante do discurso colonial é a sua dependência do conceito de “fixidez” na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da diferença cultural/ histórica/ racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido... como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem na verdade jamais provadas no discurso.


Para Richard Sennett, a idéia civilizadora no ocidente implicou uma concepção idealizada do corpo e uma delimitação de espaços específicos de civilidade. O calor civilizado do corpo do jovem ateniense, por exemplo, e a ágora complementam-se; um é extensão do outro. Por isso mesmo, para o ateniense bem-nascido, a “nudez simboliza um povo inteiramente à vontade na sua cidade, expostos e felizes, ao contrário dos bárbaros, que vagavam [cobertos] sem objetivo e sem a proteção da pedra.” (SENNETT, 2003, p. 31).

No presente ensaio, estamos interessados menos na lógica cultural que preside a definição de tais espaços ou do modo como alguns corpos são signos de civilização – como no caso do corpo atlético do jovem guerreiro ateniense, símbolo de sua arete , da virtude de um corpo quente que, situado dentro dos limites protetores da cidade, é capaz de desafiar a natureza. O homem grego busca exibir seu corpo como sinal pleno de distinção: o nu do atleta grego não é apenas uma ostentação cosmética, mas expressão de civilidade desse corpo. Em sua feiúra, desproporção, desordem, o monstro é o outro do civilizado.

Interessa-nos, todavia, a frieza, a obscuridade, a lascívia como marcas de falta de civilidade dos corpos negros, femininos, monstruosos; interessa-nos os lugares ermos que eles ocupam.O que é considerado outro? Qual a lógica de especificação dessa alteridade? Quais os modos de circulação que lhe são próprios? Como mulher, negro ou monstro, o outro é aquilo que em princípio não deve circular, mas também aquilo que não pode deixar de circular, sob pena de privar o discurso civilizador da oposição que o funda. Nós afirmamos que a estruturação de um discurso civilizador se opera no concreto dos corpos e nos caminhos traçados para a sua circulação. Onde tem lugar a produção de tal discurso, de onde ele apenas pode ser concebido? Acreditamos que ele tem necessariamente de se postar dentro e fora de um espaço de civilização. Civilizar significa, nesse sentido, aprender como os corpos devem trafegar e indicar esses caminhos. Indicar esse tráfego só é possível mediante aquele duplo pertencimento. Esse duplo pertencimento, todavia, só é possível a partir de um ocultamento fundamental: a possibilidade do retorno do olhar da natureza, da mulher, do negro, do monstro. Retorno que reflete a mirada civilizadora sobre si e que revela sua ansiedade essencial.

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(por editar)

Jonatas Ferreira