quarta-feira, 2 de julho de 2008

Campanha pela descriminalização do aborto



À Câmara dos Deputados
Resposta da sociedade brasileira ao parecer do relator Eduardo Cunha

A Comissão de Constituição e Justiça convocou audiências públicas para os dias 02 e 03 de julho de 2008, visando o aprofundamento do debate sobre o Projeto de Lei 1.135/91, que regulamenta a descriminalização do aborto no país. Contudo, mesmo antes da realização das audiências públicas, que se pensava poderiam contribuir para subsidiar a decisão dos eminentes membros da Comissão, o relator, Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) apresentou seu parecer sobre o Projeto. Surpreende a postura do relator, na medida em que se antecipa ao debate, desconsiderando, portanto, os saberes dos especialistas que haviam sido chamados a prestar esclarecimentos sobre o projeto de lei, diga-se dos mais importantes que já tramitaram no Congresso Nacional em toda a sua existência.

A antecipação do parecer é reveladora de como o processo vem sendo conduzido pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça. O papel das audiências públicas não é o de emprestar uma “aparência de democracia” a um processo cujas regras já estão pré-definidas. Antecipando sua posição, sem colher os necessários esclarecimentos sobre o tema, o relator incorreu numa série de raciocínios equivocados e, em conseqüência, emitiu parecer pela inconstitucionalidade de um projeto que se harmoniza não apenas ao texto constitucional, como também aos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional.
Dito isso, passa-se ao enfrentamento dos argumentos lançados no parecer do relator, com a finalidade de informar a sociedade brasileira sobre a falta de argumentos razoáveis para a conclusão a que chegou o Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) em sua manifestação, a qual, se acolhida por seus pares na Comissão de Constituição e Justiça resultará em uma violação de garantias constitucionais, tais como a liberdade de pensamento, a autonomia da vontade e o direito à saúde:

1. Afirma o relator que: “O Constituinte de 1988 não esclareceu se garante o direito à vida humana desde a concepção ou somente após o nascimento com vida”.
Afirmar que a Constituição Federal não estabelece textualmente quando começa a vida humana, deixando de considerar que a Constituição poderia tê-lo feito, é revelar a falta de compreensão sobre o fenômeno do Poder Constituinte Originário outorgado pelo povo brasileiro aos constituintes. Isso porque, no curso dos debates ocorridos durante a construção da Constituição Cidadã, os constituintes tiveram oportunidade de debater o tema, rechaçando a proposta de que o texto constitucional abrigasse a proteção da vida desde a concepção.

Conforme está documentado no Diário da Assembléia Nacional Constituinte, no curso dos trabalhos, o Senador Meira Filho propôs a seus pares que a redação do seu atual artigo 5º estabelecesse a proteção da vida desde a concepção. Essa proposta foi submetida à apreciação dos Constituintes, foi analisada, votada e rejeitada. Na condução dos debates, o Senador José Fogaça explicitou as razões pelas quais o texto constitucional não deveria recepcionar o princípio da proteção da vida desde a concepção: “Esta matéria foi exaustivamente debatida nas diversas instâncias anteriores e foi consenso repetido e assentado o de que este tema deveria ser tratado na legislação ordinária” (Diário da Assembléia Nacional Constituinte, p. 7.220).

Assim, ao contrário do que afirma o Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) em seu relatório, os constituintes não se omitiram quanto à proteção constitucional da vida desde a concepção. A Assembléia Nacional Constituinte não incorporou a noção de que o direito à vida existe desde a concepção. Os constituintes enfrentaram essa questão e decidiram não adotar uma redação que houvesse claramente adotado esse princípio. O legislador constituinte decidiu não assegurar proteção constitucional ao feto, remetendo o tema para ser regulamentado pelo legislador ordinário.

Assim agindo, concederam plena liberdade ao Congresso Nacional para regulamentar a matéria através de lei ordinária, seja em um ou em outro sentido, sem que qualquer das hipóteses conflite com a Constituição Federal, justamente porque o legislador constituinte delegou a apreciação do tema ao legislador ordinário. Conseqüentemente, o parecer do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) padece de falácia de petição de princípio, ao referir a inconstitucionalidade do projeto nº 1.135/91, pois foram os próprios constituintes que propuseram que a regulamentação dessa matéria se desse através de lei ordinária.

2. Referências a leis ordinárias: Artigo 2º do Código Civil e Artigo 7º do ECA.
A fragilidade argumentativa do parecer apresentado pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) fica evidenciada quando o mesmo, para fundamentar a pretensa inconstitucionalidade do projeto 1.135, recorre a dispositivos de leis ordinárias, como são o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sem que haja necessidade de examinar aqui o quanto é equivocada a leitura do relator relativamente aos efeitos jurídicos de ambos os textos legais, é preciso destacar que justamente por se tratarem de leis ordinárias, eventual conflito que houvesse entre o projeto 1.135 e quaisquer desses textos, não configuraria inconstitucionalidade do projeto 1.135, pois se tratam de textos infraconstitucionais. De fato, a argumentação empregada no parecer revela a confusão do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sobre qual seja o objetivo da análise do projeto pela Comissão de Constituição e Justiça. Confusão que pode ser desfeita, bastando que se examine o projeto à luz da Constituição Federal e não leis ordinárias.

3. O relatório destaca que o Supremo Tribunal Federal em momento algum adentrou no mérito do aborto.

O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão histórica, rechaçou a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, que propunha uma definição de início da vida como válida para o ordenamento jurídico. O STF, capitaneado pelo voto do Ministro Carlos Ayres Britto, explicitamente rejeitou a tese da proteção jurídica da vida desde a concepção, decidindo que ao feto se confere apenas proteção infraconstitucional, como bem ilustra o seguinte trecho do acórdão prolatado na ADI 3.510-0:

“Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda gravidez humana já esteja pressuposta a presença de pelo menos duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais. (...) O que traduz essa vedação do aborto não é outra coisa senão o Direito Penal brasileiro a reconhecer que, apesar de nenhuma realidade ou forma de vida pré-natal ser uma pessoa física ou natural, ainda assim faz-se portadora de uma dignidade que importa reconhecer e proteger.

Reconhecer e proteger, aclare-se, nas condições e limites da legislação ordinária mesma, devido ao mutismo da Constituição quanto ao início da vida humana. Mas um mutismo hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária ou usual, até porque, segundo recorda Sérgio da Silva Mendes, houve tentativa de se embutir na Lei Maior da República a proteção do ser humano desde a sua concepção.

Com o que se tem a seguinte e ainda provisória definição jurídica: vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte” (STF - ADI 3.510-0, relator Ministro Carlos Ayres Britto).

Essa é a interpretação constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, a qual refutou a “tese da proteção da vida desde a concepção”. Infelizmente, o alcance jurídico da decisão do STF não foi considerada pelo parecer do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). É dizer, ao reconhecer que a proteção ao feto tem natureza infraconstitucional, o STF assegura a constitucionalidade de projeto de lei que proponha a descriminalização do aborto no Brasil, deixando a cargo do legislador ordinário regulamentar a matéria.

4. Referência ao Pacto da Costa Rica.

Nossa Constituição de 1988 está sintonizada com os textos internacionais que são referência na proteção aos direitos humanos, em cuja redação também não se inclui a proteção integral da vida desde a concepção. Tanto a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) não contemplam a proteção integral da vida desde a concepção.
O artigo 1º da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na Conferência realizada em Bogotá, em 1948, estabelece que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e segurança de sua pessoa”. Essa redação suscitou grande polêmica sobre se o aborto violaria o direito à vida enunciado o artigo 1º dessa Declaração.

Provocada a decidir se o direito ao aborto viola o direito à vida assegurado nessa Declaração, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Resolução 23/81, decidiu que o direito ao aborto não viola a Declaração, posto que o texto não explicita a proteção da vida desde a concepção.

Na fundamentação da Resolução 23/81, embora os Estados Unidos não fossem signatários do Pacto de São José da Costa Rica, a Comissão fez questão de também enfrentar a redação dessa Convenção (1969), cujo artigo 4º refere a proteção da vida “em geral” desde a concepção, pois alguns juristas sustentavam que esse dispositivo do Pacto de São José da Costa Rica se constituía em obstáculo à descriminalização do aborto. Esta foi uma ressalva, inclusive, explicitada pelo Ministro Celso de Mello durante o julgamento da ADI de células-tronco no STF.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu que essa interpretação é incorreta, pois a expressão “em geral” não significa a intenção de modificar o conceito de direito à vida que prevaleceu da Declaração aprovada em Bogotá (1948), salientando que as implicações jurídicas da cláusula “em geral, desde o momento da concepção” são substancialmente diferentes da cláusula mais curta “desde o momento da concepção”. O “em geral” remete exatamente às leis nacionais, ou seja, novamente reconhecendo ao legislador o papel de enfrentar essa matéria.

A Resolução 23/81, por ser anterior à Constituição Federal de 1988, reforça a conclusão de que se o objetivo dos Constituintes fosse proteger a vida desde a concepção, certamente não adotariam a atual redação, similar à empregada naquela Declaração, a qual sabidamente não alcança a proteção da vida nos moldes em que pretendido pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Mas não é só por essa razão que o Pacto de São José da Costa Rica não obstaculiza a descriminalização do aborto no país. Por ocasião da Conferência da Costa Rica, ficou consignado que “Brasil e EUA interpretam o texto do artigo 4º, inciso I, no sentido de que deixa à discricionariedade dos Estados Parte o conteúdo da legislação à luz do seu próprio desenvolvimento social” (Ata da Segunda Sessão Plenária, OEA Ser. K/XVI/1.2).

A posição consignada pelo Estado brasileiro não deixa margem à dúvida quanto à possibilidade de o legislador ordinário regulamentar o tema do aborto. A ressalva consignada em 1969 tem exatamente essa função: assegurar que o Brasil possa avançar em termos de proteção aos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Tanto assim que o Brasil é signatário da Conferência do Cairo (1994), cujo artigo 8.25 assegura às mulheres a autonomia sobre sua fecundidade, passando o aborto a ser considerado como um grave problema de saúde pública; e também da Conferência de Beijing (1995) na qual, através do parágrafo 106k, o Estado brasileiro se compromete a revisar sua legislação punitiva em relação ao aborto.

A Câmara dos Deputados, por seu turno, não está alheia aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. Em 25/04/1996 o plenário da Câmara apreciou a proposta (do Deputado Severino Cavalcante) de emendar a Constituição para incluir “a proteção da vida desde a concepção”. O resultado da votação foi uma expressiva conquista no que tange à proteção dos Direitos Humanos: 16 abstenções, 33 votos favoráveis e 351 votos contrários à proposta.

Vê-se, portanto, que o Estado brasileiro está firme no propósito de honrar os compromissos assumidos perante a comunidade internacional, objetivando retirar nosso país de uma vergonhosa 128ª posição no ranking da proteção aos direitos humanos, relativamente ao acesso ao aborto legal e seguro.

5. No relatório consta “revela-se injurídica a edição de lei ordinária tendente a abolir direitos fundamentais”.

Argumenta o relator, Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que o Projeto de Lei 1.135 estaria a abolir direitos fundamentais. Trata-se de mais um equívoco do relatório. Basta que se leia atentamente o artigo 5º, da Constituição Federal, para verificar que é a demora na aprovação do projeto 1.135 que está a causar incessante violação de direito fundamental assegurado no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal.
Isso porque, o texto constitucional assegura a “inviolabilidade de consciência e de crença”, trazendo como conseqüência que nenhuma convicção religiosa pode ser imposta à população através de lei. Ademais, é do próprio interesse das associações religiosas que a doutrina não seja imposta por lei. Nesse sentido, já se manifestava o libertador Simón Bolívar ao afirmar que “A religião é a lei da consciência. Toda lei sobre ela se anula porque impondo a necessidade do dever, retira o mérito da fé, que é a base da religião”.

Em sociedades democráticas, não é papel do Estado fomentar doutrinas religiosas. Quanto ao aborto, seguir ou não a orientação de determinadas confissões religiosas é decisão que cada brasileira tomará ao enfrentar a decisão de interromper uma gravidez indesejada. A laicidade do Estado impõe que a decisão seja acolhida pelo Ministério da Saúde, garantindo-se tanto um pré-natal quanto o acesso a um aborto legal e seguro. O fato de vivermos em um Estado laico é que garante às brasileiras o acesso a informações sobre métodos contraceptivos e relações sexuais protegidas por preservativos.

Essas informações permitem que a mulher, livre e informada, tome suas próprias decisões. Se uma mulher por razões de moral privada não quiser usar métodos contraceptivos ou de barreira, não está obrigada a fazê-lo. O Estado laico respeita sua decisão, mas ela não perde sua liberdade para mudar de idéia quando quiser. O Estado verdadeiramente laico não parte da diversidade religiosa de sua população para representá-la em seu ordenamento básico. O raciocínio é inverso: o Estado laico assume a neutralidade confessional como forma de garantir a liberdade de pensamento dos cidadãos. e cidadãs.

Uma lei de aborto não deve ter pretensões de representar um consenso moral ou religioso. Sua ambição deve ser garantir a neutralidade moral do Estado laico e proteger a diversidade de pensamento. Como resultado, nas sociedades democráticas, as mulheres não são obrigadas a abortar, pois gozam de autonomia reprodutiva. Pelo mesmo fundamento, não são obrigadas a levar a termo a gravidez indesejada. A recente descriminalização do aborto pela sociedade da capital mexicana (88% de católicos) traz bom ensinamento. O fato de a maioria ser católica não impediu que se respeitassem as minorias. Ser religioso não impede que se seja laico, isto é, que se aceite que existem pessoas que pensam diferente e que também essas pessoas devem ter seus direitos garantidos pelo Estado. Situação semelhante ocorreu recentemente na República Islâmica do Irã, um país confessional, que autoriza o aborto.
Tomando-se o Estado Democrático de Direito como um regime democrático onde as políticas públicas não são ditadas por doutrinas religiosas, pode-se afirmar que o parecer do Deputado. Eduardo Cunha (PMDB-RJ) viola a laicidade do Estado, porquanto não apresenta qualquer argumento capaz de convencer quem já não estivesse previamente convencido a votar contrariamente ao projeto 1.135. Essa realidade fica evidenciada na medida em que os argumentos utilizados pelo relator não resistem a uma análise jurídica.

Recentemente o Presidente da República reafirmou a separação Estado-igrejas, recusando-se a assinar uma concordata com o Vaticano. Nesse mesmo patamar soberano, o Supremo Tribunal Federal emancipou a população brasileira de uma concepção religiosa sobre quando começa a vida. Nesse momento histórico, impõe-se que o projeto que descriminaliza o aborto no Brasil seja submetido ao crivo do plenário da Câmara dos Deputados, para que possamos, a exemplo do que aconteceu com a aprovação do divórcio em 1977, voltar a celebrar a democracia no Congresso Nacional.

Para Assinar a petição: http://www.petitiononline.com/CCJ1135/petition.html

Nenhum comentário: