sábado, 23 de agosto de 2008

O Positivismo de Émile Durkheim 2



No post anterior, já aparecem alguns termos associados à noção de positivismo: uma abordagem “agressivamente científica” que se contrapõe ao humanismo (reduzido a “misticismo, diletantismo e irracionalismo”); uma concepção de explicação causal nos moldes supostamente estabelecidos pelas ciências naturais. Existe ainda um terceiro elemento que, por razões que deixarei claro mais adiante, são específicas ao positivismo francês (Comte e Durkheim): a irredutibilidade da explicação sociológica ou a idéia de que os fenômenos sociais devem ser explicados a partir de causas sociais. A fim de percebermos como essas questões são colocadas em sua obra substantiva, farei agora uma breve descrição de seu primeiro trabalho sociológico: Da Divisão do Trabalho Social. A idéia aqui é explicitar o que ele entende por um tratamento científico de um fenômeno social, ainda que, para isto, façamos alguns desvios, necessários à compreensão de como ele concebe um fenômeno social.

Da Divisão do Trabalho Social (DTS) constitui, fundamentalmente, uma teoria das condições da ordem social, isto é, um estabelecimento daquelas coisas que devem existir para que a sociedade seja possível, para que não se desintegre mediante aquilo que Hobbes chamou de “a guerra de todos contra todos”. Conforme Durkheim afirma no prefácio à segunda edição da DTS: “as paixões humanas só se detém diante de uma força moral que elas respeitam. Se qualquer autoridade desse gênero inexiste, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente crônico” (Durkheim, 1999:VII). Mas que força moral seria esta?

Seguindo uma tradição iniciada na economia política por Adam Smith e retomada por Saint-Simon, Comte, Marx, Spencer e Tocqueville, a divisão social do trabalho constituía a base das sociedades modernas, baseadas não na igualdade perfeita entre as pessoas, mas na alteridade, na diferença, na complementaridade. Contudo, Durkheim argumenta, a divisão do trabalho havia sido tratada, até então, como uma “lei superior das sociedades humanas” (Ibid.: 2) e se questiona, mais adiante, em que medida essa lei da natureza é também “uma regra moral da conduta humana” (Ibid.: 3), isto é, em que medida temos o dever (moral) de resistí-la, tornando-nos seres auto-suficientes, ou de nos sujeitarmos a ela, tornando-nos órgãos de um organismo maior? Colocado de outra forma, em que medida a divisão do trabalho pode representar uma autoridade superior às paixões, desejos e interesses dos indivíduos, impedindo, assim, um estado de guerra crônico?

De acordo com seu ponto de vista, a respostas das sociedades modernas a esta questão eram confusas e contraditórias: por um lado, a divisão do trabalho é percebida como uma regra moral: “coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada” (Ibid.:6; ênfases no original). Por outro lado, condena-se a especialização excessiva e determina-se que devemos realizar, todos, um mesmo ideal. A fim de resolver esta contradição, Durkheim propôs tratar tais questões morais de um ponto de vista estritamente sociológico, científico. Isso significava para ele tratá-las como objetos que podem ser reconhecidos, observados, classificados, explicados. Neste sentido, determinar (cientificamente) o caráter moral da divisão do trabalho pressupõe tratá-la da mesma forma como se tratam os fenômenos naturais, como fatos que deveriam ser investigados a partir dos seguintes objetivos: 1- determinar a função da divisão do trabalho; 2- determinar as causas da qual ele depende e 3- determinar as formas patológicas ou anormais que ela pode apresentar. Esta é, muito literalmente, a forma que Da Divisão do Trabalho Social é organizada.

Ao investigar a função da divisão do trabalho, Durkheim tenta estabelecer a necessidade a que ela corresponde, isto é, qual a sua contribuição (intencional ou não intencional) à manutenção do todo de que ela faz parte: a sociedade. Um primeiro passo neste sentido é dado com o retorno à questão colocada já por Aristóteles: nós nos sentimos atraídos por aquelas pessoas que são nos são semelhantes ou diferentes de nós? A resposta de Durkheim é “depende”: algumas vezes, nos sentimos atraídos por aqueles que se parecem conosco, outras vezes, por aqueles que são diferentes de nós. Para que nos sintamos atraídos por pessoas que são diferentes de nós, é necessário que as dessemelhanças sejam complementares. Muitas vezes, procuramos em nossos amigos qualidades que nos faltam para que nos sintamos menos incompletos: “um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa, e é essa partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do trabalho que determina essas relações de amizade” (Ibid.: 21). Assim, Durkheim conclui, ao contrário do que vinha sido dito até então, o efeito “mais notável” da divisão do trabalho não era o de aumentar o rendimento das tarefas divididas, mas torná-las solidárias: “seu papel, em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem elas [as tarefas divididas] não existiriam” (Ibid.: 27).

Por outro lado, muitas vezes somos atraídos por aquilo que nos é semelhante. Nesses casos, a simpatia, que já para Adam Smith (1976) era a base da moral e da solidariedade, aparece como um tipo distinto de fundamento para a união entre as pessoas. Sendo assim, existem dois tipos distintos de sentimentos que nos levam a nos associarmos com outras pessoas e, já que os sentimentos não são os mesmos, também não são as mesmas “as relações sociais que deles derivam” (ibid.:28).

Com isto, Durkheim estabelece as bases para argumentar que existem dois tipos de solidariedade que desempenhavam a mesma função (coesão social) em duas espécies distintas de sociedade: a solidariedade mecânica, característica das sociedades segmentadas, baseadas nas semelhanças entre as consciências individuais; e a solidariedade orgânica, característica das sociedades organizadas (à semelhança dos organismos biológicos complexos) ou, como ele chamava as sociedades modernas, sociedades industriais.

Deve ter ficado claro, até agora, que solidariedade e moralidade são conceitos gêmeos. Como afirma Luhmann (1982), enquanto moralidade é definida em termos de solidariedade, solidariedade é definida positivamente como coesão ou união (e isto é uma definição tautológica ou circular) e, negativamente, como “resistência à dissolução”. Apesar das críticas, justificadas, às definições tautológicas de Durkheim, é necessário reconhecer que a identificação entre moralidade e solidariedade depende de um argumento bastante engenhoso e que pode ser bastante útil. O problema que levou Durkheim a efetuar o argumento em pauta é mais ou menos o seguinte: se a solidariedade é igual à moralidade e a moralidade é algo que pode ser estudado cientificamente, isto é, objetivamente, então precisamos de uma maneira de observá-la, classificá-la e explicá-la. Mas como observar algo que não se presta à observação? E em sua resposta fica clara sua engenhosidade: embora não se possa observar a solidariedade, se e onde ela existe, ela deve manifestar sua presença através de efeitos visíveis. Assim como a gravidade não é diretamente observável, ela gera efeitos que, estes sim, podemos observar. É através desses efeitos que podemos inferir sua existência. No caso da solidariedade, seu efeito mais sensível é o direito, cujo preceito básico é “uma regra de conduta sancionada” (Durkheim, 1999: 36). Assim, a fim de determinar os tipos de solidariedade, é necessário determinar os tipos de direito (ou de efeitos) que elas geram. E como o direito está ligado a sanções específicas, para se classificar os tipos de direito, deve-se, por seu turno classificar as diferentes sanções ligadas a ele.

Segundo Durkheim, existem dois tipos de sanções: as que visam atingir o agente em sua honra, sua fortuna, sua liberdade ou sua vida (isto é, visam privá-lo de algo que ele desfruta) e as que visam reparar as coisas ou restabelecer as normalidade das coisas que foram perturbadas. O primeiro tipo de sanção caracteriza o direito penal; o segundo, o direito civil, o comercial, o processual, o administrativo e o constitucional. É, então, a partir do exame desses dois tipos de direito que Durkheim vai classificar as diferentes formas de solidariedade social.

Todos estes conceitos são como que resumidos no conceito de “consciência coletiva”, que Durkheim define como “o conjunto de crenças e sentimentos comuns à media dos membros de uma sociedade que forma um sistema que tem vida própria”.

O conceito de consciência coletiva sofreu inúmeras críticas na época da publicação da Divisão do Trabalho; dentre elas, a de que era um conceito metafísico (referia-se a uma entidade que não podia ser empiricamente observada), moralmente aberrante (já que poderia sugerir que a moralidade não era responsabilidade dos indivíduos) e metodologicamente equivocado (Benton, 1977).

Uma forma de se entender o conteúdo mais profundo desta crítica (que não se resume apenas à impossibilidade de sua observação empírica) é através da distinção, operada por um dos maiores estudiosos contemporâneos da obra de Durkheim, Steven Lukes, entre o termo “conscience”, em francês, e sua tradução para o inglês.

O termo francês conscience, assim como “consciência” em Português, engloba o significado de dois termos em inglês: consciousness e conscience. Consciousness (1) diz respeito a sentimentos ou crenças acerca da própria existência e da existência do mundo exterior ou à representação de um objeto (conteúdo cognitivo, como quando se diz: “você tem consciência da existência desta mesa?”). Conscience (2), diz respeito à faculdade de se estabelecer, ou através da qual se estabelece, julgamentos morais (conteúdo moral, como quando se diz a alguém que pratica um ato desonesto:“você não tem consciência, não sabe distinguir o certo do errado?”).

Embora o primeiro sentido do termo possa fazer sentido como algo “além” das consciências individuais (crenças e representações que são compartilhadas, mas que não se encontram, em sua totalidade, na mente de qualquer indivíduo particular), o segundo sentido representa uma hipostasia do conceito de consciência coletiva, isto é, a consciência coletiva é vista como uma entidade sobre-humana que detém faculdades tipicamente humanas. Em outros termos, embora a sociedade possa ser concebida como um conjunto de crenças, valores, etc. coletivos (consciência coletiva 1), não faz sentido falar de sociedade como uma entidade capaz de efetuar julgamentos porque quem faz isto são as pessoas (consciência coletiva 2). E Durkheim nem sempre foi capaz de separar estes dois sentidos, freqüentemente se referindo à sociedade como uma entidade supra-individual, capaz de fazer coisas que apenas os indivíduos podem fazer.

Durkheim considerava que as críticas ao seu conceito de consciência coletiva implicavam na negação da existência do objeto da sociologia e, portanto, na impossibilidade de se construir uma ciência da sociedade. A publicação das Regras do Método Sociológico em 1895, dois anos após a publicação da Divisão do Trabalho, visa esclarecer estas duas questões, juntamente com outros dois problemas correlatos: demonstrar que a sociologia era não apenas possível, mas necessária; expor os métodos e as formas de explicação científicas adequadas ao objeto da sociologia (Benton, 1977). Escreverei sobre isto no próximo post.

Cynthia Hamlin

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