quarta-feira, 1 de abril de 2009

Democracia Digital: para além da idéia de justiça distributiva



(O texto abaixo é parte da introdução de uma comunicação a ser feita no Rio no meio deste mês durante o "Seminário Internacional Informação, Poder e Política: novas mediações tecnológicas e institucionais". O Seminário é uma promoção do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento - LIINC)

Jonatas Ferreira e Maria Eduarda da Mota Rocha

Introdução

O artigo que se segue propõe uma crítica à idéia de “inclusão digital” que orienta políticas públicas e iniciativas do terceiro setor voltadas à ampliação do acesso às novas tecnologias de informação e comunicação. Essa crítica dirige-se a dois fundamentos teóricos daquela idéia: o paradigma da justiça distributiva e as noções de informação e comunicação tal como preconizadas pela teoria da informação. Quanto ao primeiro aspecto, ressaltamos que a idéia de “inclusão digital” tem como premissa fundamental uma suposta equivalência entre justiça e redistribuição de recursos sociais concentrados e uma percepção unilateral daquilo que deve ser objeto de tal redistribuição. Nesse sentido, apontamos como muitas iniciativas de “inclusão digital” enfrentam problemas devidos à ausência de atenção aos interesses e repertórios de seu público-alvo.

O segundo fundamento da idéia de “inclusão digital” que tomamos como objeto de crítica é a noção de informação, tal como proposta de modo sistemático a partir de meados do século XX, quando consuma uma dimensão instrumental já presente no Ocidente ao menos desde o século XIX. Influenciando a teorização dos processos comunicacionais, essa noção levou a que se considerasse a comunicação cada vez mais como uma transmissão de dados e não como uma partilha de significados. O resultado é que, por mais que as políticas públicas e as iniciativas do terceiro setor tentem superar as limitações postas por essa visão instrumental acerca das TICs, ampliando os objetivos dos projetos para além da inovação empresarial e da “qualificação” da mão-de-obra, ela tende a ser reposta. Acreditamos que, sem uma crítica persistente e profunda a esses fundamentos, a passagem da “inclusão” para a “democracia” digital é muito improvável.

Seguindo uma tendência internacional de crescimento na infra-estrutura e serviços de informação e comunicação, o Brasil avançou significativamente no que toca a uma maior justiça distributiva no acesso a essas tecnologias na última década. A queda no preço de equipamentos, os programas de incentivo à aquisição do primeiro computador, além de melhoria no poder aquisitivo da população de menor renda significaram um maior acesso à sociedade de informação. Se no que toca a algumas dessas tecnologias esse foi mesmo notável, como é o caso do acesso à telefonia móvel, uma evolução menos expressiva, mas considerável, foi percebida no acesso a computadores pessoais e à Internet.

Os dados da mais recente Pesquisa TIC Domicílios 2007 mostram avanços significativos no acesso ao computador e à Internet no Brasil e indicam que estão no caminho certo as políticas públicas desenvolvidas para inserção dos cidadãos brasileiros na sociedade da informação. Os números revelam o crescimento da banda larga nos domicílios e do número de internautas, bem como o aumento das aquisições domiciliares de computadores e a expansão do seu uso2.


Vamos a alguns números. Em 2007, havia computadores em 24% dos lares brasileiros, o número de internautas chegou a 34% da população, o acesso a banda larga chega a 50% dos usuários de Internet. Mesmo com esses números, algumas desigualdades históricas persistem e entravam um acesso mais democrático a essas tecnologias. As classes D e E continuam excluídas desse processo, seja por restrição educacional, seja pelo limite orçamentário que os coloca para além dos esforços governamentais de inclusão digital3. A telefonia móvel é aqui uma exceção, como todos sabemos, tendo se popularizado em todos as classes sociais. Em todo caso, é possível dizer que desigualdades históricas, como aquelas que existem entre as regiões, influenciam de modo decisivo o ingresso dos indivíduos na sociedade da informação4, como evidenciam as estatísticas disponibilizadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil.

A proporção de domicílios com computador cresceu em todas as regiões de 2006 para 2007. Este aumento é maior nas regiões Centro-Oeste (de 19% em 2006 para 26% em 2007), Sul (de 25% para 31%) e Sudeste (24% para 30%). A proporção de domicílios com computador é menor nas regiões Norte (13%) e Nordeste (11%) e o crescimento do indicador nestas regiões também foi menor, ficando em 3 e 2 pontos percentuais, respectivamente5.


A força negativa de processos de estratificação social historicamente injustos é percebida na disseminação das tecnologias de informação e comunicação, não apenas no Brasil, mas em todo o globo. Em 2007, a taxa de penetração da Internet no mundo desenvolvido era de 55,4%, enquanto que os países em desenvolvimento apresentavam modestos 12,8%. Se o Brasil está numa situação favorável em comparação com esses números, é conveniente também lembrar que nossa posição no cenário mundial sofreu queda no que concerne à penetração de TICs em nosso desenvolvimento. Essa é a conclusão a que chega a International Telecommunication Union6. Analisando uma composição de indicadores que medem acesso, uso e habilidades (skills), a ITU definiu um Indicador de Desenvolvimento em TICs (IDI) destinado a orientar políticas de informação e comunicação no mundo. De 2002 para 2007, caímos 6 posições, de acordo com essa estimativa, mais precisamente, da 54a. posição para a 60a. posição. Se comparamos nosso desempenho com outros países no quesito acesso (IDI Acess Sub-index, que leva em consideração acesso a banda larga, computadores por lares, Internet por lares, entre outras informações de infra-estrutura), nossa situação é ainda mais desconfortável: caímos da 54a. para a 69a posição. Nosso desempenho é um pouco melhor quando nossas habilidades são avaliadas, estacionados na 61a. posição. Despencamos para a 91a. colocação quando o preço que pagamos por TICs é avaliado, o que certamente influencia nas performances anteriormente consideradas. O preço da telefonia, móvel ou convencional, do acesso à banda larga ainda é incompreensivelmente caro em nosso país.

Esses números medem o que poderíamos chamar de grau da inclusão digital brasileira. Ainda que questionemos a propriedade de pensar a democratização das TICs a partir do conceito de “inclusão digital” (o que teremos de esclarecer ao longo deste ensaio) é fundamental identificar problemas claros que a implementação de políticas inclusivas enfrentam: o acesso a um recurso escasso e incompreensivelmente caro sem a democratização de outros bens culturais fundamentais (escolarização, educação fundamental, média e superior de boa qualidade, por exemplo), produzem um efeito bastante limitado. Mesmo se nos ativéssemos apenas aos princípios de uma lógica distributiva, teríamos que pensar em um conjunto de ações mais concatenadas no que diz respeito a aspectos culturais, educacionais, econômicos relacionados à inclusão digital. Acreditamos, no entanto, que existe um problema político mais amplo de democratização das TICs que não pode ser tratado apenas por uma lógica da inclusão, nem pelos princípios universalizantes de uma justiça distributiva.

Segundo a perspectiva que aqui defendemos, o princípio distributivo que orienta em grande medida as políticas de inclusão digital apresenta um limite teórico e um problema político claros: não leva em conta o problema da opressão e da dominação nos processos que definem o quê deve ser objeto de distribuição. Que o fato de estar conectado à grande rede seja um bem em si é algo longe de ser uma verdade inquestionável, como o estresse que pode ser identificado entre profissionais ligados às tecnologias de informação e comunicação pode ilustrar. E aqui, obviamente, não se trata de opor uma postura tecnófoba e ingênua à idéia de inclusão digital, mas de afirmar, de partida, que a democratização da tecnologia envolve bem mais que os problemas relacionados ao acesso, à distribuição e à inclusão podem sugerir. De modo semelhante a Iris Marion Young, acreditamos que, ao se orientar por princípios universais, a lógica da justiça distributiva, que dá corpo à idéia de inclusão digital, é insuficiente para captar a contribuição do(a) outro(a) (objeto da inclusão) no estabelecimento dos rumos que a sociedade de informação deve tomar. Aqui não se trata apenas de criticar o modelo de base liberal, a universalidade das necessidades que supõe para decidir sobre os processos de “inclusão”, mas de propor uma idéia particular de justiça que deveria orientar os processos de democratização digital. Citando Lyotard, Young nos dá uma idéia do fundamento dessa justiça e democracia.

Creemos que un lenguage es em primer lugar, y ante todo, alguien hablando. Pero hay juegos de lenguage em los que lo importante es escuchar, el los que las reglas tienen que ver con la audición. Tal juego es el juego de lo justo. Y em este juego uno habla sólo em la medida em que escucha, es decir, uno habla como quien escucha, y no como un autor (Lyotard, citado por Young, 1990, p. 14)


A rigor não se pode dizer que as políticas brasileiras de inclusão digital não contemplem, ao menos discursivamente, a crítica à idéia de justiça distributiva. Desde o Livro Branco, a questão da cidadania, a questão do empoderamento das minorias, aparecem nos discursos oficiais como problemas a serem tratados em nossa entrada na sociedade de informação. É preciso mesmo afirmar que esse esforço não tem sido meramente discursivo: iniciativas como os pontos de cultura, as políticas de “inclusão audiovisual” e aquelas baseadas em Software Livre, apontam na direção de que nosso problema não é meramente de acesso à sociedade de informação, mas de determinar a sociedade que desejamos e podemos construir a partir da constatação de transformações radicais nas tecnologias de informação e comunicação. Seria, no entanto, possível dizer que uma tensão entre os princípios de justiça distributiva e diferença naqueles esforços, ou, dito de outro modo, entre a idéia de “inclusão digital” e de “democracia digital”, ainda persiste nos esforços governamentais? Nossa resposta seria afirmativa e as implicações dessa tensão são um campo a ser analisado.

O problema que pretendemos tratar neste ensaio passa pelo estabelecimento de uma conexão entre a lógica que preside a idéia de justiça distributiva (e conseqüentemente de “inclusão digital”) e uma certa construção histórica em torno das idéias de informação e comunicação. A redução dos conceitos de informação e de comunicação a uma dimensão francamente performativa, tal como encontramos nas ciências da informação desde seus primórdios, como , por exemplo, na matematização da informação proposta por Claude Shannon na década de 40, apresenta uma considerável “afinidade eletiva” com a idéia de inclusão digital. Nos dois casos, trata-se de garantir o fluxo seguro e veloz de signos sem que as questões do sentido das mensagens, de sua apropriação, da orientação da arquitetura que permite este fluxo, constituam uma preocupação primeira – ou cuja resposta seja democraticamente produzida. A eficiência no transporte de informação é nos dois casos um princípio que se impõe às demais preocupações. Acreditamos que a idéia de inclusão digital não possibilita uma compreensão crítica desse movimento técnico e de seu sentido político. Ao alertar para a necessidade dessa crítica, esperamos contribuir para a compreensão da dificuldade intrínseca que se estabelece quando se deseja pensar a diferença nesse contexto e, de um modo mais amplo, desejamos com isso evidenciar os limites da idéia de inclusão digital.

Para atingir esse propósito propomos um percurso de argumentação que passaria: i. pela discussão do próprio significado que vêm adquirindo as idéias de informação e comunicação com o advento da revolução informacional; ii. pela retomada crítica de alguns esforços de inclusão digital associando esses esforços a uma percepção mais instrumental da informação e da comunicação; e, finalmente, iii. pelo esboço de algumas conclusões.

Um comentário:

Le Cazzo disse...

Uahhaaaah! Que sono!

Jonatas