terça-feira, 30 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica (Final)



A Negatividade na Experiência Hermenêutica e a Abertura para o Outro

A hermenêutica filosófica de Gadamer deve ser entendida não como um método por meio do qual se chega à verdade, mas como uma recuperação de formas de entendimento baseadas na tradição que foram excluídas e/ou reprimidas pela ciência moderna. Essas formas de entendimento, por seu turno, consistem em formas alternativas de "encontro" com a verdade. Neste sentido, o título de sua obra máxima, Verdade e Método, deve ser interpretado como o estabelecimento de uma tensão entre esses dois termos, com um argumento mais específico de que o método científico, longe de revelar a verdade, a obstrui. Isso não significa dizer que Gadamer é contra a ciência. Como ele mesmo afirma em Verdade e Método ao se opor ao ceticismo de Nietzche, "devemos à ciência a libertação de muitos preconceitos e a dissolução de muitas ilusões. A pretensão de verdade da ciência é sempre de novo questionar os pressupostos não-comprovados e deste modo conhecer melhor que antes o real" (Gadamer, 2004: 58). O problema é que o método científico proíbe uma série de questões (sobre a finitude, a historicidade, a culpa, a morte), "declarando-as absurdas" e, sendo assim, sua concepção de verdade é excessivamente restrita. A verdade, para Gadamer, revela-se a partir de um conjunto de experiências nas quais aquelas questões podem ser colocadas: a arte, o entendimento histórico e a linguagem (essas formas de experiência constituem a estrutura básica de Verdade e Método, que é dividida em 3 seções).

Ao contrário da ciência, que considera a verdade como adequação entre o pensamento e os objetos do mundo (a verdade do enunciado, que ocorre no juízo), a arte, a experiência histórica (baseada na singularidade e não na regularidade buscada no método científico) e a linguagem (que é, segundo Heidegger, nossa forma de ser no mundo) representam um encontro com a verdade, mas com a verdade não mais como adequação, mas como desocultação ou desvelamento. Esta noção de verdade (aletheia, ou, numa tradução literal, "manifestação") diz respeito ao "ato de trazer algo da escuridão para a luz" (Lawn, 2006:84) e isso não pode, segundo Gadamer (Ibid: 60), colocar a verdade "exclusivamente na demonstração discursiva", isto é, na verdade do enunciado. Com isso, Gadamer não quer dizer que a linguagem não assuma um papel central no encontro com a verdade, mas que ela tanto revela quanto oculta e que, neste sentido, toda verdade é sempre interpretação. Ela inclui tanto o que está sendo dito quanto o que está pressuposto ou não dito: "todo enunciado tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado" (Ibid. 67). Por essa razão, o entendimento não pode ser reduzido ao conhecimento científico, mas deve ser pensado como um encontro com uma tradição que pressupõe nossa experiência pessoal de estar no mundo.

Como seres humanos, estamos sempre imersos em uma tradição, isto é, em uma espécie de quadro de referência histórica, lingüística e normativamente mediado. De fato, nossa experiência desta tradição antecede qualquer juízo, qualquer reflexão e, por esta razão, a tradição nunca é inteiramente transparente para o intérprete. Toda interpretação está enraizada em um contexto histórico que condiciona e guia a investigação. Interpretamos a partir de preconceitos ou pré-julgamentos que, inicialmente, não estão presentes em um nível consciente, mas que podem ser questionados mediante o confronto com a interpretação de um outro. (Hoffman, 2003).

Assim, contra o método científico, Gadamer desenvolve o seu conceito de experiência histórica e dialética: a experiência hermenêutica. A experiência hermenêutica se opõe à concepção de experiência da ciência, que encara o conhecimento como um conjunto de conceitos e busca conhecer por meio de atos de percepção, isto é, nega a tradição e a historicidade e orienta-se para a generalidade. De acordo com a experiência hermenêutica, o conhecimento não é uma corrente de percepções, mas um evento, um encontro. Sua base é o conceito hegeliano de experiência. Ao criticar Aristóteles afirmando que tudo o que o interessa na experiência é a sua "contribuição à formação dos conceitos", Gadamer (1998: 521) diz que ele

passa por cima do verdadeiro processo da experiência, pois este é essencialmente negativo. Ele não pode ser descrito simplesmente como a formação, sem rupturas, de generalidades típicas. Essa formação ocorre, antes, pelo fato de que as generalizações falsas são constantemente refutadas pela experiência, e coisas tidas por típicas hão de ser destipificadas. [...] [F]alamos de experiência num duplo sentido, de um lado, como as experiências que se integram nas nossas expectativas e as confirmam, de outro, como a experiência que se ‘faz’. Esta, a verdadeira experiência, é sempre negativa.


O que Gadamer, seguindo Hegel, quer dizer quando afirma que a experiência é sempre negativa é que ela sugere que algo não é o que pensávamos que fosse, ela é sempre experiência de negatividade (Ibid.). É ela que nos surpreende, frustrando nossas expectativas, readequando nossos preconceitos ao quebrar as nossas certezas acerca dos padrões normais cotidianos e redefinindo nossos horizontes. Por esta razão, "a verdade é revelação, aquilo que se manifesta no encontro entre o familiar e o desconhecido" (Lawn, 2006: 87).

A questão que se coloca agora é: como é possível este tipo de experiência? Quando é que o familiar se encontra com o desconhecido na tradição? Por meio da abertura para o outro que se dá no diálogo. A tradição, para Gadamer, é linguagem, isto é, ela "fala" como um Tu. O nosso encontro com a tradição deve ser percebido como um encontro entre um Eu e um Tu, não no sentido de subjetividades distintas, mas no sentido de que em um texto ou em um produto humano qualquer, a tradição coloca uma pergunta para o leitor. Todo texto e todo enunciado é uma resposta para alguma pergunta (Gadamer, 2004: 67). Cabe ao intérprete compreender qual a pergunta a que o texto é uma resposta. Na verdade, a relação é dialógica: "uma pergunta é dirigida ao texto e, em um sentido mais profundo, o texto coloca uma pergunta ao intérprete. [...] a estrutura dialética da experiência em geral e da experiência hermenêutica em particular se reflete na estrutura de pergunta e resposta de todo diálogo verdadeiro" (Palmer, 1988: 198).

É justamente este diálogo que possibilita uma fusão de horizontes entre um intérprete e o Outro. Dado que Lawson não especifica como as novas questões para o estabelecimento de contrastes inclui os horizontes, preconceitos etc. dos sujeitos em situação de liminaridade, a formulação de novas questões aparece como uma espécie de caixa-preta. A importância da noção de experiência hermenêutica de Gadamer está na sugestão de que esta caixa-preta só pode ser aberta por meio de uma verdadeira abertura para o Outro.

(por editar)
Cynthia

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica III


Hermes carregando Diónísio, do escultor Grego Praxíteles (cerca de 350 a.C). O termo hermenêutica deriva do grego hermeneus (tradutor/intérprete). Hermes, mensageiro dos deuses, é o deus das fronteiras e daqueles que as atravessam, dos pastores, dos oradores, dos poetas, da invenção, dos comerciantes e dos ladrões.

Realismo Crítico e Hermenêutica

Como vimos anteriormente, dada sua concepção de agente humano, os realistas críticos não negam a dependência lingüística de nossas atividades, seja em contexto naturais, seja em contextos sociais (embora contestem que todas as nossas conceituações do mundo sejam igualmente adequadas). No entanto, isso não significa que essas atividades não possam também ser explicadas em termos causais e não apenas interpretadas. Isso porque, embora o processo de produção de um objeto (e aqui estou me referindo especialmente aos objetos sociais) possa ser linguisticamente dependente, a partir do momento em que passa a existir pode constituir um objeto passível de ser explicado causalmente. Para autores associados à teoria do discurso britânica, como Norman Fairclough, Bob Jessop e Andrew Sayer, considerar a importância da linguagem na constituição da realidade inevitavelmente coloca grandes questões causais acerca das condições de possibilidade da emergência de determinadas ideologias, de como elas estruturam e são estruturadas por conflitos políticos e, de maneira mais geral, como os discursos produzem seus efeitos (Fairclough, Jessop e Sayer, 2004).

A junção entre um momento interpretativo ou hermenêutico e um momento explicativo é central à abordagem contrastiva de Lawson (1997; 1999; 2003a; 2003b; 2003c; 2006), que se opõe fortemente à tendência quantitativista da macroeconomia. Na esteira de diversos autores que defendem a idéia de que o mundo social já se encontra previamente interpretado aos cientistas sociais devido ao fato de que somos agentes sociais competentes (cf. Giddens, 1993; Collier, 1994; Outhwaite, 1987), Lawson estende uma das formas de compreensão do mundo cotidiano para as ciências sociais. Para ele, uma das formas pela qual avançamos em nosso conhecimento cotidiano é perguntando por que algo não é exatamente como esperávamos que fosse. Assim, frequentemente nos perguntamos coisas do tipo: "por que nossos alunos se saíram pior nas provas deste ano do que nas dos anos anteriores"? (por que uma greve de professores "cortou" o semestre em dois); "por que me cachorro não quis sair para passear hoje"? (por que comeu algo que lhe fez mal no dia anterior); "por que minha correspondência não foi entregue hoje"? (por que o porteiro do meu prédio não veio trabalhar) etc.

Reflexões deste tipo são abundantes na vida cotidiana e a complexidade das respostas pode variar imensamente, algumas requerendo explicações mais profundas do que outras. Mas, de forma geral, num sentido pragmático, conseguimos resolver satisfatoriamente grande parte das questões levantadas em nossa vida diária, o que nos possibilita seguirmos com nossas atividades. Ao refletir sobre o que possibilita o sucesso ou o fracasso das respostas oferecidas, Lawson examina dois pontos correlatos: primeiro, a estrutura das perguntas e das respostas oferecidas; segundo, tenta estabelecer as precondições ontológicas do sucesso das respostas bem-sucedidas, isto é, "as condições que devem se apresentar para que tais práticas bem-sucedidas ocorram" (Lawson, 2003c: 86).

Em relação à estrutura das perguntas, cada uma delas estabelece um contraste com uma situação esperada, ou seja, em vez de assumirem a forma "por que x?", assumem a forma "por que x e não y, como esperado?". E as respostas dadas a esse tipo de pergunta referem-se a um fator causal que não diz respeito a x em si mesmo, mas explica o conttraste "x e não y". Para Lawson, isso é, obviamente, muito mais simples do que explicar todos os fatores causais envolvidos em uma pergunta do tipo "por que x", pois requer apenas que se identifique o fator responsável pela diferença em questão. A idéia do contraste não é nova. John Stuart Mill, Max Weber e diversos sociólogos históricos já adotavam aquilo que o primeiro chamava de "método da diferença". O que é novo na perspectiva de Lawson é a aplicação dos contrastes para a identificação do interesse suscitado pela pergunta e a posterior identificação de possíveis mecanismos causais via abdução ou retrodução (o método de inferência lógica preferido pelos realistas críticos). Em outras palavras, os contrastes podem nos alertar para situações em que existe algo de interesse para ser explicado, e isso tem uma relação direta com algumas das principais questões levantadas pela teoria feminista acerca da cegueira de gênero. A ênfase em explicações contrastivas significa que tanto as questões levantadas pelos cientistas quanto a forma como elas são tratadas, isto é, os mecanismos causais buscados necessariamente refletem os pontos de vistas, as interpretações e, para tomar emprestado um termo da fenomenologia, os horizontes dos cientistas. Não se trata aqui de simplesmente supor, como fazem as teóricas do standpoint theory, que as perspectivas são inevitáveis, mas de considerar que tais perspectivas interessadas, preconceituosas e viesadas são, na verdade, indispensáveis para o estabelecimento de uma explicação causal. Nas palavras do próprio Lawson (1999: 41),

A tarefa de detectar e identificar mecanismos causais previamente desconhecidos parece requerer o reconhecimento de contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes relevantes e percebê-los como surpreendentes ou interessantes e que desejem agir com base em sua surpresa ou interesse. A iniciação de novas linhas de investigação requer pessoas predispostas, literalmente preconceituosas, no sentido de olhar em certas direções.


É claro que não há garantias de que explicações baseadas no estabelecimento de contrastes sejam sempre bem-sucedidas, mas existem duas condições que devem ser satisfeitas para seu sucesso. A primeira é que deve haver um domínio de observação (espaço-temporal), o que Lawson (2003c: 89) chama de um "espaço de contraste", no qual é significativo, dada nossa compreensão atual, o estabelecimento de comparações. A segunda condição, mais difícil de ser alcançada, é que todos os aspectos ou partes relevantes do espaço de contraste sejam corretamente interpretados como estando sujeitos a mais ou menos o mesmo conjunto de influências, exceto por um subconjunto, que é o que deverá contar como o mecanismo causal em questão. Assim, por ex., meus alunos estiveram sujeitos a mais ou menos as mesmas circunstâncias que os alunos dos anos anteriores, exceto uma: a greve dos professores. O ponto importante, para Lawson (1997: 210), é que se deve identificar "um fator causal (incluindo-se talvez uma ausência) que contribuiu para o estado de coisas atual, mas que não teria possibilitado o que era esperado ou imaginado, ou não condicionou uma alternativa concreta".

O estabelecimento dessas condições mostra que, por um lado, o processo de construção do conhecimento pode se beneficiar da cooperação de indivíduos predispostos de diferentes maneiras, ou em situações diversas. Isso significa que, de acordo com o que defendem as teóricas do standpoint theory, é necessário incorporar aqueles conhecimentos tácitos, inarticulados, característicos de grupos em situação de liminaridade e, de maneira geral, excluídos da ciência social (Smith, 1990). De fato, a dualidade do pertencimento/não pertencimento de grupos como esses faz com que eles sejam forçados a ter consciência das práticas, dos valores, das crenças e das tradições não apenas dos grupos dominantes, mas também dos seus próprios. É essa "consciência bifurcada" que gera maiores oportunidades da identificação de contrastes que podem ajudar a esclarecer o funcionamento de uma totalidade. Isto significa dizer que, contrariamente a teóricas do standpoint como Nancy Hartsock (1983), uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente mais "verdadeira" ou produz melhores concepções de realidade, mas certamente apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e questionamentos alternativos. Assim, a vantagem do conhecimento gerado por grupos em situação liminar não se refere ao status de verdade das respostas obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou significativas (Lawson, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar visível aquilo que é invisível, ou de subverter questões tradicionais.

Este pré-entendimento que, na perspectiva de Lawson, deve ser tornado explícito e explorado ao máximo, representa uma tentativa de resgate de uma forma de entendimento relativa ao pensamento cotidiano e a uma forma de experiência que ficou marginalizada na tradição da ciência moderna. E essa tentativa de resgate coincide justamente com a experiência hermenêutica que Gadamer defende (embora não se limite a ela). O que gostaria de fazer aqui é mostrar como o momento hermenêutico sugerido por Lawson para a geração de hipóteses explanatórias pode se beneficiar de um diálogo mais intenso com a obra de Gadamer, em especial, com sua concepção de experiência hermenêutica.

Cynthia

domingo, 28 de junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica II



Realismo Crítico e Feminismo

Talvez a principal dificuldade em trabalhar as questões do feminismo de uma perspectiva realista diga respeito à confusão generalizada entre realismo e o maior inimigo teórico das feministas: o essencialismo. Não é demais lembrar que o conceito de gênero surge como uma reação às perspectivas essencialistas, especialmente aquelas que, de uma forma ou de outra, sugeriam uma adesão à célebre frase de Freud de que “anatomia é destino”.

Embora algumas formas de realismo sejam essencialistas, este não é o caso do realismo crítico. De forma bastante resumida, o realismo crítico é um tipo de realismo científico não-representativo ou não representacionista (o que significa dizer que não adere a uma teoria da verdade como correspondência) e que concebe a realidade como fundamentalmente aberta (ou não determinística) e estruturada ou estratificada (no sentido específico de que é constituída de mecanismos ou poderes subjacentes aos eventos e aos fenômenos observáveis). Em outros termos, contra as filosofias da ciência de orientação empirista, os realistas críticos contestam o realismo empírico segundo o qual “ser é ser percebido”, ao mesmo tempo em que, partindo das tradições fenomenológicas e hermenêuticas, enfatizam o papel ativo do sujeito na constituição da realidade. Não entrarei em mais detalhes acerca desta crítica, mas destacarei que uma das principais conclusões que se pode tirar desta concepção de realidade aberta e estratificada é que, contrariamente a todas as formas de reducionismo, eventos e fenômenos não podem ser atribuídos a um nível particular da realidade, mas mecanismos causais podem. Isto porque, para os realistas críticos, os “mecanismos”, “poderes” ou “configurações causais” dizem respeito a determinadas propriedades ou aspectos de um determinado objeto, ou uma estrutura em virtude da qual esse objeto apresenta um certo tipo de poder ou potência ou, ainda, uma forma de ação específica que pode ou não ser atualizada, dependendo da ocorrência de condições que ativem esses mecanismos. Dessa forma, a idéia de agência ou de poder causal é mantida, ainda que num sentido estritamente não determinista. (Bhaskar, 1979, 1997; Lawson 1997, 1999, 2003a; Hamlin, 2000, 2008).

Em termos práticos, isso significa dizer que as pessoas não podem ser caracterizadas como objetos meramente físicos, químicos, biológicos, psicológicos ou sociais, mas como estruturas emergentes que incluem todos esses estratos da realidade. Existe, uma relação de dependência entre os mecanismos de cada um desses níveis, ainda que se possa considerar que, especialmente no que diz respeito à relação entre os níveis social e psicológico, deve haver uma emergência concomitante de seus mecanismos ou, nos termos de Caroline New (2005), de uma perspectiva ontológica, é provável que a sociedade, a linguagem e a mente humana tenham emergido juntas.

Ao realismo ontológico caracterizado acima, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais. Para os realistas críticos, isso se aplica mesmo às suas proposições ontológicas que, por este motivo, são sempre abertas e sujeitas a reformulações. Quando aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter ação-dependente dos fenômenos sociais, isto é, sua existência depende, ao menos em parte, da agência humana intencional. É importante, no entanto, manter a distinção entre os agentes humanos, por um lado, a sociedade e a cultura, por outro. Para Roy Bhaskar (1979), a sociedade humana já está sempre constituída e, neste sentido, qualquer práxis humana ou qualquer ato de objetivação só pode modificá-la. Por outro lado, a sociedade é tida como uma condição transcendental e causalmente necessária para a mediação intencional (Bhaskar, 1996b), em outros termos, não há ação humana (e isto inclui a produção de conhecimento) fora de um sistema de posições (locais, funções, regras, direitos, deveres etc.).

De forma a não estender excessivamente esta exposição, mencionarei uma distinção central ao realismo crítico britânico contemporâneo, conforme operada por Roy Bhaskar: a distinção entre a dimensão intransitiva ou ontológica do conhecimento e sua dimensão transitiva ou epistemológica. A dimensão ontológica, ou o princípio da intransitividade existencial dos objetos do conhecimento, significa simplesmente que os objetos naturais existem independentemente de nossas observações e descrições dos mesmos. Já o princípio da transitividade do conhecimento estabelece que, ainda que exista um mundo “lá fora”, este mundo só pode ser conhecido sob certas descrições social e historicamente contingentes. Se a dimensão transitiva e o relativismo epistemológico que decorre dela permite que os realistas se afastem do que se conhece como “falácia ôntica”, ou a redução do conhecimento à existência (à maneira dos essencialistas), a dimensão ontológica ou intransitiva evita a “falácia epistêmica”, ou a redução do mundo ao que se conhece sobre ele – o que, para os propósitos que nos interessam, significaria uma subsunção absoluta da natureza à cultura ou do sexo ao gênero.

Existe ainda um elemento central ao realismo crítico (especialmente em e que diz respeito à sua dimensão crítica: com base na idéia de que os valores são constituintes do próprio discurso científico, a teoria da crítica explanatória desenvolvida por Roy Bhaskar (1998) refuta a famosa “lei de Hume”, segundo a qual a transição de fatos para valores é logicamente impossível. É esta crítica que fundamenta a idéia de uma práxis transformativa que, com base em noções como ausência e desejo, traz o potencial para a emancipação.

Demonstrado, em linhas gerais, a forma como o realismo crítico pode contribuir para os debates feministas, passarei agora para a descrição do método de explicação desenvolvido pelo economista inglês Tony Lawson o chamado método das explicações contrastivas. Nesta exposição, basear-me-ei fortemente em uma seção de um artigo anteriormente publicado (Hamlin, 2008: 76-78).

Cynthia

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica



O texto abaixo é uma espécie de work-in-progress relativo a uma apresentação que efetuarei na XII Conferência Anual da Associação Internacional de Realismo Crítico, que acontecerá entre os dias 23 e 25 de julho, em Niterói. Aos adeptos de Derrida & Cia Ltda, aviso que o conceito Kantiano de boa-vontade é essencial para a compreensão de um trabalho neste estágio de desenvolvimento. Neste sentido, sugiro um alinhamento, ainda que temporário, com a noção gadameriana de caridade interpretativa.
Cynthia

Resumo

Nos últimos anos, o economista britânico Tony Lawson vem travando um profícuo debate com as economistas feministas ao sugerir que o realismo crítico e o método das explicações contrastivas desenvolvido por ele possibilitam recuperar a dimensão crítica e emancipatória da teoria feminista. O estabelecimento de contrastes funciona, neste método, como um “momento hermenêutico” da análise, entendido como uma espécie de propedêutica para a formação de hipóteses explanatórias. A visão segundo a qual a hermenêutica deve ser complementada por uma explicação caracterizada pelo estabelecimento de mecanismos causais parece derivar da preocupação dos realistas críticos em não sucumbir à dimensão idealista (o mundo social seria inteiramente dependente das concepções que as pessoas têm acerca dele) e conservadora (a ausência de crítica à tradição) da hermenêutica. Meu propósito aqui é radicalizar este momento hermenêutico ao sugerir que, apesar das dificuldades que o conceito de “tradição” coloca para o realismo crítico e, em particular, para o feminismo, a “experiência hermenêutica” de Gadamer, cuja base é a idéia hegeliana de negatividade, é não apenas compatível com os ideais de emancipação do realismo e do feminismo, mas é especialmente adequada para questionar os excessos da ciência que ajudam a criar categorias opressivas que ajudam a reproduzir as desigualdades de gênero.

Introdução

A teoria e, em particular, a epistemologia feministas partem da idéia de que as práticas dominantes de conhecimento colocam em desvantagem não apenas as mulheres, mas outros grupos caracterizados como o Outro do sujeito ocidental, concebido a partir do modelo cartesiano. Essas desvantagens revelam-se sob uma infinidade de formas:

· A sub-representação de mulheres e outros grupos minoritários em pesquisas leva a uma super-generalização de características associadas a sujeitos masculinos, brancos e de classe média, que passam a ser consideradas universais. Um caso clássico são os estudos sobre mobilidade social desenvolvidos por Blau e Duncan que, ao excluir mulheres, homens desempregados e trabalhando em tempo parcial de suas amostras, chegam à conclusão que os EUA são uma sociedade fundamentalmente aberta e meritocrática, onde o status de origem dos indivíduos conta pouco para a determinação de seu status socioeconômico (Brym et al. 2006).
· A desconsideração de questões de interesse de mulheres nas pesquisas, tidas como irrelevantes ou secundárias torna a ciência um empreendimento fundamentalmente feito por homens e para homens: temas como trabalho doméstico, violência contra a mulher, reprodução e sexualidade e, mais recentemente, numa espécie de retorno ao feminismo do século XIX, poder e participação feminina, foram amplamente ignorados na tradição sociológica.
· A invisibilidade da produção científica de mulheres, especialmente daquelas que não se baseiam nas questões colocadas pelo mainstream da pesquisa científica: para ficarmos apenas na sociologia, a história da disciplina é contada e recontada a partir dos chamados pais fundadores, ignorando a contribuição de mulheres que escreveram entre os anos de 1830 e 1930, a fase clássica da sociologia: Harriet Martineau, Jane Adams, Ana Julia Cooper, Marianne Weber e autoras da Escola de Chicago como Julia Lathrop, Anne Marion McLean etc. (Lengermann e Niebrugge-Brantley, 2007).
· Uma desvalorização de estilos cognitivos e métodos de pesquisa supostamente “femininos” porque se opõem aos cânones tradicionais ou hegemônicos de razão, verdade etc. Para me utilizar de um exemplo curioso, em sua hermenêutica romântica, Schleiermacher opera uma distinção entre um conhecimento divinatório ou feminino (baseado em uma suposta “receptividade espontânea”, na conversação e no sentido de comunidade) e um conhecimento comparativo ou masculino (baseado em procedimentos sistemáticos), privilegiando o segundo no decorrer de sua obra. Mais curioso ainda, ao criticar a hermenêutica como método, Gadamer sugere um retorno à receptividade, à conversação e à comunidade enfatizados por Schleiermacher, “menos o feminino divinatório ou empático” (Gadamer citado em Wright, 2003: 43).

Se problemas relacionados à alteridade e à diferença, como os listados acima, hoje aparecem como preocupação metodológica de grande parte dos cientistas sociais, isso se deve, em parte, às reflexões feministas. Claro que não se pode falar de uma abordagem feminista no singular, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista epistemológico. No entanto, para além de suas diferenças pode-se argumentar que os diversos tipos de feminismo tendem a compartilhar algumas idéias principais: 1) a de que o conhecimento é sempre situado, refletindo perspectivas particulares; 2) que, de uma perspectiva histórica, as relações de gênero influenciaram a produção do conhecimento de uma forma tal que uma visão de mundo androcêntrica foi tomada como universal; 3) que esta suposta universalidade conferiu àquela perspectiva uma autoridade epistêmica que não se justifica, dado que tem sido fonte de erro; 4) que esses erros têm conseqüências éticas e políticas consideráveis ao reproduzir desigualdades; 5) que o papel da teoria e da epistemologia feministas é produzir um tipo de conhecimento crítico ou emancipatório que possa servir aos interesses das mulheres e de outros grupos subordinados.

Se deixarmos de lado as especificidades da problemática de gênero, é possível perceber que a epistemologia feminista levanta uma série de questões relativas às concepções, práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento (Anderson, 2009) e, neste sentido, suas reflexões extrapolam aquela problemática. De fato, ao enfatizar que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou descolada de pontos de vistas específicos; que todo conhecimento será sempre parcial, transitório e falível; que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas, mas são marcadas por dimensões de classe, gênero, raça, geração etc.; que as relações de poder têm uma influência direta na produção de conhecimento, muitas feministas têm sustentado uma espécie de “afinidade eletiva” entre feminismo e pós-modernismo, o que quer que esse último termo signifique (cf. Flax, 1990; Harding, 1990; Hekman, 2003).

O problema é que não é certo que o casamento feminismo/pós-modernismo seja uma união feliz. De um ponto de vista epistemológico ou, mais propriamente, da crítica à ciência moderna, os diversos funerais (a morte do sujeito, a morte da metafísica e a morte da história) patrocinados pelos críticos do Iluminismo trazem alguns problemas para a dimensão crítica ou emancipatória de qualquer teoria crítica, da feminista em particular. Não pretendo discorrer sobre esses funerais aqui (para uma excelente análise desta questão, remeto ao trabalho de Seyla Benhabib, 1995), mas apenas afirmar que, se por um lado o feminismo coloca em questão o sujeito cartesiano ao negar o dualismo sujeito objeto que possibilita distinguir claramente quem conhece daquilo que é conhecido, por outro, o sujeito não pode ser simplesmente dissolvido na linguagem, no discurso ou no que quer que seja, pois com isso alguns conceitos como auto-reflexividade, intencionalidade e autonomia desapareceriam, impossibilitando qualquer agência emancipatória. Voltarei à questão do sujeito cartesiano mais adiante, ao expor a crítica de Heidegger e de Gadamer ao dualismo proposto por Descartes. Por ora, é suficiente mostrar que algumas concepções da chamada morte do sujeito colocam sob suspeita a existência de sujeitos femininos e, portanto, da própria idéia de emancipação.

A fim de esclarecer minimamente o que está em jogo aqui, o problema do sujeito na teoria feminista diz respeito a dois problemas principais relacionados à categoria “mulher”. O primeiro é que ela é excessivamente geral para permitir a apreensão das diferenças entre diferentes grupos de mulheres. Em um sentido importante, as feministas se deram conta que, ao propor um sujeito unificado sob a denominação “mulher”, estavam reproduzindo aquilo que criticavam na perspectiva androcêntrica, isto é, super-generalizando e ignorando as diferenças. Isto foi em parte resolvido ao se abandonar a categoria no singular e adotar o termo “mulheres”. Em segundo lugar, e isso tem uma relação mais estreita com o chamado feminismo pós-moderno, argumenta-se que a categoria “mulheres” (mesmo no plural) serve meramente para oprimir aquelas pessoas categorizadas como tais, e não para descrever suas características essenciais (Warnke, 2003).

O problema é que, para que a teoria feminista possa ser considerada uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como as mulheres têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e “poderes causais” que, embora histórica e linguisticamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra. Afinal de contas, quem é o sujeito que o feminismo visa emancipar? Será que o problema deve ser resumido à dissolução da categoria “mulheres” em favor de outra, menos opressiva? Se for este o caso, qual ou quais seriam essas categorias? Será que, como percebe Butler, qualquer forma de nomeação não seria uma forma de assujeitamento e, portanto, de opressão?

Pessoalmente, acredito que reduzir as questões do feminismo a questões de desconstrução não dá conta do problema da emancipação. Existe uma dimensão agêntica que só pode ser adequadamente tratada se se abre a possibilidade de que o sujeito pode criar uma distância mínima em relação aos discursos ou às cadeias de significado no qual está imerso a fim de que possa refletir sobre elas e alterá-las. É aqui que, acredito, a hermenêutica gadameriana pode oferecer uma vantagem em relação às teorias do discurso a partir de noções como diálogo, horizontes e experiência hermenêutica.

Além disso, reduzir a categoria mulheres a algo meramente nominal, como pretendem as construtuvistas, gera um problema adicional para o feminismo: a dissolução ou elisão da distinção sexo/gênero. Essa elisão que, no fundo, é uma subsunção da natureza à cultura, gera um problema particularmente espinhoso no que diz respeito à materialidade dos corpos, seus limites e possibilidades. Certamente não se trata de negar que mesmo a natureza só se apresenta para nós sob certas descrições (como afirma Gadamer, “ser que pode ser compreendido é linguagem”), mas disso não se segue que nossas descrições de fato constroem os próprios objetos (que o digam os transexuais, que são obrigados a lidar com a materialidade de seus corpos de forma especialmente dolorosa). Como afirma Régis Debray,

“do fato que o mundo objetivo é inseparável das representações práticas que a sociedade tem dele, não se segue que esta última pode constituir todas as suas referências objetivas. Que um mapa contribui para a formação de um território não significa que o território é a invenção do cartógrafo” (Debray apud Vandenberghe, 2003: 465).

Em outros termos, acredito que a distinção sexo/gênero é importante e deve ser mantida. Contrariamente ao que defendem construtivistas radicais, a realidade da diferença sexual deve ser considerada “uma questão distinta dos processos sociais por meio dos quais as categorias de sexo são alocadas”. É este tipo de distinção que o realismo crítico oferece ao levar a sério a existência do mundo ou, de forma alternativa, ao propor uma distinção entre a ontologia e a epistemologia.

Com base nisto, em lugar do casamento feminismo/pós-modernismo, proponho aqui uma espécie de ménage a trois entre feminismo, hermenêutica e realismo crítico. Pretendo demonstrar que a vantagem desta associação decorre da possibilidade de se trabalhar com uma concepção de sujeito que, ainda que socialmente (e discursivamente) constituído, detém um certo grau de autonomia em relação à sociedade e à cultura que lhe permite resistir e alterar as condições que contribuem para sua opressão. Certamente que esta combinação não é isenta de problemas e dificuldades. Se a junção entre duas perspectivas teóricas distintas já é uma questão delicada, introduza um terceiro na relação e os problemas se multiplicam consideravelmente, conforme já demonstrou Simmel em seu trabalho sobre a tríade.

No restante deste trabalho, tentarei demonstrar os principais pontos de aproximação e de tensão entre essas três abordagens e, em seguida, oferecer uma tentativa de síntese.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Seyla Benhabib

Meio biográfico demais para o meu gosto, mas acho que vale a pena assim mesmo. Jonatas

Entrevista com Hannah Arendt (1973)

Parte 1



Parte 2



Parte 3



Parte 4



Parte 5

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Pudor, despudor e modernidade

Abaixo, trecho de um ensaio a ser apresentado no próximo encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia.



Jonatas Ferreira e Antônio Ricardo Silva

Precisamente por ter sido compreendido como uma experiência ontológica fundamental, ou seja, uma abertura à nossa finitude como tal, o pudor é necessariamente histórico. É possível falar de uma história do pudor, ou seja, da mudança no modo como experimentamos a nossa própria nudez, portanto. E de pronto percebemos que embora remetendo a algo fundamental em nós, a percepção da própria nudez pode se manifestar de diversos modos. Poderíamos dizer que o pudor é um elemento que articula a oposição entre o que é civilizado, ou seja, próprio de seres humanos, e incivilizado, região indigna de animalização. Não é fortuito, portanto, que o que foi considerado civilizado ao longo da história moderna do ocidente tenha produzido uma educação corporal e um sentido moral que se articularam em torno da idéia de responsabilidade pessoal. E isso já nos coloca na perspectiva de uma certa ascese. Assim, será em nome do decoro e da educação que Erasmo falará em Da civilidade das crianças: “Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. 'Evite isso', diz Erasmo. 'Não é decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada'” (ELIAS, 1993, vol. 1, p. 71). À mesa e fora dela, o processo civilizador no ocidente caminhará com a modernidade no sentido de um controle corporal cada vez mais individualizador, como passam a demandar códigos de etiqueta de um mundo cada vez mais racional.

"O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível das emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasiões" (Ibid., p. 82).


A pudicícia passa paulatinamente a requerer um controle das disposições naturais dos corpos: suas secreções, hálitos, nudez, emoções e tudo que se possa associar diretamente à existência de um tal 'corpo animal', incivilizado. A partir do século XVII, por exemplo, esse controle começa a impor como despudorado o hábito parisiense de tomar banhos nus no rio Sena. Isso não impede, ainda no século XVIII, Mme de Châtelet de banhar-se diante de seu criado ou que Luís XIV se sentisse absolutamente confortável em receber seus convidados enquanto defecava. No primeiro caso, a diferença social entre ela e o seu lacaio torna esse último invisível, objeto impossível de constrangimento precisamente por não ser considerado exatamente humano, mas algo como um autômato (BOLOGNE, 1986, p. 44 e 45). Mme de Châtelet despe-se, assim, diante de alguém menos visível que o bichano de Derrida. E isso faz diferença, pois a nudez depende precisamente da reflectividade que o outro proporciona. No século XIX, por exemplo, ficar despida diante de um médico era uma experiência de nudez bem mais intensa que ficar nua diante de um pintor (Ibid., p. 111).

Se a sociedade burguesa caminha de um modo geral em direção à pudicícia, posto que se torna mais individualizadora, racional, disciplinar, parece estranho que em nome desses valores o Antigo Regime pudesse ter lançado um profundo grito de despudor. Esse brado é a obra de Sade, do “sargento do sexo”, como se não nos falha a memória dizia Blanchot; deste acerca de quem teria dito Rousseau: a jovem que ler uma só página de seus livros estará perdida para sempre (BLANCHOT, 1990, p. 17). Como é sobejamente comentado, a literatura do marquês de Sade se estrutura sobre a solidão absoluta da lei do prazer (Ibid., 19). E, assim, o moto perpétuo sadeano seria:

“a natureza nos faz nascer sós, não existe nenhuma espécie de relação entre um homem e outro. A única regra de conduta é, pois, que eu prefira tudo o que me afete de modo feliz, sem ter em conta as conseqüências que esta decisão pode acarretar no próximo” (Ibid., p. 19).


O universo sadeano pode nos dar a impressão de algo desordenado, caótico. Não é obviamente o que Sade tem em mente. Se ele investe contra o interdito, ele o faz com regras de um rigor extremo; suas orgias são administradas com precisão, com regras intransponíveis, hierarquias estritas, sucessões de prazer que devem ser obedecidas, por uma apuro na busca de uma ordem de prazeres que sempre está a serviço da intensificação do gozo, mas que não é menos burocrática por isso. Essa racionalização do gozo, o poder de sua lógica, é condição para que Sade possa investir contra toda forma de interdição, e portanto contra toda forma de pudor: o divino, os laços sanguíneos, a vida do outro, o sofrimento do outro, a própria morte. Protegido no rigor de sua lógica iconoclasta, nada envergonha Sade. “Oh, Juliette, diz a Borghese, eu quisera que os meus extravios pudessem me levar como a última das criaturas à sorte para a qual nos conduz o abandono. O patíbulo mesmo será para mim o trono das voluptuosidades, ali desafiarei a morte, gozando de prazer de espirar vítima de minhas maldades” (SADE apud BLANCHOT, 1990, p. 33 e 34).
Em Sade, o homem e o animal estão submetidos a um só princípio natural: a busca egoísta pelo prazer. Tudo se move na natureza em torno desse princípio que, seguido, diluiria as fronteiras da interdição e do pudor. É isso que concluiríamos se, como Eugênia, escutássemos a voz de Dalmâncio, seu preceptor.

“Foram os primeiros cristãos, diariamente perseguidos por seu sistema imbecil, que gritaram a quem queria ouvi-los: 'Não nos queimem, não nos esfolem. A natureza diz que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito'. Imbecis! Como ela, aconselhando-nos sempre ao deleite, e jamais imprimindo em nós outras inspirações, poderia, em seguida, numa inconseqüência sem limites, assegurar-nos de que não devemos nos deleitar se isso pode causar pena nos outros? Ah! Crede, Eugênia, crede, a natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz” (SADE, 1988, p. 45).


Como a ciência moderna, Sade busca um princípio, uma mathesis universalis, a partir do qual todos os viventes seriam compreensíveis; e se como a ciência o domínio de tudo é também uma motivação, o fim último de todo esforço intelectual ou físico é um só: desprender tudo no gozo, no prazer. No primeiro sentido, Sade é a consumação metafísica do humanismo naquilo que ele tem de impensado, ou seja, em sua redução do humano ao animalitas. “O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, lançado no mundo como qualquer outro animal, está 'acorrentado à natureza', sujeitando-se como um 'escravo' às suas leis”, diz Robert de Moraes (2006, p. 30). O libertino apenas está em condições de projetar no outro, em seu corpo, o poder inapelável dessa natureza. Diferentemente dessa consumação da racionalidade, ou do logos ocidental, entretanto, todo esse esforço visa apenas ao excesso, ao gozo, ao noturno, ao ato absoluto de dispêndio, como diria Bataille. A radicalidade do seu gesto confinou sua literatura durante décadas até que os surrealistas se interessassem pelo sentido despudorado, excessivo dessa violência literária1.

"Na base da admiração dos surrealistas por Sade está uma espécie de materialismo cósmico, que põe em xeque o primado do homem no universo, operando um deslocamento radical dos valores humanistas que sustentam, no Ocidente, vários séculos de cultura. Se é desse materialismo que nasce a erótica sádica do marquês, é também dele que partem os signatários do Manifesto na tentativa de reinventar o mundo sob o princípio fundante do desejo" (ROBERT DE MORAES, 2006, p. 116)


Se o surrealismo de Breton, Leiris namorou com o anti-humanismo sadeano, com a violência, a exceção, com uma região da experiência humana colocada para além do interdito, do pudor, é a obra de Bataille que levará as conclusões literárias e filosóficas do marquês mais longe. A literatura batailleana investe claramente no excessivo, como poderemos perceber em obras como O azul do céu, ou História do olho. Sua contribuição filosófica, como pode ser constatado em O erotismo, é uma elaboração teórica da relação entre erotismo e violência, Eros e Thanatos, que já se apresenta na obra de Sade. A apropriação dionisíaca do erotismo em Bataille também é algo que salta aos olhos, como na frase que abre O erotismo: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. E o elemento fundamental da experiência do erotismo é precisamente o desnudamento.

"A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência contínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão acesso ao sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conforme à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. [...] O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação" (BATAILLE, 1987, p. 17)


O erotismo seria um ato despudorado por princípio. A nudez que ele proporciona pressupõe a transgressão das fronteiras do interdito e, assim, a experiência “dionisíaca”, de afirmar vida e morte como partes de um todo, a perturbação da descontinuidade dos corpos e sua afirmação a um só tempo, a perda de si e da individualidade como condição da afirmação da vida como um princípio maior. Impossível, de fato, não escutar a voz do velho e libertino marquês aqui. Do mesmo modo, é preciso afirmar o sentido cultural desse investimento na região de limite onde pudor e despudor, nudez e desnudamento se articulam: a experiência do excesso, sua reincorporação nas práticas da cultura ocidental, seria um antídoto contra a razão individualizadora, disciplinadora que submete tudo à lógica do trabalho e da produtividade. De um modo amplo, esse é um grito surrealista ao qual a cultura ocidental – suas contra-culturas – abriu bem os ouvidos. É a desestabilização dos lugares de segurança do sujeito, do humano, do logos, que constituem o foco desse investimento na fronteira entre o pudor e o despudor. O discurso de liberação pela sexualidade ecoa aquele brado de modo muitas vezes impensado.


Referências

AGAMBEN, Giorgio. 2004. The Open. Man and Animal. California, Stanford University Press.
BATAILLE, Georges. 1987. O erotismo. São Paulo, L&PM.
BLANCHOT, Maurice. 1990. Lautréamont e Sade. México, Fondo de Cultura Económica.
BOLOGNE, Jean-Claude. 1986. História do Pudor. Rio de Janeiro, Elfos Editora.
DERRIDA, Jacques. 2002. O Animal que logo sou. São Paulo, Editora da UNESP.
-----------. S/d. “Os Fins do Homem”. In Margens da Filosofia. Porto, Rés-Editora.
ELIAS, Nobert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. 1976. “O 'estranho'”. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.
GLENDINNING, Simon. 1998. On Being with the Others. New York, Routledge.
HEIDEGGER, Martin. 1987. Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores.
MORAES, Eliane R. 1994. Sade: A felicidade Libertina. Rio de Janeiro, Imago.
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SADE. 1998. Ciranda dos Libertinos. (coletânea organizada por L.A. Contador-Borges). São Paulo, Max Limonad.
--------. 2006. Os 120 dias de Sodoma. A escola da libertinagem. São Paulo, Iluminuras.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nanobiotecnologia

Já que Artur amarrou o bode (cara mais susceptível!!!), passo na frente dele e publico algumas considerações sobre nanobiotecnologia e risco. Trata-se de trecho de um artigo mais amplo que será publica numa coletânea organizada, por Paulo Henrique Martins, a partir de ensaios apresentados no Encontro Pré-ALAS ocorrido no Recife em 2008. Com sorte, deslocado do contexto, o trecho fará sentido - se não fizer, não tem problema: o intuito é só chatear ainda mais Artur.

Jonatas Ferreira



O estado da arte da nanobiotecnologia no Brasil deve ser apreciado no contexto dos horizontes em que este campo de conhecimento abrem no campo da saúde. Em 2003, tomando como base um workshop realizado no estado da Vírginia, e que reuniu “cientistas, engenheiros, e físicos”, a National Nanotechnology Initiative produziu um relatório elencando os principais avanços científicos e tecnológicos que são esperados no campo da saúde como decorrência do progresso das nanociências. Foram identificados sete grandes tópicos onde se esperam progressos: i. na produção novas tecnologias de imagens em nível molecular; ii. “ferramentas analíticas quantitativas” capazes de aprender como a célula regula seu funcionamento e como esse funcionamento “pode ser manipulado de modo previsível”; iii. “integração quantitativa de informação derivada da aplicação de nanosensores combinados com novas tecnologias de imagem”; iv. interação entre genômica, proteômica e nanotecnologia de modo a permitir a obtenção de um “modelo físico da célula como máquina”; v. melhores testes ex vivo e “melhoria na atuais técnicas de laboratório”, de modo a permitir uma detecção e prevenção em estágios iniciais das doenças; vi. Avanços na disponibilização de medicamentos e terapêuticas inteligentes; vii. “em última instância, a nanomedicina irá além da função de restaurar a um estado normal e saudável e proporcionará meios de guiar a regeneração de tecidos, órgãos e sistemas de órgãos com capacidades avançadas de auto-reparação e prevenção de doenças” (NNI, 2003, p. vi e vii).

O cenário apontando especialmente nesse último tópico, cenário de longo prazo, horizonte para onde deveriam se encaminhar o conjunto dos esforços da nanobiotecnologia, parece em grande medida utópico: um mundo de perfeita saúde e neguentropia biológica, um mundo do controle tecnológico. Essas utopias são intensamente exploradas por uma literatura dita pós-humanista ou trans-humanista. Acerca do contra-senso desse tipo de discurso tivemos a oportunidade de nos manifestar anteriormente (FERREIRA, 2004) e silenciaremos aqui. Mas é claro que também podemos falar da importância da elaboração dessas utopias - não apenas no processo de legitimação do discurso tecnocientífico, para quem um controle virtualmente perfeito sobre o mundo natural é um horizonte regulador da própria atividade científica -, como também na garantia de polêmicas - em que utopias para uns são consideradas distopias radicais para outros - que ao fim e ao cabo reforçam a imagem de controle que a tecnociência pretende construir para si.

Acredito que um elemento fundamental desse tipo de legitimação que buscam as ciências da vida está relacionado a uma mudança de ênfase na própria idéia de qual é a missão da medicina e que diz respeito a passagem de um modelo de intervenção restauradora para uma intervenção potencializadora. Para ser claro, não precisamos esperar por um cenário de ficção científica para perceber essa transformação. O uso de medicamento psicofarmacológico ou daqueles que tratam da impotência masculina já se submetem em larga medida a esse novo modelo. O uso de ansiolíticos ou moderadores de humor, o uso de medicamentos que combatem a disfunção erétil, não se restringem ao tratamento de doenças, mas a melhoria da performance. Comentando acerca da idéia de convergência tecnológica nas nanociências, Roco & Bainbridge (2002), observam a esse respeito:

A convergência fornece explicitamente um valor moral comprometido. Esse conceito implica que nanociência e convergência irá romper (deva romper) as fronteiras entre o homem, a natureza e os artefatos tecnológicos. Convergência diz respeito à metáfora de uma máquina pensante e ao ideal de melhoramento.


Em um relatório da Erosion, Technology and Concentration Group, obtemos um comentário semelhante: “É na esfera da performance humana […] que a convergência produzirá seu maior impacto e lucro. O que se tem em mente não é apenas eliminar a incapacidade e curar a doença, mas corpos mais fortes, mais velozes, que apresentarão um melhor desempenho que o corpo que hoje é considerado o mais saudável e atlético” (ETC, 2006, p. 14). E aqui não nos cabe analisar em que medida esses cenários são factíveis, factíveis a médio ou longo prazo. Como já observamos, essa já é a lógica que propõe a indústria farmacêutica para aqueles que podem pagar os seus medicamentos. Interessa-nos, por outro lado, o não refletido da própria idéia de melhoria aqui: a redução da vida ao seu aspecto biológico, a redução da vida biológica a sua regulação molecular, aos princípios que estabelecem tal regulação. Interessa-nos uma reflexão hegemônica da vida como problema técnico. Ora, analisando as ciências da vida do século dezenove, Foucault já alertava para a necessidade de abrir nosso esforço reflexivo para além dessa delimitação histórica. Há uma literatura sobre biopoder suficientemente extensa para que não nos preocupemos em acrescentar aqui esclarecimentos nessa direção. Em lugar disso, focaremos num aspecto específico dessa redução que se opera nas ciências da vida e que diz respeito à própria noção de risco como centro das polêmicas que hoje travam os mais diversos atores sociais em torno da inovação tecnológica.

A primeira constatação a esse respeito é admitir que, embora esse tenha sido um campo onde a ação de atores importantes da sociedade civil foi mais intensa - como tem sido o caso da atuação de entidades ambientalistas com respeito à produção e comercialização de alimentos geneticamente modificados -, o risco constitui um terreno em que embates políticos sempre cedem ao argumento técnico. E isso não ocorre por alguma qualidade racionalizadora de tais argumentos, mas pelos termos em que o debate acerca dos riscos é definido. A esse respeito convém escutar o que Ulrich Beck já dizia na década de 1980. Comecemos pois por uma definição clara: “Risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos pela própria modernização” (1992, p. 21). A identificação de um risco não é a mera identificação de um perigo, mas uma forma sistemática, metódica, técnica de tratar com um efeito da civilização tecnológica. Trata-se, portanto, de uma noção que pressupõe um tratamento técnico para um problema induzido pela própria técnica. Para Beck, o risco não é um efeito colateral da sociedade contemporânea, mas um elemento fundamental na própria lógica reflexiva mediante a qual o capitalismo prospera. Mas há evidentemente muitos problemas que podem ser identificados na auto-referência a partir da qual o discurso do risco prospera: i. ele avalia e mede o efeito que uma substância tem sobre uma pessoa, mas não o que a acumulação de diferentes substâncias apresentar; ii. ele não leva em conta que certos riscos, especialmente os produzidos por novas tecnologias, podem ter efeitos que se colocam para além do ciclo de vida de uma indivíduo – podendo se manifestar em seus filhos e netos, por exemplo; iii. um mesmo agente poluente, por exemplo, pode ter efeitos bastante diversos em diferentes indivíduos – a determinação dos limites de risco desse agente, no entanto, padronizam uma espécie de tipo biológico médio; iv. no que diz respeito às tecnologias radicalmente inovadoras, como as nanotecnologias, a avaliação dos perigos ambientais, biológicos a partir de uma lógica de risco é claramente insuficiente na medida em que nos faltam referências técnicas para calcular o efeito que a introdução de novos materiais, com propriedades novas, teriam sobre a vida biológica.

Um efeito subliminar da lógica do risco, no entanto, seria a forma como ele se incorpora em nosso cotidiano. Se a lógica científica caiu do Olimpo de legitimidade em que vivia na sociedade tecnológica, ela o fez sobre a vida cotidiana, buscando delimitar nossas possibilidades de pensar politicamente o mundo em que estamos. O risco, em sua sistematicidade, em sua 'auto-referencialidade', penetra nossa relação com a ciência e a reduz a uma avaliação de custo-benefício. Não pensamos 'que tipo de sociedade é essa que polui e desmata, que instrumentaliza nossa relação com a natureza?'; limitamo-nos a procurar identificar se os meios técnicos para solucionar eventuais desastres estão disponíveis. O risco é uma questão técnica e, como tal, de competência da ciência especializada. Por esse motivo mesmo, prospera o número de periódicos e artigos científicos dedicados ao tema (ver, por exemplo, LINKOV et. Al, 2008, TERVONEN et al., 2008).

Mais recentemente, algumas releituras críticas do trabalho de Beck foram produzidas. Uma dessas críticas refere-se ao risco tecnológico ser concebido como um fato consumado, algo já produzido, uma caixa-preta já fechada. “Considerações históricas da ciência e da tecnologia têm frequentemente ignorado as particularidades técnicas da prática científica. De fato, as elaborações internas da ciência foram tradicionalmente fechadas numa “caixa-preta”. O pressuposto é que não pode haver 'má ciência', apenas 'má tecnologia' (KEARNES et al, 2006, p. 25). Em oposição a esse fechamento, Kearnes et al. falam da necessidade de engajar a opinião pública num diálogo antecipado com os cientistas acerca de suas práticas, produtos, dos sentidos éticos, políticos, sociais, econômicos dessas práticas e produtos. Essa seria a forma de evitarmos a delimitação do diálogo entre a ciência e a sociedade a um campo bastante restrito: o risco. E é claro que esse diálogo não pode evitar tal questão premente; sua virtude seria colocá-la num espectro mais amplo de problemas.

Nesta direção, gostaria de indicar, numa mesma direção teórica que tomam Kearnes et al. que nas nanociências e nanotecnologias a noção de risco não se estabilizou, ou seja, ela é objeto de controvérsias no campo de convergência tecnológica a partir do qual novos produtos, terapêutica etc. são criados. Esse é precisamente o caso que da rede brasileira de nanobiotecnologia, como vimos em depoimento de uma cientista no tópico anterior. Acreditamos que, de fato, a teoria do ator-rede (de Latour e Callon poderia dar uma contribuição importante para seguir as tensões que colocam a noção de risco em perspectiva. Seguir os cientistas em suas práticas aqui também também constitui a oportunidade de abrir uma discussão que apresenta implicações éticas, econômicas, políticas e culturais. E alguns desses pontos também nos foram indicados nas entrevistas indicadas ao longo do texto. A medida em que essas tensões vão se tornar políticas, no sentido produtivo da palavra, no entanto, dependerá de um envolvimento da opinião pública na discussão dos rumos que devem tomar a ciência e a tecnologia que não podem ser garantido nos limites estreitos dos laboratórios. Talvez seja ilustrativo lembrar das discussões que cercaram a votação da Lei de Biossegurança brasileira, especialmente no que toca a pesquisa com células tronco-embrionárias. Ali também cientistas, políticos, opinião pública, organizações não-governamentais, Igreja Católica etc. um ponto fundamental das discussões seria a busca de estabilização do estatuto ontológico do daquele tipo de célula. A não estabilização do significado ético, científico, econômico das pesquisas envolvendo embriões com poucos dias de desenvolvimento configurou grande parte da polêmica política em questão, embora o grau de democratização das discussões tenha sido limitado (FERREIRA e AMARAL, 2006 e 2008).

É preciso portanto aproveitar a polêmica gerada em torno dos riscos que cercam as nanotecnologias em geral, e as nanobiotecnologias, em particular, para abrir espaços políticos que se coloquem para além do espaço de legitimação técnica que a própria noção de risco implica. Se essa não estabilização é uma oportunidade política, nossa capacidade de garantir um processo de discussão democrático das relações entre sociedade civil e produção científica e tecnológica não estão garantidas apenas pela existência de tal oportunidade. Tampouco estariam ali garantidas a possibilidade de abrir discussões mais amplas acerca do sentido da tecnociência em nossa sociedade.


Referências


BECK, Ulrich. 1992. Risk Society. Towards a new modernity. London, Sage.


DURÁN, Nelson, Priscyla D. MARCATO e Zaine TEIXEIRA. “Nanotechnologia e Nanobiotecnologia: conceitos básicos. http://www.cienciaviva.org.br /arquivo/cdebate/ 012nano/Nanotecnologia_e_Nanobiotecnologia.pdf. Acessado em 03/06/2009.


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FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2006. “Das Gesetz zur Biologishen Sicherheit in Brasilien: Prähumane, humane und nichthumane Körper als Verhandlungszonen der Moderne”. In Das Moderne Brasilien. Gesellshaft, Politik und Kultur in der Peipherie des Westens. Berlin, Verlag für Sozialwissenschaften.


FERREIRA, Jonatas e Aécio AMARAL. 2008. “A Lei de Biossegurança no Brasil: negociando a modernidade em corpos pré-humanos, humanos e não-humanos”. In (Costa Lima, editor) Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria: Cultura tecnológica, espaço e desenvolvimento. São Paulo, UNESP.


FERREIRA, Jonatas e Rosa PEDRO. 2009. “Biossociabilidade e biopolítica: reconfigurações e controvérsias em torno dos híbridos nanotecnológicos”. Redes. No prelo.


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quinta-feira, 4 de junho de 2009

Psiquiatria, Sujeito e Comunicação


"O que eu sempre precisei, acima de tudo, para a minha própria cura e restabelecimento, foi a convicção de não estar sozinho, de não me ver tão sozinho ― uma suspeita encantadora de algum companheirismo e semelhança de olhar e desejo, um momento de relaxamento na certeza da amizade..." Nietzsche
A liberdade de um sujeito é a sua capacidade de adquirir autonomia na criação e apropriação de objetos socializados (Costa, 1984). A sociabilidade humana é fundamental para pensarmos na existência de sujeitos autônomos e livres. O grau de autonomia, por sua vez, está relacionado à capacidade do sujeito humano de se apropriar das quatros dimensões da realidade: a linguagem, a natureza exterior, a natureza interior e o mundo social (Habermas, 1989).

(ahá, olha aí Habermas! Mesmo assim, minha concepção de sujeito era dada e não resultado de algum processo de subjetivação. Na época, utilizava o aporte habermasiano para criticar três "antipsiquiatras": David Cooper, Laing e Szasz)

A autonomia do sujeito humano, por outro lado, está relacionada com o seu processo de emancipação, e esta, por sua vez, depende do desenvolvimento de sua capacidade de linguagem, de cognição e de interação (Noam Chomsky, 1980). Neste sentido, o desenvolvimento da singularidade individual acontece através da linguagem, que é a mediação universal necessária à cognição e à ação humana, e, em particular, à linguagem comunicativa (Habermas, 1989), voltada ao entendimento. Assim, podemos supor que o desenvolvimento da subjetividade pode ser considerado como imanente à linguagem e à atividade comunicativa.

Portanto, é fácil deduzir que a formação da personalidade do sujeito humano é complexa e, até certo ponto, frágil ― nem sempre coroada de êxito; os fracassos acontecem freqüentemente e, entre várias causas, podemos citar a doença mental. No processo de constituição da personalidade individual é necessária, de um lado, a manutenção de uma identidade do eu singular, de outro, a identidade da intersubjetividade. Desse processo interdependente forma-se o sujeito socializado, com capacidade de aprendizagem e de comunicação. Podemos concluir, então, que as estruturas simbólicas da vida intersubjetiva são reproduzidas pela ação comunicativa (1989) ― forma de interação coordenada pela linguagem.

(estou com fortes dores de cabeça, tentando descobrir o que significa "a identidade da intersubjetividade". Como esse blog é direcionado à graduação, peço aos pequerruchos que utilizem minha confusão mental como uma forma pedagógica de evitar o erro)

A doença mental é um entidade mórbida que interrompe em algum ponto esse processo formador da identidade e da personalidade. Se antes era possível uma comunicação coordenada pela linguagem, voltada para o entendimento, com a doença mental, porém, ocorre uma comunicação distorcida patologicamente. O doente não consegue fazer-se compreender pelo outro; ele se isola e seus laços de sociabilidade são fragmentados, ocorrendo um processo de deterioração na sua identidade, tanto em relação a si mesmo como em relação à sua vida intersubjetiva. As grandes psicoses, desse modo, seriam doenças da comunicação patologicamente afetadas.

(embora interessante, minha concepção de psicose é reducionista, isto é, reduzo tudo à comunicação. De todo modo, um antipsiquiatra perguntaria: a distorção da comunicação é produto de uma patologia ou de um tipo de vida social?)

Acreditamos, assim, que a ação comunicativa é incompatível com o asilo. A forma de organização do asilo seria um sistema anti-comunicativo por excelência. Ao invés de tentar restaurar a competência comunicativa de sujeitos que a perderam, o asilo produz o efeito contrário de diminuir ao máximo a ação comunicativa entre os pacientes. Do ponto de vista político, o asilo nega todos os três direitos fundamentais do internado:

a) o direito à palavra pessoal, em que o internado tem de ser ouvido, porque ele só pode ter condições de sair da internação retomando a sua subjetividade;

b) o direito à diferença, ou seja, o direito de manter dentro da instituição a sua identidade, que lhe é roubada nos mínimos detalhes;

c) o direito à cidadania: o protesto do internado contra a instituição tem que ser escutado.

(em suma, ao contrário da antipsiquiatria, não nego a "doença mental" como tal, mas aceito sua crítica ao asilo. Mas substitui-lo por qual instituição? A resposta está no post seguinte, que é uma crítica à antipsiquiatria -- aliás, nele, faço uma crítica sectária a Foucault)

Referências:

CHOMSKY, Noam -- Reflexões sobre a linguagem -- São Paulo: Cultrix, 1980.
COSTA, Jurandir Freire -- Violência e Psicanálise -- Rio de Janeiro: Graal, 1984
HABERMAS, Jurgen -- Consciência moral e agir comunicativo -- Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989

Artur Perrusi