terça-feira, 30 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica (Final)



A Negatividade na Experiência Hermenêutica e a Abertura para o Outro

A hermenêutica filosófica de Gadamer deve ser entendida não como um método por meio do qual se chega à verdade, mas como uma recuperação de formas de entendimento baseadas na tradição que foram excluídas e/ou reprimidas pela ciência moderna. Essas formas de entendimento, por seu turno, consistem em formas alternativas de "encontro" com a verdade. Neste sentido, o título de sua obra máxima, Verdade e Método, deve ser interpretado como o estabelecimento de uma tensão entre esses dois termos, com um argumento mais específico de que o método científico, longe de revelar a verdade, a obstrui. Isso não significa dizer que Gadamer é contra a ciência. Como ele mesmo afirma em Verdade e Método ao se opor ao ceticismo de Nietzche, "devemos à ciência a libertação de muitos preconceitos e a dissolução de muitas ilusões. A pretensão de verdade da ciência é sempre de novo questionar os pressupostos não-comprovados e deste modo conhecer melhor que antes o real" (Gadamer, 2004: 58). O problema é que o método científico proíbe uma série de questões (sobre a finitude, a historicidade, a culpa, a morte), "declarando-as absurdas" e, sendo assim, sua concepção de verdade é excessivamente restrita. A verdade, para Gadamer, revela-se a partir de um conjunto de experiências nas quais aquelas questões podem ser colocadas: a arte, o entendimento histórico e a linguagem (essas formas de experiência constituem a estrutura básica de Verdade e Método, que é dividida em 3 seções).

Ao contrário da ciência, que considera a verdade como adequação entre o pensamento e os objetos do mundo (a verdade do enunciado, que ocorre no juízo), a arte, a experiência histórica (baseada na singularidade e não na regularidade buscada no método científico) e a linguagem (que é, segundo Heidegger, nossa forma de ser no mundo) representam um encontro com a verdade, mas com a verdade não mais como adequação, mas como desocultação ou desvelamento. Esta noção de verdade (aletheia, ou, numa tradução literal, "manifestação") diz respeito ao "ato de trazer algo da escuridão para a luz" (Lawn, 2006:84) e isso não pode, segundo Gadamer (Ibid: 60), colocar a verdade "exclusivamente na demonstração discursiva", isto é, na verdade do enunciado. Com isso, Gadamer não quer dizer que a linguagem não assuma um papel central no encontro com a verdade, mas que ela tanto revela quanto oculta e que, neste sentido, toda verdade é sempre interpretação. Ela inclui tanto o que está sendo dito quanto o que está pressuposto ou não dito: "todo enunciado tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado" (Ibid. 67). Por essa razão, o entendimento não pode ser reduzido ao conhecimento científico, mas deve ser pensado como um encontro com uma tradição que pressupõe nossa experiência pessoal de estar no mundo.

Como seres humanos, estamos sempre imersos em uma tradição, isto é, em uma espécie de quadro de referência histórica, lingüística e normativamente mediado. De fato, nossa experiência desta tradição antecede qualquer juízo, qualquer reflexão e, por esta razão, a tradição nunca é inteiramente transparente para o intérprete. Toda interpretação está enraizada em um contexto histórico que condiciona e guia a investigação. Interpretamos a partir de preconceitos ou pré-julgamentos que, inicialmente, não estão presentes em um nível consciente, mas que podem ser questionados mediante o confronto com a interpretação de um outro. (Hoffman, 2003).

Assim, contra o método científico, Gadamer desenvolve o seu conceito de experiência histórica e dialética: a experiência hermenêutica. A experiência hermenêutica se opõe à concepção de experiência da ciência, que encara o conhecimento como um conjunto de conceitos e busca conhecer por meio de atos de percepção, isto é, nega a tradição e a historicidade e orienta-se para a generalidade. De acordo com a experiência hermenêutica, o conhecimento não é uma corrente de percepções, mas um evento, um encontro. Sua base é o conceito hegeliano de experiência. Ao criticar Aristóteles afirmando que tudo o que o interessa na experiência é a sua "contribuição à formação dos conceitos", Gadamer (1998: 521) diz que ele

passa por cima do verdadeiro processo da experiência, pois este é essencialmente negativo. Ele não pode ser descrito simplesmente como a formação, sem rupturas, de generalidades típicas. Essa formação ocorre, antes, pelo fato de que as generalizações falsas são constantemente refutadas pela experiência, e coisas tidas por típicas hão de ser destipificadas. [...] [F]alamos de experiência num duplo sentido, de um lado, como as experiências que se integram nas nossas expectativas e as confirmam, de outro, como a experiência que se ‘faz’. Esta, a verdadeira experiência, é sempre negativa.


O que Gadamer, seguindo Hegel, quer dizer quando afirma que a experiência é sempre negativa é que ela sugere que algo não é o que pensávamos que fosse, ela é sempre experiência de negatividade (Ibid.). É ela que nos surpreende, frustrando nossas expectativas, readequando nossos preconceitos ao quebrar as nossas certezas acerca dos padrões normais cotidianos e redefinindo nossos horizontes. Por esta razão, "a verdade é revelação, aquilo que se manifesta no encontro entre o familiar e o desconhecido" (Lawn, 2006: 87).

A questão que se coloca agora é: como é possível este tipo de experiência? Quando é que o familiar se encontra com o desconhecido na tradição? Por meio da abertura para o outro que se dá no diálogo. A tradição, para Gadamer, é linguagem, isto é, ela "fala" como um Tu. O nosso encontro com a tradição deve ser percebido como um encontro entre um Eu e um Tu, não no sentido de subjetividades distintas, mas no sentido de que em um texto ou em um produto humano qualquer, a tradição coloca uma pergunta para o leitor. Todo texto e todo enunciado é uma resposta para alguma pergunta (Gadamer, 2004: 67). Cabe ao intérprete compreender qual a pergunta a que o texto é uma resposta. Na verdade, a relação é dialógica: "uma pergunta é dirigida ao texto e, em um sentido mais profundo, o texto coloca uma pergunta ao intérprete. [...] a estrutura dialética da experiência em geral e da experiência hermenêutica em particular se reflete na estrutura de pergunta e resposta de todo diálogo verdadeiro" (Palmer, 1988: 198).

É justamente este diálogo que possibilita uma fusão de horizontes entre um intérprete e o Outro. Dado que Lawson não especifica como as novas questões para o estabelecimento de contrastes inclui os horizontes, preconceitos etc. dos sujeitos em situação de liminaridade, a formulação de novas questões aparece como uma espécie de caixa-preta. A importância da noção de experiência hermenêutica de Gadamer está na sugestão de que esta caixa-preta só pode ser aberta por meio de uma verdadeira abertura para o Outro.

(por editar)
Cynthia

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