domingo, 30 de agosto de 2009

A digitalização e edição da vida e suas conseqüências culturais (parte 1)


O texto que se segue (em duas partes) é uma comunicação feita em Campina Grande em 2007. Na falta de tempo para escrever coisas novas, vai algo antigo.

Jonatas Ferreira

Venho pesquisando ‘conseqüências culturais da inovação tecnológica nas sociedades contemporâneas’ há alguns anos. Essa questão tem me preocupado, porém de um modo indireto. Em meu trabalho de pesquisa estive bem mais preocupado em entender a emergência de uma espisteme tecnocientífica particular, algo que hoje os cientistas norte-americanos chamam, com humor um tanto infantil, de BANG (a convergência de interesse de estudiosos voltados para o estudo de Bits, Atoms, Neurons, Gene) e os europeus chamam de NBIC (Nanociência, Biotecnologia, Information sciences e cognitive sciences). A convergência da nanociência e biotecnologia, por exemplo, fez surgir um campo específico chamado nanobiotecnologia, ou seja, a física, a química e a biologia se unem para produzir novos medicamentos, novos métodos de diagnóstico, novas possibilidades terapêuticas. Para ser mais explícito, interessa-me entender como as ciências duras estão dialogando entre si, quais são os pressupostos epistemológicos e ontológicos da convergência por elas proposta. Creio que este esforço é importante para que nós, historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos, cientistas políticos possamos não apenas estabelecer um diálogo com estes cientistas, mas para que possamos interferir nas mudanças radicais que a biologia molecular, as nanociências, as ciências da informação e as ciências da cognição estão propiciando.

Acredito que a possibilidade de comunicação entre essas ciências é dado por uma redefinição da matéria, da vida e da própria comunicação levada a termo pela cibernética a partir da década de 1950. Falaremos a esse respeito centrando especial atenção no modo como a cibernética passou a ser uma referência fundamental nas ciências da vida.

Creio haver certo consenso quanto ao fato de 1953 ter sido um ano fundamental no curso de transformações que ora se operam nas ciências da vida. Naquele ano, Watson e Crick propuseram uma fórmula matemática, um modelo, para explicar como a fita de DNA se enrolava de modo a constituir os 23 pares de cromossomos que todos possuímos, ou os 4 pares que constituem a drosófila, os 16 capazes de produzir a minhoca, os 24 responsáveis pelo macaco, os 600 que fazem a samambaia. Dividiram um prêmio Nobel com esta descoberta e começaram uma reviravolta nos estudos relacionados à genética. 1953 foi fundamental para que se começasse a montar este quebra-cabeças gigantesco que é determinar a estrutura e funcionamento do genoma humano. Tudo começou, pois, com um modelo, com simulação matemática; e a conclusão foi: a estrutura do DNA é helicoidal. Que a resolução deste problema tenha sido matemática é algo que devemos ter em mente.

Durante quarenta anos, a biologia molecular produziu uma revolução em slow motion. Uma transformação profunda na forma de compreender e interferir na vida biológica estava em curso, mas pouca, excetuando alguns especialistas, gente prestou atenção. Na década de 90, no entanto, neste momento em que a Internet se popularizava, os holofotes da mídia se dirigiram para esse campo de conhecimento. Falou-se em uma nova revolução tecnológica, uma transformação radical capaz de apequenar o que estava e ainda está ocorrendo no campo das tecnologias de informação e comunicação. De fato, o que há de tão extraordinário com a Internet, com os computadores pessoais, DVD players, ipods, gravadores digitais etc., quando temos diante de nós o que se chamou a possibilidade de acesso ao “livro da vida”?

Costumo prestar atenção às metáforas através das quais se busca facilitar o discurso científico - bem, por dever de ofício, presto atenção ao uso de figuras de linguagem de qualquer modo. Outros tropos, além do tal livro, do alfabeto da vida, foram usados para falar da profunda série de inovações técnicas e científicas que estavam, e ainda estarão por muitos anos, em curso: falou-se na descoberta da tabela periódica dos organismos, da caixa de ferramentas que produz a vida, do santo Gral etc. Nenhuma dessas imagens, entretanto, conseguiu competir com esta de sabor medieval: o livro da vida.

A possibilidade de descobrir a planta baixa, outra metáfora fartamente utilizada, da vida e poder, a partir dela, reconfigurar o seu edifício apresenta um paralelo evidente com o pensamento religioso. As polêmicas que surgiram a partir desta confusão de ‘competências’ foram e continuam sendo de grande importância. Não devemos usurpar uma prerrogativa divina, a de criar a vida, dizia-se. Mas salta aos olhos a capacidade que cientistas-chave desenvolveram de obter dividendos da polêmica. Toda a atenção que a mídia deu à questão, as promessas de conquistar um poder divino, teve um efeito importante na capitalização econômica e política da genômica. Caixa de Pandora ou cornucópia, o poder prometido pela biotecnologia de base molecular justificou o investimento de recursos sem os quais dificilmente se teria avançado tanto quanto avançou em menos de 20 anos. Muitos cientistas aprenderam rapidamente acerca do poder das polêmicas na sociedade da informação. Refiro-me particularmente ao cientista e empresário Craig Venter, fundador, entre outras empresas no campo da bioinformática, da Celera Genomics, notabilizado por empreender um esforço privado de mapeamento do genoma humano. A Celera concorreu diretamente pelas honras, prestígio, recursos do PGH, realizado pela iniciativa pública, num consórcio que associou a expertise de cientistas de mais de uma dezena de países. A empresa de Venter foi um prodígio na área de bioinformática e também de marketing. Beneficiou-se amplamente da especulação produzida em torno do que poderia ou não realizar a biologia molecular no começo da década.

Também não poderemos deixar de falar da enorme importância do mapeamento do genoma humano para a redefinição dos horizontes das ciências da vida na contemporaneidade. Comecemos por falar da soma de recursos mobilizada por este projeto. Falou-se em algo em torno de US$ 3 bilhões para financiar algo cuja utilidade prática sempre esteve longe de ser clara ou imediata, ou seja, para ciência básica. Um investimento desta ordem é, como de fato foi, capaz de orientar as prioridades da ciência em todo o mundo. Se os norte-americanos, japoneses, chineses, franceses, ingleses e alemães estão voltando tantos recursos para o PGH, não podemos ficar para trás – ou muito para trás. Mais uma vez, o que pode e o que não pode a biologia molecular, o que ela deve ou não deve fazer, formaram um contexto propício para justificar perante a opinião pública semelhante investimento. Devemos ou não clonar seres humanos, realizar ou não pesquisas com células-tronco embrionárias, tentar ou não terapia genética com seres humanos, interferir ou não no genoma humano, livrar o ser humano da sua mortalidade ou não? Deixemos claro o seguinte: embora algumas dessas questões pressuponham uma expertise que as ciências da vida ainda estão ainda longe de possuir, a mera formulação de uma possibilidade é aqui importante. As promessas, utopias e distopias são ingredientes fundamentais no processo de legitimação pública de um investimento de US$ 3 bi.

Em sua edição do dia 17 agosto de 2007, o Washington Post publicou matéria com o seguinte título: “Pela Primeira Vez, o FDA Recomenda um Teste Genético”. Tratava-se de uma recomendação para os usuários do anti-coagulante Warfarin. Os testes seriam fundamentais para que os médicos pudessem decidir acerca da dosagem deste medicamento que um paciente deveria tomar, levando-se em conta predisposição genética a enfartes ou fibrilação atrial. Um passo decisivo na direção daquilo que se convencionou chamar medicina personalizada. E esta vem a ser a segunda expectativa gerada pelo conjunto de competências adquiridas pelo PGH, fornecer a base para uma medicina preocupada em antecipar possíveis patologias de base genética. Aqui é sempre bom lembrar as palavras de Francis Collins em entrevista a Charlie Rose (2000): “Não consigo pensar em uma doença que não tenha base genética”. É bom que se diga, a medicina personalidade não significa para a indústria farmacêutica um tratamento de base individual, afinal a escala ainda é um elemento fundamental do lucro destas empresas. A idéia é fornecer um leque menos universal de medicamento.

O mapeamento de qualquer genoma fornece uma base inicial sobre a qual tais procedimentos médicos podem ser concebidos. Afirmamos acima que muito se falou que o genoma é o software que produz a vida. Se a aceitarmos como sendo verdadeira, todavia, não há como não concluir que o que um mapa genético nos fornece é apenas linguagem de máquina – e pouco sabemos acerca das instruções que esta série de zeros e uns, ou de CTGAs que ela codifica. Pouco sabemos sobre quais genes são responsáveis por doenças simples, como eles atuam, como se organizam. Digamos apenas para efeito de ilustração que exceto pelas hemácias, todas as células do organismo humano contém nosso genoma inteiro. Que tipo de instrução faz algumas dessas células produzirem um fio de cabelo e outras nossa retina? Até pouco tempo os cientistas não sabiam como responder esta questão; não acredito que já tenham respondido à charada. O trabalho realmente gigantesco, e que será o projeto da genômica nas décadas por vir, é entender a funcionalidade, a lógica e a sintaxe do ‘programa da vida’.

(continua)

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