quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A dor do outro distante: notas para uma agenda de pesquisa



Gabriel Peters
(Doutorando - Iuperj)

Os processos contemporâneos de globalização levaram a transformações profundas nos modos pelos quais as práticas humanas são coletivamente organizadas e subjetivamente vivenciadas no tempo e no espaço. Fortemente baseadas em tecnologias de transporte de bens e pessoas, bem como de produção e difusão de ideias e informações, as relações sociais atuais não estão mais, como é óbvio, circunscritas a situações de co-presença física, mas envolvem redes hipercomplexas de indivíduos e coletividades espacialmente distantes e culturalmente heterogêneos. De que maneiras esta “compressão espaço-temporal” (Harvey, 2001: 257) da existência em sociedade transformou as noções de responsabilidade moral com base nas quais os atores contemporâneos (especialmente as mulheres e homens “comuns”, se me permitem a frouxidão sociológica do adjetivo) intervêm em seus ambientes societários?

Um exame dos dilemas da responsabilidade moral na era da globalização (novo pedido de desculpas, desta feita pela grandiloquência) passa necessariamente por uma análise sociopsicológica das “implicações morais da distância” (Ginzburg, 2001: 199). Como a proximidade e a distância geográficas afetam o senso de responsabilidade moral exercido pelos agentes? Os efeitos da imediatez e da longinquidade espaciais sobre os “sentimentos morais” dos atores podem ser magnificados ou, ao contrário, contrabalançados pela influência de outras variáveis, tais como um sentido subjetivo de proximidade ou distância social (cultural, étnica, geracional, etc.)? Em nenhum cenário tais questões parecem ser tão dramatizadas quanto naqueles em que os indivíduos são colocados, de algum modo, “diante da dor dos outros”, na expressão de Susan Sontag (2003).

O estudo de nossas reações psicológicas e práticas ao sofrimento de outras pessoas atravessa a história da filosofia moral – como ilustram os escritos de Aristóteles sobre a compaixão ou a teoria da simpatia de Adam Smith. Ainda que esta venerável história inclua, desde o seu o início, algumas discussões reveladoras acerca da significação moral da proximidade e da distância, o tema só veio à tona com força recentemente (e compreensivelmente). Alguns dos primeiros a discuti-lo foram o filósofo Hans Jonas em O princípio responsabilidade (2006) e o (famosíssimo) sociólogo Zygmunt Bauman em Modernidade e Holocausto (1998), ambos avançando a tese da existência de um hiato, na modernidade, entre a imensa ampliação do alcance espaço-temporal das ações humanas, de um lado, e a persistência de uma sensibilidade moral ainda largamente focada nos contextos mais imediatos da proximidade e da co-presença física, de outro. As conclusões de ambos apontavam para o fato de que a maior parte das orientações éticas legadas por nosso passado estavam fundadas sobre um modelo de conduta com efeitos restritos em termos de tempo, espaço e ambiente sociocultural, sendo, assim, insuficientes ante a enorme expansão da influência causal das intervenções humanas sobre os mundos natural e social na era da ação à distância tecnologicamente mediada.

Um dos problemas que avultam a partir do momento em que se pensa a pertinência sociológica e ético-política das reflexões de Bauman e Jonas para o mundo contemporâneo está relacionado ao extraordinário incremento hodierno na produção e difusão de registros visuais e textuais do sofrimento, em particular através da televisão e da Internet. O que muda com a avalanche de notícias internacionais circulando na midiápolis global, as quais parecem oferecer, como nunca antes, a possibilidade de que seus consumidores se percebam como parte de um “único mundo”? A difusão ainda mais recente de tecnologias de gravação e transmissão de conteúdo simbólico (imagens em particular) para além dos órgãos convencionais de comunicação também torna possível uma multiplicação correlata de documentos icônicos e narrativos de acontecimentos de importância política ou humanitária os quais, de outro modo, permaneceriam invisíveis, seja em virtude do desinteresse da mídia, seja em virtude da existência de mecanismos tradicionais de censura (veja-se, por exemplo, as imagens documentais, feitas in loco e transmitidas por meios de comunicação mundo afora, dos protestos de monges budistas em Mianmar [2007] ou de oposicionistas no Irã, após a reeleição de Ahmadinejad [2009]). Outrora, a distância espacial significava necessariamente invisibilidade, ausência do campo de percepção. Mas o que ocorre numa situação em que, como diz Jean-Luc Godard, torna-se possível assistir ao que não se vê?


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