sábado, 3 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 2)

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Jonatas Ferreira

Em Do Silêncio, David le Breton discorre acerca do imperativo da comunicação nas sociedades contemporâneas, da impossibilidade de vivenciar o silêncio que este imperativo acarreta. Na sociedade da informação a única forma de obtermos silêncio parece ser, ele argumenta, a avaria técnica: o computador não funciona, a conexão com a Internet caiu etc. A tagarelice que caracteriza nossos envolvimentos cotidianos, todavia, seria apenas uma evidência de que já não conseguimos verdadeiramente dizer mais nada de significativo. Sobre isso, como sabemos, também falou o Heidegger de Linguagem Técnica e Linguagem de Tradição. Se pudéssemos calar por um momento talvez viéssemos a constatar precisamente isso: numa cultura em que a linguagem foi finalmente achatada pelos imperativos técnicos da ciência da informação e por um capitalismo que só pode ter uma relação predadora com o mundo, parece que nada temos a dizer.

Poderíamos propor, de um modo algo paradoxal, que a impossibilidade de silêncio neste contexto só é possível mediante a garantia de certos silenciamentos, pelo emudecimento de tudo aquilo que venha a comprometer a plena circulação de signos, a aceleração e o consumo. O silenciamento sobre o sofrimento é uma desses fenômenos técnicos sem o qual a plenitude do consumo, a aceleração constante não pode ser alcançada. É a partir dessa constatação que podemos compreender a inconveniência da depressão, da melancolia no mundo contemporâneo e, de resto, as estatísticas de consumo de medicamentos psicoativos expostas no tópico anterior. Como pondera Maria Rita Kehl em O tempo e o cão, o indivíduo acometido de depressão desacelera, engarrafa o trânsito que deveria fluir de modo célere. Em sua letargia, sua suspeita acerca dos sentidos culturais consolidados em uma linguagem demasiadamente livre de ambiguidades, esse indivíduo demanda um silêncio que, mediante terapias de base química, deve ser silenciado. É preciso calar a letargia desse sofrimento,  pois o deprimido é aquele que diz como Kierkegaard nos Diapsalmata: “Summa summarum: não me apetece nada de nada”.

Neste ensaio, portanto, pretendo, no seio do discurso psiquiátrico, explorar a produção de silêncios  sobre o sofrimento psíquico, ou, mais propriamente, poderia dizer que me debruçarei sobre os silenciamentos produzidos em nome da dizibilidade de tal discurso. Mais especificamente, me aterei em considerar aqueles discursos que legitimam a proliferação do consumo de substâncias psicoativas na contemporaneidade. Como ficará claro na continuidade de nossa exposição, não se trata aqui de uma cruzada contra a psiquiatria, mas da investigação desse silenciamento que, de resto, não é estranho à psicanálise. Sobre isso falaremos.

Estou perfeitamente ciente que, do ponto de vista teórico, não apresentarei aqui uma abordagem nova. Há uma vasta literatura estruturalista e pós-estruturalista que enfatiza precisamente um jogo de diferenças em que o dizível se torna possível mediante a supressão, a repressão daquilo que deve ser emudecido. Ora, Foucault, por exemplo, e a propósito, já nos falava na História da Loucura na era Clássica, e em pequenos ensaios do começo da década de 1960, da exclusão da loucura como experiência, processo que é realizado em nome da racionalidade do discurso psiquiátrico, ou seja, em nome da possibilidade de falar a verdade da loucura como contraluz de uma sociedade do trabalho e da produtividade. No Prefácio àquele livro, Michel Foucault esclarece da seguinte forma sua intenção mais ampla: “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, só pode estabelecer-se sobre um tal silêncio. Não quis fazer a história dessa linguagem; antes a arqueologia desse silêncio” (Foucault, 2002, p. 153). Procurando expor a economia que preside à racionalidade da psiquiatria, que historicamente interrompe uma comunicação entre razão e desrazão, ele abre espaço para criticar, alguns anos depois do lançamento da História da Loucura, a própria psicanálise por seu comprometimento na produção de um discurso normalizador da psiquê. A psiquiatria, como a psicanálise, subjetivam mediante a eliminação da experiência excessiva da loucura, ou da neurose. Em “A loucura, a ausência de obra” lemos o seguinte comentário: “Somos nós hoje que nos surpreendemos de ver comunicarem-se duas linguagens (a da loucura e a da literatura), cuja incompatibilidade foi construída por nossa história. A partir do século XVII, a loucura e a doença mental ocuparam o mesmo espaço no campo das linguagens excluídas (Grosso modo, o do insensato)” (2002, p. 219). É possível comparar o jogo diferencial que prendem o dizível e o silenciado, neste caso, o emudecimento da loucura é condição para o surgimento de uma sociedade da razão e do trabalho disciplinado, com várias outras referências estruturalistas e pós-estruturalistas. Desde Saussure, passando por Lévi-Strauss, a linguagem significa mediante aquilo que ela exclui, converte em tabu, em não-dito, em alteridade.

O jogo diferencial sobre os quais os significados são constituídos é uma marca da contribuição estruturalista e pós-estruturalista e se aqui elencamos mais um exemplo desta lógica é por acreditarmos que ele traz à tona, à discussão, o caráter intransponível da liminalidade como espaço ético, político em que os silenciamentos podem por alguns instantes fulgurar. De fato, quando nos reportamos à obra de Derrida a tematização do silêncio como âmbito filosófico, ético e político se oferece como recusa a qualquer transcendência, a uma perspectiva privilegiada em que a estrutura da linguagem e do dizível, com seus emudecimentos, possam aparecer em plena transparência. Desde sua célebre polêmica com Foucault sobre a loucura, encontramos em Jacques Derrida a recusa em tentar trazer à luz a alteridade em seu caráter absoluto, gesto que, de resto, está relacionado à sua recusa a uma metafísica da presença, a uma nostalgia por um momento mágico de plenitude. O desejo foucaultiano de realizar uma “arqueologia do silêncio”, de deixar que a loucura fale por si própria, é uma tarefa que se autocontradiz. Roy Boyne (1990, p. 56) descreve da seguinte forma parte da crítica derridiana à História da Loucura: “Derrida afirma que o desejo de Foucault de que a loucura seja o ‘objeto [subject] de seu livro em cada sentido da palavra’ é o aspecto mais louco do trabalho. Para Derrida, há uma armadilha simples, que é pensar que se possa penetrar a loucura pelo uso do mesmo instrumento que a baniu previamente, esse instrumento sendo a linguagem da razão”. O filósofo do traço se recusa, assim, a abraçar qualquer projeto que signifique ‘deixar a loucura falar por si’. Seu espaço filosófico é antes o da liminalidade, espaço no qual a lógica, a razão parece trepidar, oscilar, em que a figura do outro aparece de modo radical, mas onde a tradição ocidental e suas narrativas não podem simplesmente ser abandonadas. Se, por exemplo, a absoluta alteridade do animal o comove e convoca, como em O Animal que logo sou, interessa-lhe se debruçar sobre o indizível que vem forjando historicamente as relações entre humanismo e o espectro do animal, a impossibilidade dessa abertura humana para o totalmente outro, e não um projeto de falar em nome daquela alteridade.

As dificuldades desse gesto filosófico evidenciam-se quando considerarmos, com Judith Butler, a possibilidade de enunciação de uma subjetividade feminina. Como é possível às mulheres falarem sua própria voz e identidade, sem recorrer às categorias de representação, subjetivação, universalização mediante as quais o seu silêncio e condição de ‘faltantes’ foram estruturados? Se as mulheres não se contentarem com uma unidade negativa, uma unidade sob a condição de silenciadas, o que podem enunciar enquanto mulheres? “A crítica feminista tem de explorar as afirmações totalizantes da economia significante masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em relação aos gestos totalizantes do feminismo. O esforço de identificar o inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer um conjunto diferente de termos” (2003, p. 33-34). Uma vez que determinadas narrativas, dizibilidades, são produzidas, parece difícil quebrar o silêncio sobre as quais elas se estruturam sem recorrer a mais opressão. E, no entanto, nossa tarefa se coloca precisamente na encruzilhada dessa dificuldade, ou seja, dispõe-se como busca a recuparar o sentido do silenciamento do sofrimento precisamente quando uma cultura que impõe a sua medicalização afirma a superfluidade de tal gesto.

Voltemos a Derrida. Como todos sabemos, ele é o filósofo das aporias, ou seja, daquilo que em sua impossibilidade nos convoca e que, como tal, nos oferece a chance de reflexão sobre o que julgamos possível. Em Derrida, o silêncio é sempre o silêncio do já dito e que, enquanto tal, abre-nos o campo de dizibilidades ‘reprimidas’. Lembremo-nos do seu Mal de Arquivo, da própria memória como estrutura arcôntica, isto é, como estrutura de poder que compreende aquilo que devemos recordar, por certo, mas também aquilo que devemos esquecer e a dinâmica hipomnética em que mantemos o esquecido como tal. Assim é que, por exemplo, na repetição compulsiva o neurótico lembra-se (de modo hipomnético e recorrente) daquilo que não deve ser plenamente trazido à lembrança. Como estrutura de arquivamento, pois, nossa memória precisa não apenas lembrar, mas lembrar aquilo que devemos esquecer, reprimir, deixar de fora. E assim, com respeito a psicanálise freudiana, Derrida afirma que ali está sempre potencialmente em jogo os princípios de consignação, de arquivamento que formam a lei, que estruturam a própria linguagem de modo a torná-la sempre objeto de interrogação. E aqui temos mais uma ambiguidade fundamental. A autoridade paterna, por exemplo, surgiria no desenvolvimento psíquico como algo que em si deve ser pensado como inquestionável, quase absoluto, mas, ao mesmo tempo, como centro de toda questão. Sempre que o gesto crítico é possível, os segredos e heterogeneidades que o arquivamento não pode deixar de trazer constantemente à tona estarão também em questão. Quando esta dinâmica entre o que deve ser esquecido e o que deve ser lembrado dá lugar a uma naturalização das forças de arquivamento, uma força de destruição poderosa, uma força de auto-destruição, instala-se no coração do arquivo. Toda estrutura arcôntica é, sobre este ponto de vista, constituído também por uma arquiviolítica, uma pulsão de morte, de esquecimento, de destruição que ameaça o próprio poder arquívico. E esta é apenas outra forma de considerar aqui a ambiguidade fundamental entre dizibilidade e o que deve ser silenciado, mas nunca pode ser totalmente esquecido, como os dois lados da própria força de estruturação da memória, do discurso. A dizibilidade depende de um constante ato de silenciamento daquilo que deve ficar fora de nossos arquivos culturais. Quando esse ato de repetição compulsiva, de silenciamento, não pode mais ser produzido, a própria força do arquivo fica comprometida.

É como se Freud não conseguisse mais resistir à perversidade irredutível desta pulsão que ele nomeia aqui pulsão de morte ou pulsão de agressão ou pulsão de destruição, como se estas três palavras fossem, nesse caso, sinônimas. Mais tarde, Freud dirá que esta pulsão com três nomes é muda (stumm). Ela trabalha, mas, uma vez que trabalha em silêncio, não deixa nunca nenhum arquivo que lhe seja próprio (Derrida, 2001, p. 21)

Pergunto-me, nesse ponto, se não existiria nas sociedades contemporâneas essa mesma força arquiviolítica, essa mesma pulsão de morte, no tratamento do sofrimento? Quando o sofrimento deixa de ser objeto de tratamento simbólico e passa a ser tratado por uma terapêutica química que, em princípio, postula a não ambiguidade das narrativas discursivas, não estaríamos, do ponto de vista desta narrativa moderna que é a psicanálise, diante de uma pulsão de destruição? Em que medida estaríamos dispostos a fazer ecoar precisamente aquilo que contorna o terreno do dizível em relação ao tema que aqui propomos discutir, qual seja, o sofrimento psíquico na contemporaneidade é o que nos aproxima do referencial pós-estruturalista e em particular de Jacques Derrida. Um pressuposto básico de nossa exploração aqui será o de que as sociedades contemporâneas operam de modo a produzir um silenciamento ou a privatização do sofrimento, sua transformação em dor intransitiva e intransitável. As dinâmicas sociais que favorecem o consumo, dos gozos rápidos, do pudor diante da própria finitude (ver Ferreira e Silva, 2011) não podem ser capazes de oferecer um sentido, uma teodicéia ou antropodicéia, ao sofrimento, à melancolia ou depressão humanos.


3 comentários:

Le Cazzo disse...

Car@s,

Corrigi alguns barbarismos desse trecho do texto. Com sorte não ficaram muitos. Com sorte esse comentário não tem novos.

Anônimo disse...

Professor, seu argumento é bastante interessante e mesmo envolvente. Mas parto de outras premissas, e nas minhas pesquisas e observações chego a conclusões bem distintas.
Apenas para lançar um comentário e uma provocação: não achas que o discurso e o campo psiquiátrico é menos monolítico do que a forma como o delimitaste nos dois posts (ou eu entendi errado)?
Abraço!
Josias.

Le Cazzo disse...

Caro Josilhas,

Você se surpreenderá com a continuação desse post. Não apenas unifico o campo psiquiátrico, como, de resto vejo proximidade perturbadora entre este e a psicanálise. Mas estou disposto a rever minha hipótese quando começar a parte empírica de minha pesquisa. No momento, essa hipótese tem me dado chão firme de onde partir. E como isso tudo não é gratuito, você terá em breve outra ocasião para ver o que estou mirando.

Abraço.

Jonatas