segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Carta a Luciano Oliveira - Parte I

Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão
Caro Luciano:

Pude ler, também com atenção e prazer, as suas “Notas de Leitura” sobre o meu livro O Fetichismo do Conceito. O seu texto foi uma grata surpresa. Embora discordando de suas discordâncias por razões que apresentarei a seguir, gostei bastante. Você é o tipo de crítico que todo autor pediu a Deus: inteligente, correto, sensato, bem informado e, sobretudo, espirituoso. Motivado pela indiscutível qualidade de seus comentários, gostaria de fazer a crítica da crítica, como diria o jovem Marx.

  Seguindo a ordem de exposição encontrada em suas notas de leitura, começo pela hipótese acerca das minhas supostas razões para tratar com implacabilidade e irreverência consagrados teóricos sociais. Uma amiga sua sugeriu, ao lhe enviar a matéria publicada na “Folha de São Paulo” em junho passado, que poderia tratar-se de “mais um desses tipos em busca de sucesso por meio de provocações exageradas”. Mesmo com a ressalva de que O Fetichismo do Conceito está longe de ser apenas uma “provocação exagerada”, você afirma que “tais diatribes dão algum suporte à suspeita de minha amiga”. Não é a primeira vez, nem será provavelmente a última, que deparo com essa imputação de motivações, que não é, convenhamos, nem um pouco lisonjeira. Na realidade, temos aqui uma conclusão apressada e dedutivista, não apoiada em informações factuais que, nesse caso, seriam realmente indispensáveis: um bom conhecimento  da personalidade do autor, dos seus valores, crenças e história de vida. Sem isso, a sugestão de sua amiga de que o meu tom polêmico resulta da busca a todo custo de sucesso corre o sério risco de ser tão leviana quanto injusta. A dureza no tratamento dispensado a autores como Habermas e Bourdieu, para ficar apenas com os mencionados por você, expressa tão somente conclusões epistemológicas, amadurecidas nos últimos vinte anos de leituras e reflexões, formuladas num estilo que é o meu “desde criancinha” (como reclamava mamãe). Se você puder examinar um dia os meus exemplares das obras de Habermas, por exemplo, lidas mais atentamente nos anos noventa, verá que estão cobertos de iradas anotações, perto das quais o que você leu em O Fetichismo do Conceito parecerá suave e ameno. Confesso que realmente perdia a paciência ao atravessar toneladas de engenhosas argumentações para sustentar o insustentável, a saber, que os caminhos da verdade e do bem não apenas convergem como podem ser encontrados em mais um sistema filosófico particular produzido na Alemanha. De Habermas podemos afirmar a mesmíssima coisa que Nietzsche disse um dia da metafísica alemã mais antiga: do ponto de vista cognitivo, pouco vale, pois não é  ciência genuína, nem muito menos verdadeira sabedoria. Eu poderia passar dias, acredite, justificando circunstanciadamente essa dura conclusão.  A extrema irritação com a leitura passava toda para o papel.
  As tentativas de Bourdieu objetivando convencer os seus leitores, em sua maioria sociólogos não familiarizados com a moderna reflexão epistemológica, do status impecavelmente científico de sua própria obra, não soavam menos irritantes. Se operarmos com um conceito estritamente empírico de ciência − e não honorífico ou elaborado exclusivamente para permitir a inclusão de formas de conhecimento que só partilham com as ciências, às vezes, o esoterismo vocabular, assegurando-lhes assim prestígio intelectual e honras sociais −, seremos levados à conclusão de que teorias científicas, ao contrário dos sistemas filosóficos do passado, não constituem um ponto de vista pessoal de um autor e seus crédulos discípulos reunidos em uma escola, mas sim um saber tácita e consensualmente  acolhido no âmbito de uma disciplina, funcionando ali como base teórica indispensável, inescapável, em toda uma área de investigações empíricas. Alguns físicos franceses do século XVIII que detestavam Newton ainda insistiam em atacá-lo na defesa de Descartes, mas isso acabou há muito tempo: nos manuais franceses de mecânica, é Newton, e não Descartes, que é hoje obrigatoriamente ensinado.O estudo das teorias de Newton, devidamente incorporadas em manuais, não é de fato opcional para pesquisadores de todo um conjunto de fenômenos naturais.  Nesse caso, o aprendizado de um conhecimento do geral especializado, distinto e irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum, acolhido sem maiores discussões filosóficas pelos investigadores de uma área de pesquisa, soa de fato obrigatório.Ora, nada disso pode ser dito da teoria sociológica de Bourdieu, pois em todas as áreas da sociologia empírica podemos encontrar pesquisas sérias que não recorrem, nem precisam recorrer, a um único conceito “técnico” de Bourdieu. Seria fácil prová-lo. Na realidade, o melhor Bourdieu, o Bourdieu que pode ser utilizado com proveito na pesquisa empírica, é sempre redutível ao conhecimento social de senso comum inteligente e bem informado. Dito de outra maneira, os seus melhores conceitos e generalizações (como, de resto, os de todos os outros teóricos sociais) podem ser perfeitamente formulados, com ganhos de clareza e testabilidade empírica, na linguagem corrente. No meu livro, como você há de lembrar, mostrei, com exemplos concretos, que os termos do jargão sociológico mais amplamente aceitos, aqueles dotados de indiscutível conteúdo empírico, são exatamente os termos não apenas tomados de empréstimo à linguagem corrente, mas que também preservaram integralmente, quando incorporados ao jargão em questão, os seus significados usuais, de senso comum. Isso significa dizer que, nesses casos, o conteúdo empírico do vocabulário sociológico é assegurado, na realidade, pela ausência de qualquer afastamento em relação aos significados de senso comum dos termos empregados. A famosa ruptura epistemológica soa aqui  simplesmente imaginária. Isso explica por que os conceitos e generalizações do melhor Bourdieu são opcionais, e não obrigatórios, na investigação social empiricamente orientada. O seu uso, como o possível uso de Shakespeare ou Dostoiévski numa análise de uma determinada manifestação das paixões humanas, embora em certos casos valioso, pouco ou nada tem a ver com o uso de teorias nas investigações científicas. Sendo assim, as afetadas e infundadas reivindicações de cientificidade em Bourdieu, que irão levá-lo a tratar com arrogância e desrespeito a obra de autores avessos ao cientificismo como Gadamer,  soavam para mim, de fato, irritantes. Essa irritação também foi toda para o papel. Contudo, as dificuldades de Bourdieu não se limitam a um despropositado  cientificismo: em leituras mais recentes, pude reunir mais de mil páginas de notas de leitura nas quais sublinho, sempre com exemplos concretos, sem analogismos carentes de controles empíricos e formais, nem generalizações vazias e retóricas, as dificuldades empíricas desse autor, em particular as que resultam do uso do conceito de campo em sociologia da ciência. Um dia, prometo apresentá-las detalhadamente.

  Tudo bem, a discordância intelectual poderia ser expressa de outra forma, e minha reação psicológica revela um temperamento colérico, difícil, intratável mesmo. Admito isso sem problemas, não gosto de brigar com os fatos. Mas não vamos confundir coisas sobre as quais a vontade, infelizmente, pouco ou nada pode, com uma estratégia urdida, calculada, visando renome. Além disso, eu nada, absolutamente nada tenho a ver com a algo escandalosa matéria da “Folha de São Paulo” (a segunda, pois a do Rafael Carrielo, publicada em maio de 2011, é bastante sóbria: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2703201104.htm ). Na realidade, fiquei sabendo 48 horas antes, e não tive conhecimento prévio algum dos conteúdos. Não se tratou de uma entrevista. O Renan Springer disse certa vez, com toda a razão, que, em termos de apresentação fiel das principais conclusões do livro, essa matéria não foi muito feliz, sugerindo que se tratava basicamente de uma crítica violenta das obras de famosos teóricos sociais. Como todos os que leram o livro sabem, nada mais longe da verdade.

Por outro lado, correndo o risco de parecer odiosamente elitista e personalizar demais esta resposta, deixe-me confessar o seguinte: para mim, o sucesso que de fato importa, o único pelo qual despenderia esforços, vem tão somente da aprovação espontânea e desinteressada dos melhores, de homens e mulheres de espírito, e não do aplauso de muitos. Eu levo a sério as observações de Karl Kraus e Fernando Pessoa citadas no meu livro... O reconhecimento que busquei não veio com as matérias publicadas na “Folha de São Paulo”, mas sim com a reação de pessoas como Evaldo Cabral, que ligou do Rio, 72 horas depois de ter recebido pelo correio uma cópia da primeira parte do meu livro, para dizer que já estava fazendo a segunda leitura do texto. Esse tipo de reconhecimento eu jamais conquistaria, é supérfluo dizê-lo, com “provocações exageradas”. Mas deixemos isso de lado. Vamos agora aos pontos mais importantes de seus comentários críticos.

Você associa, interpretando passagens do capítulo 1 do meu livro, as investigações que denomino de conteudísticas e ateóricas, apenas a pinturas de paisagens e acaba, por conta disso, fazendo a seguinte censura: como pintar paisagens seria, sobretudo, vocação dos historiadores, e não dos sociólogos, ao criticar as pesquisas sociais teoricamente orientadas por não serem conteudísticas, eu estaria, em verdade, censurando os sociólogos por não se ocuparem com uma atividade típica dos historiadores, tomando assim a história como padrão para avaliar as ciências sociais. Você vê nisso um verdadeiro sofisma. Nas suas palavras: “o sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o que seria vocação de um dos campos, a história, para julgar os feitos de um outro, o das ciências sociais”. Se você tivesse razão nessa censura, não sobraria muita coisa do meu livro. Este acabaria reduzido, na hipótese mais piedosa, à lembrança, completamente dispensável para todo sociólogo mais sensato, de que o conhecimento teórico, numa disciplina empírica, não constitui um fim em si, funcionando antes como uma ferramenta intelectual a serviço de investigações empiricamente orientadas. Como não escrevi O Fetichismo do Conceito para repetir coisas sensatas, mas banais, essa redução seria fim de carreira: caberia esquecer a epistemologia, fazer outras coisas na vida. Felizmente, não corro de fato esse risco. E isso pelas seguintes razões:

1)      As descrições compreensivas das características mais ou menos notáveis de mundos sociais particulares, descrições nas quais essas características são reunidas num quadro coerente e significativo, cuja riqueza descritiva dependerá da erudição e do nível de generalização em que se coloca o seu autor, ou seja, as mencionadas pinturas de paisagens, não constituem vocação exclusiva da história, podendo também ser encontradas nas magníficas etnografias da antropologia clássica de inspiração funcionalista. Na realidade, toda e qualquer descrição compreensiva de ambientes sociais particulares que não seja parte de explicações causais pode ser identificada como uma pintura desses ambientes. Nesse sentido, é perfeitamente possível pintar paisagens sociais utilizando conceitos sociológicos, fazendo sociologia. Assim, por exemplo, podemos retratar a sociedade moderna, enquanto mundo social particular, em termos mais gerais e abstratos. Não é outra coisa o que faz Marx ao sublinhar os aspectos que, em sua opinião, vão distingui-la, tais como a generalização da economia de mercado, a emergência da democracia representativa, o culto do indivíduo independente e isolado de seus semelhantes, o ritmo febril das mudanças sociais, que leva as coisas mais sólidas a se esfumarem no ar. Um sociólogo leitor de Weber poderia incluir nessa paisagem, com ganhos de riqueza descritiva, o desencantamento do mundo e a dominação legal. Por outro lado, e mais importante ainda, cabe lembrar que não é a pintura de paisagens que irá distinguir as investigações sociais conteudísticas e ateóricas das teoricamente orientadas. Não se trata disso. A distinção é feita aqui levando-se em conta apenas a base teórica empregada (nas teoricamente orientadas teríamos de buscá-la apenas nos conceitos e enunciados gerais estabelecidos no âmbito da moderna teoria social, uma exigência ausente nas conteudísticas) e, sobretudo, o alcance atribuído a tal base na investigação do socialmente real em toda a sua complexidade e concretude;

2)      Na discussão acerca dos limites do conhecimento teórico nas investigações sociais, assunto central do livro, o que realmente importa é a análise do papel desse conhecimento nas explicações causais, e não na descrição de ambientes sociais particulares, na pintura de paisagens. Esse ponto foi claramente formulado no capítulo 1. Com efeito, ali podemos ler: “São as explicações causais, e não as caracterizações de ambientes ou acontecimentos sociais, que vão evidenciar, da forma mais límpida, mais conclusiva, os limites do uso de generalizações na investigação social, como veremos a seguir” (p. 21). Como você pode ver, eu não critico os sociólogos por não pintarem paisagens como fariam os historiadores. Na realidade, pintar ou não paisagens não tem maior importância na análise das dificuldades do interpretativismo teoricista desenvolvida em meu livro;

3)      O que será colocado em questão é a possibilidade de uma nítida distinção entre a causalidade sociológica e a causalidade histórica. O argumento clássico em favor dessa distinção reza o seguinte: o sociólogo lidaria com causações estruturais, lidaria com fatores cujos poderes causais são uniformes e duráveis, e não apenas contextuais, historicamente datados, e tais fatores permaneceriam inacessíveis aos não iniciados na moderna teoria social. Para acessá-los seria imprescindível o recurso a uma base teórica distinta e irredutível às melhores generalizações do chamado conhecimento social de senso comum. Dito de outra maneira, a causação sociológica, enquanto causação estrutural, demandaria explicações teoricamente orientadas. Muito diferente seria o caso da história. Ocupados com uma causalidade datada, circunstancial, mais visível, menos profunda, envolvendo apenas constelações singulares de fatores contextuais, os historiadores já não precisariam, como os sociólogos, recorrer a teorias sociológicas gerais. Bastariam aqui as explicações causais intencionais, ou seja, os esclarecimentos acerca dos interesses, valores, crenças, disposições e objetivos concretos que moveram indivíduos situados em cenários sociais particulares. Nesse argumento em favor de uma clara distinção entre causalidade sociológica e causalidade histórica, temos, é desnecessário dizê-lo, uma espécie de estratificação epistemológica na qual investigadores sociais teoricamente orientados ocupariam uma posição privilegiada, estando, por assim dizer, no topo da pirâmide. Este, sem dúvida, o objetivo explicitamente perseguido por autores como Marx, Durkheim e Mannheim ao buscarem ultrapassar as explicações intencionais oferecidas pelos historiadores, constituindo assim uma genuína ciência empírica da vida social. Marx, lembremos, sonhava com uma história teórica, e Mannheim fala explicitamente numa “iluminação teórica” da história. Não há nada de errado, obviamente, com esse projeto teórico, muito pelo contrário. Impossível não admirá-lo na sua audácia e grandeza intelectuais. Contudo, cabe avaliá-lo pelos seus efetivos resultados, e estes, como tentei mostrar no meu livro de forma circunstanciada, com exemplos concretos, de fato desapontaram. Qual a base dessa conclusão pessimista? Resumindo coisas demais, simplificando demais, eis a resposta: os conceitos, não importa o nível de abstração e generalidade em que se situem, aparecem sempre, tanto nas descrições como nas explicações e predições de um dado evento ou estado de coisas, inseridos em sentenças, que podem ser gerais ou particulares. Não podemos, portanto, estabelecer relações de dependência uniformes e invariáveis entre fenômenos sociais tipificados utilizando apenas termos ou conceitos. Para isso é necessário também dispor de sentenças gerais, de validade trans-histórica, cujas condições de aplicação já tenham sido clara e consensualmente fixadas pela comunidade científica, nas quais se assegure que determinados fenômenos sociais resultam, com regularidade, de condições sociais tipificadas claramente estipuladas. Se a sociologia dispusesse de um corpo de sentenças gerais desse tipo, os sociólogos poderiam dispensar as explicações intencionais da ação social, reduzindo a intencionalidade humana a uma simples “variável dependente” a ser deduzida, também ela, de um conjunto tipificado de condições estruturais. Nesse caso, teríamos de fato uma causação estrutural teoricamente “iluminada”, acessível apenas aos sociólogos, e a distinção entre causalidade sociológica e causalidade histórica estaria justificada acima da dúvida sensata. Infelizmente, semelhante feito teórico ainda não foi realizado por ninguém, apesar de ter sido inúmeras vezes tentado. Descrições das condições mais gerais e duráveis da ação intencional, individual ou coletiva, ou dos efeitos não premeditados nem desejados dessas ações, não constituem, por razões detalhadas em O Fetichismo do Conceito, nada parecido. Quanto aos chamados “mecanismos”, vistos por alguns teóricos sociais mais modestos e sensatos como uma espécie de terceira via capaz de superar a dicotomia entre narrativa e causação nomológica, além das dificuldades apontadas no livro, cabe lembrar que, também nesse caso, ninguém convenceu ninguém e as igrejinhas teóricas se multiplicaram numa, como diria Montaigne, “infinita e perpétua altercação de ideias e de argumentos”. Não seria difícil prová-lo.

4)      A efetiva existência de padrões societários, ou seja, de formas de agir, pensar e sentir coletivas mais duráveis, mais permanentes, capazes de reproduzir-se no transcurso de um tempo que já não medimos à escala da vida de um indivíduo( os chamados “fatos sociais,”cuja realidade foi corretamente sublinhada por Durkheim), não basta para  autorizar uma nítida distinção entre explicação sociológica teoricamente orientada e explicação histórica: como procuro mostrar em O fetichismo do conceito com vários exemplos, é perfeitamente possível, sim, proceder ao registro empírico desses padrões societários, explicá-los em termos causais e utilizá-los na explicação da ação individual e coletiva, sem o recurso a qualquer conhecimento teórico especializado relativo às sociedades humanas, concebidas na totalidade de seus aspectos. Em outras palavras, a presença de padrões na vida social não demanda obrigatoriamente, como é o caso dos padrões do mundo físico, um conhecimento do geral distinto e irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum. Sendo assim, podemos falar numa sociologia conteudística, não dependente das teorias particulares do autor A ou B, cujas explicações já não diferem qualitativamente das explicações encontradas na boa historiografia. No meu livro, a obra de Tocqueville aparece como um dos mais convincentes exemplos dessa possibilidade.


  Após citar com aprovação uma passagem na qual sublinho a utilidade de conceitos sociológicos técnicos, formulados por teóricos particulares na visibilização de importantes fenômenos sociais, você pergunta: mas tais conceitos não seriam as novas ferramentas intelectuais que permitem a superação do inventário exaustivo das constelações de variáveis contextuais? Respondo: Infelizmente, não. Eis minhas razões:

1)      Visibilizar um dado fenômeno ao nomeá-lo, ao etiquetá-lo, ao inseri-lo numa determinada classificação ou tipologia, não é oferecer uma explicação causal teoricamente orientada desse fenômeno, não é, a rigor, oferecer explicação causal nenhuma: a visibilização da existência de algo não se confunde, claro, com a explicação de suas origens. Esta, quando possível, virá depois, numa segunda etapa. Temos aqui duas coisas diferentes, cabe distingui-las. Ora, como os inventários exaustivos de variáveis contextuais causalmente relevantes se tornam indispensáveis devido à inexistência de genuínas explicações causais teoricamente orientadas, não podemos superar tais inventários apontando apenas para a utilidade do vocabulário sociológico, das novas ferramentas intelectuais, na visibilização dos fenômenos sociais;

2)      A passagem citada por você é da primeira parte do livro, escrita em 2006, época em que eu ainda alimentava um relativo otimismo quanto a possíveis utilidades de jargões sociológicos. Com o passar dos anos, com o aprofundamento de minhas observações, esse otimismo, em larga medida, evaporou. Eu alerto o leitor, da forma mais explícita possível, para essa mudança, além de justificá-la detalhadamente. De fato, na página 326 lemos: “Abandonando certo otimismo ainda presente em nossas primeiras observações acerca do uso de conceitos sociológicos técnicos, fornecidos pelo teórico A ou B, nas investigações sociais conteudísticas, gostaríamos de esclarecer o seguinte: embora seja possível, como demonstramos com o exemplo de Burke e com o nosso experimento mental de um Sérgio Buarque ‘teórico’, o emprego empírico e não dedutivista desses conceitos, não é isso, infelizmente, o que em geral ocorre”. Em seguida eu explico por que razões o fetichismo do conceito se tornará menos provável se o investigador utilizar apenas conceitos sociais de senso comum, cujos significados tenham sido fixados por um uso social padrão na vida cotidiana, evitando jargões sociológicos. Eis uma dessas razões: é que esses conceitos “estão menos enredados, por assim dizer, com problemáticos enunciados gerais do que boa parte dos conceitos sociológicos, formulados num jargão técnico por este ou aquele teórico social, e se prestam menos, devido a isso, a ilações dedutivistas acerca da causação social” (p. 327). Assim, por exemplo, o termo “classe operária” em seus significados usuais, de senso comum, não viabiliza, sem as devidas qualificações conteudísticas, maiores conclusões sobre as classes operárias reais,  empiricamente dadas, pois não há muito a dizer, nesse caso, a partir do mero conteúdo conceitual: se o pesquisador quiser concluir coisas novas e substantivas, precisará realmente realizar pesquisas empíricas. Não há outra saída! Portanto, a pobreza do conteúdo sistemático dos conceitos sociais de senso comum, longe de representar um problema, acaba se revelando aqui uma grande vantagem ao inviabilizar dedutivismos, ao obrigar o pesquisador a mergulhar no trabalho empírico. Em contrapartida, se tomarmos o mesmíssimo termo na acepção teórica, técnica, que assume na sociologia marxista, tudo muda dramaticamente para pior. A ruptura com o senso comum se mostra desastrosa: indissoluvelmente comprometido com toda uma teoria geral da sociedade e da história de discutível conteúdo empírico, o conceito técnico de classe operária permitirá agora um verdadeiro dilúvio de ilações dedutivistas. Ganha o interpretativismo teoricista, perde a sociologia empírica. Em O Fetichismo do Conceito isso é bem ilustrado, como você há de lembrar, pela análise impiedosa da obra, não de um sociólogo, mas sim de um consagrado historiador, o Thompson. Não, não se trata de contrapor disciplinas nem de julgar uma com base na outra;

3)      Na segunda e terceira partes do livro, abandonando o mencionado otimismo, coloco em dúvida até mesmo a modesta utilidade, atribuída ao jargão sociológico, de visibilizar importantes fenômenos sociais. Eu, de fato, não acredito mais nisso. Não por inexplicável e gratuita birra com os teóricos sociais, nem por ter presenciado, na condição de examinador de bancas de pós-graduação, o uso mais insano, mais tresloucado desses teóricos, embora isso ocorra de fato com frequência e não seja, diga-se de passagem, culpa exclusiva da imaturidade de mestrandos e doutorandos – as ilusões teoricistas acerca do que podem fazer com simples quadros conceituais não são de responsabilidade apenas deles. Na realidade, venho nos últimos anos fazendo a reiterada constatação de que observadores argutos da vida coletiva, valendo-se tão somente de conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente (leia-se: conceitos cujos significados foram fixados pelo uso padrão na vida cotidiana e não no interior de um conhecimento especializado), foram, sim, perfeitamente capazes de vislumbrar, com a devida nitidez, aqueles fenômenos sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociológicos formulados num jargão técnico. No livro eu dou alguns exemplos que poderiam ser facilmente multiplicados. A lista, acredite, não é pequena! Se eu não estivesse fora do Brasil agora, longe da minha biblioteca, incluiria aqui novas “provas empíricas” dessa conclusão. Não, eu não estou fazendo “graçolas”, buscando ser divertido – seria desastroso: não tenho, infelizmente, esse talento – ao citar aquela passagem de Pascal. Trata-se de uma observação epistemológica importante cujas implicações práticas, na pesquisa empírica, estão longe de ser irrelevantes: se eu estiver correto, os sociólogos efetivamente envolvidos com pesquisas empíricas (os outros, os aprendizes de filósofos, os moralistas travestidos de “cientistas”, não importam minimamente) já não precisariam perder o seu valioso tempo com a exegese de textos, tentando entender o significado “exato” de dispensáveis jargões sociológicos, já não precisariam exibir, para ganhar respeitabilidade intelectual entre os seus pares, o domínio desses jargões. Ótimo, não?

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