terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Biossociabilidade e biopolítica: reconfigurações e controvérsias em torno dos híbridos nanotecnológicos


Jonatas Ferreira e Rosa Maria Pedro
Introdução

[Na falta de tempo, ou inspiração, vai a Introdução do artigo a ser publicado na próxima edição da revista argentina Redes]

As novas tecnologias de manipulação da vida, em especial aquelas que operam em escala molecular, tais como a transgênese, a produção de tecidos a partir de células-tronco, perspectivas de terapia gênica, a produção sintética de genomas por nanotécnicas, acenam com a possibilidade de aperfeiçoamento indefinido do corpo humano e, no limite, imortalidade. Para autores como Sfez, Blumenberg ou mesmo Bauman, estaríamos diante da eminência de uma 'solução' ou resposta técnica, secular para um sonho antigo e milenar: o da imortalidade. Partindo de uma outra linha de argumentação, e alinhando-nos a pensadores como Foucault, Agamben, Rabinow e Rose, acreditamos que esse tipo de constatação requer uma questão preliminar: o que significa a produção e reprodução da vida para a biologia molecular e o conjunto de novas técnicas que ela vem mobilizando - em especial a nanotecnologia? Divergências entre esses últimos autores sendo desconsideradas, parece consensual uma idéia: a biopolítica ainda é o campo em que essa pergunta pode e deve ser formulada.

Interpretando Foucault a partir de Hannah Arendt, Agamben acredita que, desde os gregos, a política estrutura-se a partir da relação ambígüa que se trava entre uma vida ética e politicamente digna de ser vivida e uma vida biológica, uma “vida nua”. Para ele, a política moderna se estabelece quando as discussões acerca dos destinos da polis não comportam outro âmbito de significação da vida humana que não o labor, a satisfação de necessidades biológicas. Este cenário compreende a articulação de uma aparente contradição: o ato político, por um lado, percebe-se civilizador, determinado a partir de uma ordem não meramente orgânica, natural, e, por outro, pressupõe uma articulação e inscrição no âmbito da vida pura – ainda que essa articulação se expresse sob a forma de exclusão. O ato civilizador se estrutura por oposição e, ao mesmo tempo, a partir de uma contaminação com o puramente biológico. Desse modo, matar é incivilizado; mas durante a guerra o inimigo é apenas proliferação de vida tout court. De uma maneira ampla, poderíamos dizer que sempre que o exercício da política levantar a questão da soberania, de elaborar a possibilidade da decisão soberana, necessariamente estaremos envolvidos com questões como: sob quais condições o civilizado pode invadir legitimamente o terreno da vida nua, da vida biológica? O poder soberano é aquele que decide quando e como a fronteira entre esses dois campos (vida civilizada, vida nua) deve ser ultrapassada. Por esse motivo, sua jurisdição é sempre limítrofe. Soberano é aquele que decide quando a linha divisória entre o civilizado e o biológico, entre cultura e natureza, deve ser ultrapassada – e aqui percebemos a dívida de Agamben para com o pensamento de Carl Schmitt.

Mas como essas considerações teóricas se aplicam ao problema que nos propomos discutir? Passemos a uma ilustração. O desconforto acerca do que fazer com células-tronco embrionárias seria, de fato, um exemplo da mesma dinâmica civilizadora e das aporias que a idéia de biopoder, tal como formulada por Agamben, abre: são elas seres humanos potenciais ou vida nua? Teríamos direito de realizar pesquisas com células-tronco embrionárias? Qualquer que seja a nossa percepção acerca deste tema, e as respostas que possamos dar às questões acima, ele define um campo de possibilidades que poderíamos chamar de político – ou, mais precisamente, a possibilidade do político construída pela cultura ocidental, tal como o formulam Schmitt, Arendt e Agamben. O espaço do poder tornou-se a vida biológica. Ainda um exemplo: diversos autores comentaram acerca do estranho caso de um norte-americano que teve seqüências genéticas do seu baço patenteadas por uma grande companhia farmacêutica. Diante de sua reivindicação, de que lhe pagassem direitos sobre o enorme lucro que a empresa estaria obtendo com sua informação genética, a Suprema Corte americana foi taxativa: comercializar uma parte do corpo, da vida humana, é contra a lei. Incivilizado, portanto. Pode-se, do mesmo modo, considerar esse material genético, multiplicado em laboratório apenas como informação. De que outra forma o direito de comercialização das informações genéticas do litigante seria garantido à grande empresa farmacêutica em questão? Não é vida, mas seqüência de bases nitrogenadas, moléculas de material inorgânico. A zona de fronteira que é objeto do ato político – o espaço entre a vida humana e a vida nua, entre o que é culturalmente valioso e o que é apenas engrenagem, proliferação do orgânico ou inorgânico, como é o caso de uma seqüência de bases nitrogenadas – estabelece uma relação evidente entre a biopolítica e uma tanatopolítica, entre o que deve ser considerado vivo e o que deve ser considerado inanimado, entre o que deve ser considerado como base da vida social e o que deve ser considerado matéria disponível, estoque. Nestes dois exemplos, todavia, o exercício biopolítico não envolve uma dimensão tanatológica nos termos propostos por Agamben. De fato, não se trata mais simplesmente de uma decisão entre o que deve viver e o que deve morrer, mas o que deve ser considerado vivo e o que deve ser considerado inanimado. Esse pequeno deslizamento conceitual parece importante para entender o novo campo de biossociabilidade que se constitui com as novas biotecnologias.

Há, portanto, uma dimensão profundamente política nas novas tecnologias de manipulação molecular da matéria que não pode ser entendida prontamente a partir do modelo jurídico-político proposto por Giorgio Agamben. Existe no terreno daquilo que se convencionou chamar de convergência tecnológica uma mobilização estranha de aspectos biopolíticos e tanatológicos que convém examinar e que decorre do que identificamos acima como deslizamento conceitual. Neste ensaio consideraremos muito especificamente o surgimento de um novo paradigma para entender e manipular a vida biológica, nomeadamente, o surgimento da nanobiotecnologia, em que a distinção entre o que é animado e o que é inanimado deixa de ser clara. O que significa o surgimento de uma nova medicina em que a molécula, o átomo, e não mais o organismo é a unidade analítica básica? Por um lado, certamente a continuidade do processo que se inicia com a constituição da anatomo-clínica e sua ênfase analítica, não mais no organismo e seus órgãos, mas na análise de tecidos. Esse processo deu lugar a algumas outras rupturas epistemológicas fundamentais: em direção não mais ao tecido, mas à célula; não mais em direção à célula mais ao genoma; não mais em direção ao genoma mais à molécula, ao átomo.

O que significa para o projeto político ocidental o fato de a distinção política fundamental - entre amigo e inimigo, sim; mas fundamentalmente entre o que deve viver e o que deve morrer – encontrar diante de si o embaraço das fronteiras entre o vivo e morto como espaço de operação tecnocientífica? É preciso questionarmos esse lugar político fundamental que a tecnociência passa a ocupar. Falemos imediatamente daquilo que salta aos olhos: isso significa que o biopoder encontra também aqui uma dimensão ecológica que não pode deixar de ser trabalhada. O grey goo, cenário distópico traçado por Eric Drexler, onde a ação de nano-robôs consumiriam a vida na terra, naquilo que ele apresenta de paranóico, deve ser entendido como metáfora das preocupações de controle mediante o qual o biopoder precisa pensar sua legitimidade. Nesse sentido, o ponto de vista foucauldiano, muito mais interessado nos processos micropolíticos que Giorgio Agamben, nos ajuda a perceber que o político se instala também no nível molecular a partir de estratégias rizomáticas. O grey goo como metáfora da força rizomática das grandes corporações sinaliza para o terror ambiental que corrói a legitimidade e ao mesmo tempo demanda a ação soberana. A ansiedade diante da possibilidade de desastres ambientais aparecem hoje claramente em discussões acerca da toxidade de novos materiais produzidos pela nanotecnologia ou sobre o destino a ser dado ao lixo produzido com esse tipo de tecnologia.

Propomos, aqui, problematizar certas ações e intervenções nessa zona limite, o nível molecular, onde aqueles que são capazes de produzir efeitos e conseqüências não são apenas os “atores sociais”, mas, sobretudo, os não-humanos. Em outras palavras, propomos uma interpretação de certas intervenções tecnológicas recentes a partir da questão do político tal como circunscrito acima. Este modo de colocar o problema possui afinidades com as noções que se articulam em torno do referencial de redes sócio-técnicas, tal como proposto por Bruno Latour e Michel Callon, dentre outros. Problematizar a tecnociência que opera na escala do infinitamente pequeno – campo de convergência de duas técnicas revolucionárias, a biologia molecular e a nanotecnologia, nível em que “a diferença entre o orgânico e o inorgânico, entre o vivo e o não vivo” deixa de fazer sentido – pode dar visibilidade aos hibridismos que caracterizam o contemporâneo. As redes que aí se produzem – e os debates que suscitam em torno da produção e circulação dos híbridos – permitem-nos compreender o que pode uma sociedade e quais os seus limites, o que certamente não se restringe às suas possibilidades tecnológicas, mas sobretudo à sua política e sua ética.

Procuraremos, assim, refletir acerca das questões políticas, éticas e culturais que subjazem à perspectiva de uma sociedade que se articula em torno de uma dimensão técnica literalmente molecular, buscando explorar os horizontes biopolíticos e biossociais que, a partir daí, se podem vislumbrar.

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