terça-feira, 1 de setembro de 2009

A digitalização e edição da vida e suas conseqüências culturais (parte 2): A Cibernética como Paradigma das Ciências da Vida

Jonatas Ferreira

Depois deste breve panorama gostaria de me deter num aspecto da experiência genômica que me parece de fundamental importância. Não precisaríamos realizar um grande esforço analítico para perceber a importância da tecnologia de informação nos desenvolvimentos recentes da biologia molecular. As grandes proezas até agora realizadas foram claramente no campo da bioinformática, na provisão de tecnologia para que o mais elementar da nascente genômica fosse realizado: o seqüenciamento de genomas como os da cobaia, da mosca da fruta, do ser humano, da cana-de-açúcar etc. Medicina personalizada, terapia genética etc. são inovações que ainda se colocam no terreno da possibilidade. De todo modo, o que quer que a ciência possa realizar nessa área, e evidentemente muito se fará, estará intimamente relacionado com a qualidade de avanços que a bioinformática realizará. A imbricação entre genômica e informática é algo que julgo particularmente relevante, e que, de um modo mais amplo, diz respeito à convergência de paradigmas científicos entre as ciências da vida e a cibernética. Não é à toa que um bom número de tropos mediante os quais a biologia molecular se popularizou indicarem uma proximidade entre esses dois campos do conhecimento. Software da vida, chips genéticos, fala-se. Os organismos deixam de ser entendidos como conjunto ajustado de engrenagens, como o foram nos séculos XIX e XX, e passam a ser a “expressão” de instruções moleculares.

A suposição de que, em seu nível mais elementar, a vida é apenas informação (passível de leitura, edição) nos coloca no terreno de interseção entre estas duas áreas de conhecimento. Ora, desde o seu surgimento, a cibernética procurou se constituir em lingua franca dos projetos tecnológicos de controle do mundo natural. Para realizar tal intuito, a própria idéia de comunicação, de linguagem, de informação são especificamente definidas no contexto de uma ciência que viabiliza a perfomance, que garante a realização de tarefas, e, para tal, promove a desmaterialização, a descorporificação do real.

Tudo o que interessa no campo das diferenças entre o humano, o técnico e o natural é a possibilidade de encontrar um denominador comum que permita a comunicação perfeita entre esses universos. Linguagem, então, é aquilo que permite uma instrução ser proferida claramente, de modo a garantir a execução de uma tarefa qualquer, comunicação é o fluxo mediante o qual se garante que essa tarefa será realizada ao longo de um tempo determinado. E informação é um padrão que se repete ao longo do tempo. Ilustremos este argumento com dois exemplos. A biotecnologia com o auxílio da nanotecnologia investe hoje, com sucesso, na produção de medicamentos ditos inteligentes; drogas capazes de se direcionar para e reconhecer alvos específicos, tais como, tecidos cancerosos e ali realizar sua tarefa química de modo controlado, segundo as necessidades do paciente. Ora, o princípio aqui é o mesmo que faz operar os mísseis inteligentes, um dos primeiros projetos da cibernética. É por ter investido nessa nova percepção da biologia e da vida que a abordagem Venter para o mapeamento genético parece ter conseguido destaque. O shotgun approach consistiu basicamente em deixar a tarefa de dar sentido a um enorme quebra-cabeças, ou ao menos montá-lo na ordem correta, para as máquinas. A automação do seqüenciamento foi o pulo do gato. Venter ademais nunca escondeu sua admiração por Bill Gates e o desejo de transformar a Celera numa nova Microsoft. O que interessa aqui é a nova concepção de vida que começa a ser produzida pela biologia molecular.

A inteireza biológica do humano passa a ser um conceito questionável. A conclusão do mapeamento do genoma humano permitiu constatar que, ao longo de milênios, incorporamos em nosso patrimônio genético seqüências inteiras de bactérias. Mais recentemente, o primeiro genoma sintético foi produzido; espera-se produzir em breve seres unicelulares. A base teórica para este feito é simples: comparando o genoma de vários seres vivos verificou-se que um número reduzido de genes era comum a todos eles – em torno de 170. Especulou-se a partir daí que a biologia molecular teria deparado com a estrutura elementar capaz de expressar a vida. O próximo passo foi desligar um a um todos os genes considerados não-fundamentais à manutenção da vida; o resultado foi o primeiro genoma artificial. A biotecnologia já não se dedica à reprodução da vida, mas à sua produção. A reconstituição genética promovida pela biologia molecular, se não contradiz politicamente a noção de inteireza plástica dos corpos (como já temos a partir de Darwin), já não depende desse artifício para transformar o mundo orgânico. A biologia molecular não respeita os limites entre as espécies ou entre os corpos, mas os percebem como atualizações virtuais de uma matriz informacional – e esta matriz informacional é a própria vida no planeta.

A biotecnologia se torna uma questão de segurança de Estado. Lembremos que a decisão de publicar ou não numa revista científica o genoma da pólio foi uma decisão que envolveu não apenas cientistas envolvidos na façanha, mas o Departamento de Defesa americano. Temia-se fornecer informações que municiasse o bioterrorismo. Duas foram as razões que fizeram o Departamento de Defesa finalmente conceder na publicação. Primeiro, o argumento de que apenas os EUA e a Rússia teriam tecnologia suficiente para usar esse tipo de informação no desenvolvimento eventual de uma arma biológica e a constatação de que os russos iam publicar o genoma, de qualquer modo.

Os horizontes sociais e políticos que se constituem com a este novo paradigma para as ciências da vida demandam a atenção dos cientistas sociais. Essa nova forma de ver a vida biológica significa, por exemplo, uma nova percepção do que seja saúde. A vida, o corpo e a saúde pensados como expressão de um software sempre passível de um upgrade, um corpo 2.0, uma saúde 3.5. Esta é ao menos a visão a partir da qual já trabalha a nanobiotecnologia: se podemos melhorar, o meramente funcional passa a ser pensado como patológico. Acredito que a idéia de biopoder que Michel Foucault propõe na década de 70 ainda pode ser de grande utilidade para interpretar esse cenário social e tecnológico, no que pese a idéia de biologia que Foucault tem em mente ainda ser basicamente as ciências da vida do século XIX. Diferentemente do cenário descrito por ele, já não se trata prioritariamente de tornar os corpos mais potentes, ágeis, eficientes, disciplinados, mas de construir novos seres a partir de informações moleculares. Diante das possibilidades que se abrem (a fabricação de órgãos, tecidos a partir de células-tronco), poucos teriam a ilusão de que a produção de ‘corpos dóceis’ seja a essência da biologia molecular. A recombinação genética indica não apenas a fragmentação e a instrumentalização do mundo natural, mas também a indiferenciação de fronteiras que antes eram consideradas sagradas, tais como aquelas que delimitam o campo do humano, do corpo animal ou vegetal.

Perdido isto que o pensamento ocidental convencionou entender como a originariedade e a inteireza do mundo natural, a própria estrutura orgânica do real passa a ser elaborada como virtualidade. Voltemos ao ponto central. As novas tecnologias de recombinação genética nos ensinam que o grão de cereal, a bactéria, o primata são apenas um resultado orgânico eventual de uma seqüência precisa de instruções moleculares - instruções sobre a matéria inerte, passíveis de leitura, interpretação, recombinação. A partir da década de 50, a seguinte certeza vem se impondo na cultura ocidental: ao conhecer os “arquivos” e a “linguagem” que estruturam o software da vida, a biologia molecular se tornaria capaz de reprogramar o mundo orgânico, instruindo a bactéria a produzir insulina, um grão qualquer a manifestar características genéticas de um animal, bactéria etc., um primata a manifestar a fluorescência de certas algas. Neste contexto, a originariedade natural da Escherichia coli, do cereal ou do macaco Rhesus subsistiria apenas como uma possibilidade a mais, uma virtualidade, a que se adicionam outras tantas combinações tecnicamente viáveis.

Nesta comunicação procurei expor alguns pressupostos que norteiam o diálogo que hoje as ciências duras travam. Por mais técnico que sejam os termos em que essa conversa se trava, parece não haver dúvida que as transformações que ela parece por em movimento significam uma transformação profunda naquilo que podemos entender como vida, natureza, humano e tecnologia. Acredito que as humanidades devem estabelecer um diálogo precisamente neste espaço que parece ser conquistado pela vontade de operar, pela performance. Esse conjunto de transformações demanda que indaguemos: afinal, de que se trata quando falamos do humano, da natureza, do vivo e do inanimado? O derretimento das calotas polares, por exemplo, falam da urgência de nos determos neste tipo de indagação.

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