sexta-feira, 30 de março de 2012

SciELO Livros



Acaba de ser lançado o Projeto Scielo Livros. De acordo com informações contidas no site,

A Rede SciELO Livros visa a publicação online de coleções nacionais e temáticas de livros acadêmicos com o objetivo de maximizar a visibilidade, acessibilidade, uso e impacto das pesquisas, ensaios e estudos que publicam. Os livros publicados pelo SciELO Livros são selecionados segundo controles de qualidade aplicados por um comitê científico e os textos em formato digital  são preparados segundo padrões internacionais que permitem o controle de acesso e de citações e são legíveis nos leitores de ebooks, tabletssmartphones e telas de computador. Além do Portal SciELO Livros as obras serão acessíveis por meio dos buscadores da Web e serão publicados também por portais e serviços de referência internacional.

A rede já conta com quase 200 títulos, que podem ser baixados gratuitamente (aqui).


Cynthia

segunda-feira, 26 de março de 2012

Claude Lévi-Strauss



                                               Fernando da Mota Lima
Claude Lévi-Strauss é reconhecido como o pai da antropologia moderna até em orelhas de livro. Para os brasileiros importaria, pelo menos, saber que o Brasil desempenhou um papel fundamental na formação desse homem que revolucionou a antropologia. Aliás, ele afirma categoricamente que a ciência antropológica, assim como as ciências humanas em geral, de ciência tem apenas o nome. Isso já de início sugere que esse homem extremamente reservado, no fim da vida conservador e até nostálgico, além de sombrio na sua apreciação anti-humanista do mundo, não era de meias palavras. Outros dos seus juízos controvertidos referem-se ao racismo, ao multiculturalismo, à arte contemporânea, ao suposto caráter revolucionário do 1968 francês, cujos efeitos alastraram-se por grande parte do mundo, e outras questões polêmicas. Mais abaixo considerarei devidamente sua relação com o Brasil, que neste parágrafo me limito a indicar em termos sumário.
Claude Lévi-Strauss: O poeta no laboratório, objeto desta resenha, é uma biografia ricamente documentada e informativa, além de escrita com clareza e precisão exemplares. Alerto o leitor ocasional das biografias que tenho resenhado neste blog para o fato de que, se me repito nesse tipo de elogio, a culpa, melhor diria mérito, é atribuível aos excelentes biógrafos que tenho resenhado: Ron Rosenbaum, Stephen Greenblatt e agora Patrick Wilcken. Pois um mérito que em todos identifico e tenho ressaltado é a clareza da exposição, mesmo quando o biografado, é o caso de Lévi-Strauss, é autor de obra teoricamente complexa e portanto pouco acessível ao leitor privado de formação especializada.

Mas o próprio Wilcken apropriadamente nos informa, numa das sessões do “Epílogo” (ver “Leituras Adicionais”, pp. 367-370), que Lévi-Strauss muito facilitou o acesso do leitor à sua obra através de entrevistas, documentários e transmissões radiofônicas muito esclarecedoras, dada sua facilidade expressiva. Efetivamente, quem acaso tenha lido De perto e de longe, série de conversas gravadas entre Lévi-Strauss e Didier Eribon, pode confirmar esta qualidade também salientada por Wilcken. Este livro, também traduzido no Brasil, desdobra-se tendo como objeto a vida e a obra de Lévi-Strauss. Precisando ainda os créditos e méritos do biógrafo, acrescentaria que é também um estudioso do Brasil, fato que sem dúvida concorreu para acentuar o valor e exatidão das páginas que consagra ao papel crucial que o Brasil desempenhou na biografia e na obra de Lévi-Strauss. A maior evidência consiste no fato de ele ser autor de um livro inteiramente consagrado ao Brasil: Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, também publicado pela Editora Objetiva.

Expondo o plano geral da obra, Wilcken divide-a em duas partes: a primeira, relativa à formação e treinamento de campo do biografado, tem o Brasil como referência seminal, prolonga-se no exílio vivido por Lévi-Strauss nos Estados Unidos, quando o avanço do nazismo o força a deixar a França, e se completa com a publicação de Tristes Trópicos, em 1955. A propósito, tentou inicialmente exilar-se no Brasil. É portanto um fato lamentável saber que a embaixada brasileira lhe negou o visto solicitado. Esse episódio, que Wilcken relata, foi antes registrado pelo próprio Lévi-Strauss no livro resultante de suas conversas com Didier Eribon. A segunda parte imprime relevo à elaboração e difusão das ideias do antropólogo que alcança converter-se em objeto de reverência, notadamente na França e no Brasil. Além do impacto que teve a partir da publicação do já citado Tristes Trópicos, o estruturalismo inspirado pela obra de Lévi-Strauss tornou-se uma autêntica moda acadêmica beneficiada pela crise profunda que se abateu sobre o marxismo e o existencialismo identificado com a figura legendária de Jean-Paul Sartre. A partir dessa crise, Sartre é suplantado por Lévi-Strauss no Olimpo intelectual francês, também por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault. Muitos dos que se diziam seguidores de Lévi-Strauss foram desmentidos pelo próprio, que com frequência queixou-se de ser incompreendido. A julgar por algumas de suas declarações tardias e pessimistas, a escola de pensamento que fundou não teve prolongamentos. Melhor dizendo, não teve seguidores que reconhecesse como fiéis ao espírito das suas ideias.

Esclarecendo um pouco o subtítulo da obra – “O poeta no laboratório” -, ele traduz uma frustração confessa do próprio Lévi-Strauss. Artista manqué, ou artista fracassado, seu sonho era ser pintor ou músico. Também sonhou ser escritor literário, e aqui chegou a tentativas efetivas, todavia malogradas. Queria ser dramaturgo ou poeta. A fotografia, que muitas vezes praticou como parte do seu ofício de etnólogo, também trai o seu gosto pela arte e seus méritos como fotógrafo foram reconhecidos, embora no fim da vida tenha depreciado o próprio alcance estético da fotografia. Além disso, denotando ainda suas inclinações e influências artísticas, na juventude demonstrou vivo interesse pelo surrealismo e outras correntes artísticas. Sua amizade com André Breton, fruto de um encontro acidental no navio que os transportou para o exílio nos Estados Unidos, também concorreu para reforçar seus vínculos com a arte. Como observa Patrick Wilcken,

“Ambos eram estetas intelectuais sérios, ambos sóbrios e um tanto formais na maneira de abordar o mundo, porém tomados pela paixão modernista da época pelo primitivo e pelo subconsciente. Sem livros, os dois passaram o resto da viagem conversando no tombadilho, mostrando um ao outro longas notas densamente teóricas, trocando ideias sobre a arte, o surrealismo, o juízo estético” (p. 127).
Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935 acompanhado por sua primeira mulher, Dina Dreyfus. Vieram com a segunda corrente da missão francesa encarregada de formar a primeira geração de estudantes da Universidade de São Paulo. Derrotado pelo poder central em 1932, na guerra conhecida como a Revolução Constitucionalista, São Paulo se mobiliza tomado por seu espírito pioneiro para lançar as bases da universidade que se tornou a mais importante do Brasil e de toda a América Latina. A missão francesa, convocada pelo psicólogo Georges Dumas, em acordo com a elite paulista, chegou ao estado a partir de 1934 com a função de estabelecer nos trópicos – ou tristes trópicos, se queremos evocar a obra de Lévi-Strauss inspirada por essa experiência – as bases de uma autêntica universidade moderna, já que o Brasil era praticamente desprovido de tradição universitária. 
A hegemonia da cultura francesa era à época tão indisputada que os cursos eram ministrados em francês. Foi nessas circunstâncias que em São Paulo floresceram as carreiras acadêmicas de grandes nomes da cultura francesa como Lévi-Strauss, Fernand Braudel (este já mais velho e adiantado, com obra em curso quando chegou a São Paulo), Roger Bastide e outros que, não obstante menos famosos, exerceram papel decisivo na formação da primeira geração de professores nativos da USP. Bastaria acrescentar que os dois intelectuais uspianos mais renomados, Antonio Candido e Florestan Fernandes, pertenceram a esta geração, além de outros igualmente importantes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado.

Além de atuarem como mestres dessa geração, os franceses prontamente se associaram à elite intelectual paulista, sobretudo aos modernistas já então empenhados em funções institucionais das quais resultou o triunfo do modernismo, que na década precedente irrompera como um movimento de vanguarda tomando de assalto a cultura estabelecida. O mais destacável, como é sabido, era Mário de Andrade. Desempenhando a função de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário realizou um trabalho de política cultura sem precedente, ousaria afirmar que também ainda sem sucessor à altura da obra extraordinária que comandou assistido por intelectuais qualificados e devotados como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Luís Saia e vários outros.

Mário de Andrade aliou-se antes a Dina do que a Lévi-Strauss. Mulher de notável talento e capacidade de trabalho, ela ministrou, a convite de Mário, o primeiro curso de etnografia na cidade de São Paulo. Além disso, exerceu papel chave na Sociedade de Etnografia e Folclore, criada por Mário de Andrade através do Departamento de Cultura. Wilcken nos revela que essa amizade e trabalho colaborativo provocaram ciúmes em Lévi-Strauss. Já depois de separar-se de Dina, queixou-se este das cartas carinhosas que Mário escrevia para ela. Quem conhece a correspondência de Mário, caso singular na história da literatura brasileira, pode bem imaginar o tom não raro demasiado afetuoso das suas cartas, notadamente quando destinadas a mulheres. As que escreveu para Stella, primeira mulher de Ascenso Ferreira, são sentimentalmente tão derramadas, ou desmedidas, que bem poderiam dar margem a leituras dúbias.

Cedendo à tentação de uma outra digressão que não figura no livro de Patrick Wilcken, talvez o leitor demasiado etnocêntrico ou estreitamente crítico da nossa formação colonizada erradamente conclua que a missão francesa foi apenas um outro capítulo na história da nossa subserviência à cultura francesa. Na verdade, as relações entre culturas são muito mais complexas. Esse episódio, o do papel formador dos franceses na história da USP, ilustra extraordinariamente essa questão. Como o demonstram depoimentos de alguns dos mais renomados rebentos da universidade e dessa experiência formadora, os franceses foram decisivos para despertar-lhes dimensões do Brasil que eles por si sós seriam incapazes de enxergar. Isso foi possível porque os franceses vieram também para aprender sobre o Brasil, transportavam com seu olhar de estrangeiro potencialidades perceptivas e desejos de descoberta adormecidos na percepção familiar do brasileiro. Em suma, renova-se aqui o costumeiro jogo dialético entre o familiar e o estranho, parte da formação de qualquer antropólogo, raiz metodológica de todo saber antropológico e por extensão humanístico. Os franceses nos ensinaram porque também queriam aprender. Assim, estabeleceu-se essa via de mão dupla tão fecunda na interação entre culturas. Ganharam eles e ganhamos nós. Quem perde é o etnocentrismo e variantes provincianas como o nacionalismo e o regionalismo. Sempre que estes ganham, perdemos nós na nossa capacidade de ampliar nossa compreensão do mundo, de apreender o mundo em viva e fecunda interação com a alteridade das culturas.

Quando Lévi-Strauss chegou ao Brasil, São Paulo tinha cerca de um milhão de habitantes. Sua febre expansiva, da qual a grande leva imigratória que acolheu era uma das manifestações mais extraordinárias, fascinou Lévi-Strauss, que aqui aportou com pré-concepções e expectativas largamente infundadas. Num curto intervalo do espaço urbano da macota cidade, como diria Macunaíma, acotovelavam-se tempos sociais e extremos culturais que iam dos resquícios coloniais ao espírito do capitalismo observável em Chicago, do rural mais rústico ao urbano mais requintado. Variando os termos de acordo com o jargão sociológico, o pré-moderno e o moderno se justapunham de forma complexa na medida em que tanto envolviam processos integradores quanto conflituosos. Como seus colegas formadores da universidade recém fundada, Lévi-Strauss documentou e estudou com seus alunos esse processo de profundas mudanças culturais e urbanas fixando-o empiricamente em monografias sobre a formação e desenvolvimento de bairros da cidade.
Depois disso embrenhou-se nas paisagens do interior explorando regiões do Mato Grosso onde efetivamente realizou seu grande trabalho de campo como antropólogo. Essa experiência embasa um dos seus livros fundamentais, o já citado Tristes Trópicos. Em 1985, passados muitos anos, revisitou São Paulo como membro da comitiva oficial do então presidente François Mitterrand. Melhor dar a palavra ao biógrafo:
“Quando estava em São Paulo, Lévi-Strauss conseguiu escapar um dia de manhã, pegou um táxi e foi até a avenida Paulista, procurando sua velha casa na Cincinato Braga. A cidade que ele tinha conhecido e amado na juventude, com suas ladeiras e casas de arquitetura colonial, tinha praticamente desaparecido. (...) Lévi-Strauss acabou ficando preso num congestionamento e foi obrigado a voltar.” (p. 319).
Como é notável, minha resenha enfatiza os vínculos de Lévi-Strauss com São Paulo e o início de sua vida e carreira associadas a esse tempo. Evidentemente, a biografia se espraia por outros tempos e lugares, circunstâncias e experiências: seu exílio nos Estados Unidos, ligeiramente anotado acima, seu retorno à França, seu encontro e sua amizade com Roman Jakobson, a elaboração da obra que firmou sua reputação como intelectual e muita coisa que me vejo forçado a omitir no meu roteiro demasiado seletivo. Sua amizade com Jakobson merece um registro mínimo, pois foi decisiva para a orientação da sua obra e a elaboração teórica do estruturalismo, como ele próprio reconhecia. Linguista e poliglota de extraordinária erudição e formação teórica, Jakobson o introduziu nos meandros da linguística estrutural. Através dele, Lévi-Strauss descobriu, entre outras coisas, o Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure. 
No parágrafo inicial desta resenha, aludindo ao tom polêmico de certas declarações de Lévi-Strauss, mencionei de passagem o racismo, o multiculturalismo, a arte contemporânea e o 1968 francês, que muitos interpretam ainda como um ano revolucionário, senão mesmo uma década revolucionária. No Brasil, assim como em muitas outras extensões periféricas da cultura europeia, seu impacto foi inegável. O que é discutível é a sua natureza. Seria de fato revolucionária? O ponto de vista de Lévi-Strauss é francamente contrário. Esta frase diz tudo: “Achei o maio de 1968 repugnante” (p. 301). Segundo Greimas, Lévi-Strauss teria declarado durante uma conversa entre eles: “Acabou. Todos os projetos científicos vão retroceder vinte anos” (idem, ibidem).

Acerca do racismo ele também incorreu em declarações públicas no mínimo embaraçosas para a Unesco, que o convidou para proferir a conferência inaugural do Ano Internacional do Combate ao Racismo. Segundo Wilcken, suas declarações polêmicas puseram René Maheu, diretor-geral da Unesco, em pânico. No essencial, o que argumentava era que a política antirracista, tal como proposta pela Unesco, tenderia a alimentar um processo de decadência cultural, já que ameaçaria anular a força do individualismo que move os processos de renovação estética e os valores espirituais necessários à dignidade e valorização da vida. Também não poupou o multiculturalismo, que hoje, pelo menos no Brasil, foi reduzido a clichê da democracia cultural e palavrório vazio da publicidade oficial. O multiculturalismo que vivenciou durante seu exílio em Nova York passou a ser visto na velhice como uma ameaça à sua cultura.  

Na velhice, como frisa seu biógrafo, seu pessimismo se acentuou, assim como sua adesão a uma visão conservadora, portanto oposta ao socialismo militante da sua juventude. As evidências mais fortes do seu pessimismo manifestam-se na sua preocupação relativa à explosão demográfica, à devastação da natureza provocada pela expansão da civilização técnica e as tendências dominantes na arte contemporânea, incompatíveis com seus ideais estéticos. A esse propósito, Patrick Wilcken cita passagens bem impressivas de um artigo que escreveu para a revista Time:
“Não acredito em Deus, mas tampouco acredito no homem. O humanismo fracassou. Não impediu as ações monstruosas de nossa geração. Ele tem se prestado a desculpar e justificar todas as espécies de horrores. Ele entendeu mal o homem. Tentou separá-lo de todas as outras manifestações da natureza”(p. 310).
A esse diagnóstico sombrio, mas talvez irretocável no essencial, não poderia deixar de acrescentar a longa e devastadora experiência do colonialismo imposto pela Europa a países como o Brasil, o fascismo e acima de tudo o nazismo cujos horrores excederam as mais tenebrosas figurações da imaginação humana.

E por aí foi ele de mal a pior para quem acredita ou precisa acreditar em visões de mundo consoladoras ou francamente otimistas. Quando morreu, já centenário, Lévi-Strauss deixou palavras ainda mais negativas para legar àqueles que o celebraram e ainda o celebram. Mas encurto o enredo, que de resto não recomendo ao leitor impressionável, sobretudo se incorrer na insensatez de ler este desfecho da resenha na hora de dormir. “O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”, é outra frase sombria que escreveu e nada de animador promete à posteridade.   

quarta-feira, 21 de março de 2012

Por que ensinar os clássicos ou: tradição, modernidade e ciência, substantivos perenes da sociologia



Obs.: a versão original e integral deste texto foi publicada em: Caderno de Textos em Ciências Sociais, vol.VIII, fasc. 5. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.

                           Tâmara de Oliveira
                                                                                                         
A mentira e a verdade/ São as donas da razão/ Brigam na maternidade/ Quando chega Salomão/ A razão pela metade/ Vai cortar com o seu facão/ Mas vendo que a mentira chora e pede piedade/ Dá-lhe a razão (...). A mentira, me acredite/ Com a verdade vai casar/ Se disfarça de palpite/ Pra verdade enfeitiçar/ Todo mundo quer convite/ A capela vai rachar/ Ao ver a verdade se mordendo de apetite/ Aos pés do altar (...)” – Edu Lobo/Chico Buarque, Verdadeira Embolada, em: O Corsário do Rei

“(...) O mundo vai girando cada vez mais veloz/A gente espera do mundo e o mundo espera de nós/ Um pouco mais de paciência/ Será que é o tempo que lhe falta pra perceber/ Será que temos esse tempo pra perder/ E quem quer saber (...)” – Lenine, Paciência em: Na Pressão

1- Problemas sociais, tempo, ciência e verdade: sociologia, uma ciência moderna, problemática e plural.
Por ofício, por vocação, por função ou por contrato de trabalho, temos a tarefa de iniciar os estudantes de sociologia em três autores clássicos do pensamento sociológico – Karl Marx (1818/1883), Émile Durkheim (1858/1917) e Max Weber (1864/1920). Contudo, eles não são os únicos fundadores da disciplina e, um deles (Marx), construiu na verdade uma teoria social à margem da consolidação histórico-institucional da sociologia. Além disso, estamos no século XXI e na América Latina, enquanto que as sociologias desses três europeus referiam-se ao século XIX ou à virada do século XIX para o XX.
Por que então promover a iniciação sociológica justamente com esses três autores tão distantes dos estudantes contemporâneos no tempo e no espaço? Esta questão pode angustiar um professor de Sociologia I a cada semestre, sobretudo nas primeiras aulas, quando o olhar de muitos estudantes não dissimula o enfado exemplar da juventude diante de tudo que lhe pareça velho, morto e enterrado; em uma palavra, ultrapassado. Ela pode também angustiar os próprios estudantes, pelo menos aqueles mais curiosos e interessados pela formação sociológica: há alguma validade científica em teorias e métodos do passado, se a sociedade e a sociologia do presente mudaram tanto?   
Passado/presente, ciência/verdade: eis aí binômios cruciais do longo processo de formação da sociedade moderna, cujas relações complexas e diversas oferecem boas justificativas para selecionar e oferecer as sociologias de Marx, Durkheim e Weber como rito de iniciação aos jovens estudantes.
          O binômio passado/presente pode ser considerado elemento fundador da modernidade, pois que a oposição rígida entre “o que foi” e “o que é” está no âmago da identificação da modernidade como algo distinto da tradição. Melhor dizendo, a sociedade moderna se construiu enquanto realidade pretensamente diferente e/ou oposta ao que ela própria definiu como sociedade tradicional. O sentido da palavra moderno é diretamente referido ao que é presente, ao agora, ao hoje, enquanto que a palavra tradição tem um sentido referido a um passado que se repete, a um hoje que é uma reprodução do ontem.
       Quer dizer que enquanto a sociedade tradicional fixar-se-ia no passado, a sociedade moderna construir-se-ia no presente voltando-se para o futuro, ou seja, a sociedade moderna seria mutável no tempo. Fechada nela mesma, a sociedade tradicional possuiria “verdades” valorativas, passadas de geração a geração pela autoridade do costume e da religião; “verdades”, cuja origem e finalidade não estariam nas necessidades ou capacidades dos seres humanos concretos, mas em forças transcendentais (divinas e/ou diabólicas, melhor dizendo metafísicas) que estabeleceriam a realidade e os fins da natureza e da humanidade. Aberta e mutável, a sociedade moderna possuiria “verdades” factual-racionais, construídas de geração a geração pelo uso das capacidades humanas de observação e razão, quer dizer sobre a apreensão e explicação da realidade a partir do que ela mesma oferece aos sentidos e à racionalidade humanos e, cujo sentido seria o do conhecimento intelectual e prático da realidade para a satisfação das necessidades dos homens. Necessidades estas que seriam também mutáveis, já que o desenvolvimento do conhecimento intelectual e prático da realidade abriria novas e constantes possibilidades para o homem. Em outras palavras, movimentando-se do presente para o futuro, a sociedade moderna seria a sociedade de um “eterno progresso”.                 
         É por isso que o binômio ciência/verdade é um elemento fundador da modernidade em associação íntima com o binômio passado/presente. Mas, neste caso, trata-se de um binômio cujos termos são complementares –  ao contrário do outro. A ciência apresenta-se como um instrumento básico para a ruptura com o passado, como meio fundamental para fazer do presente a eterna construção do futuro; em suma, ela teria como pressuposto o de ser útil ao progresso da humanidade. Assim, entre a ciência e as necessidades modernas estabelece-se um vínculo íntimo e ideal de meio e fim, que tem sua fonte histórica no antropocentrismo da Europa renascentista (século XVI). Este vínculo significa que a ciência é parte constituinte da oposição tradição/modernidade, que ela se define como parte ativa desse presente aberto ao futuro que caracterizaria a sociedade moderna.
Além disso, como sugerimos na página anterior, quando se fala em ciência não se está falando diretamente em tipos diferentes de sociedade; está-se falando diretamente em tipos diferentes de conhecimento e de prática sobre a realidade – quer seja esta natural ou humana. De tal sorte que a oposição passado/presente, aquela que distingue uma sociedade centrada no passado de outra centrada no presente/futuro, aquela que provoca um olhar de enfado ou de desconfiança de inutilidade em relação ao “que já foi”, sobrepõe-se, quando se trata do binômio ciência/verdade, a uma outra oposição: aquela entre fato e valor.
               A ciência impôs-se, primeiramente, como conhecimento “verdadeiro” da realidade natural. Eliminando a mediação de potências transcendentais entre o sujeito do conhecimento e o objeto cognoscível, a ciência que se afirmava entre os séculos XVII e XVIII possuía os seus próprios pressupostos: o de que a realidade é sistêmica (quer dizer que ela é um todo composto de partes em interrelação), ordenada (quer dizer que as relações entre suas partes são regulares) e objetiva (quer dizer que suas regularidades são passíveis de observação e reflexão neutras, porque elas são exteriores à vontade e aos valores do sujeito que as observa). Assim, enquanto realidade objetiva, as relações regulares dos fatos naturais são observadas e apreendidas enquanto leis de ordenamento e funcionamento do real, com o fim de serem controladas pela razão humana e utilizadas para a satisfação das necessidades e do progresso humano.
       Realidade objetiva/necessidades humanas: eis aí um vínculo substancial, mas complicado, porque ele mal dissimula o paradoxo entre um modelo de ciência fundado na objetividade dos fatos, quer dizer na suposição da independência dos fatos em relação ao homem, enquanto que as necessidades desse mesmo homem são definidas na modernidade a partir da sua suposta vontade livre. Com efeito, a ruptura com a tradição significa também o ideal de passagem de uma sociedade ordenada por forças exteriores ao homem (a transcendência, a autoridade dos costumes ou a força da natureza) para outra ordenada pela razão humana; este ideal é um dos sentidos fundamentais do antropocentrismo que marca o processo de modernização. Em outras palavras, a ciência não pretende apenas conhecer a “verdade” da natureza, mas dominá-la e utilizá-la para a construção de um mundo que liberte a vontade do homem das amarras religiosas/societais e naturais, características das sociedades tradicionais. Ora, vontade e ideal não seriam atributos de fatos objetivos, mas, de valores subjetivos. A ciência estaria então no domínio do ser enquanto que a vontade estaria no domínio do querer ou “dever ser”.                           
       As revoluções políticas e a industrial entre o século XVIII e o começo do XIX, a urbanização crescente das sociedades europeias e norte-americana, pareciam, contudo, confirmar a ruptura com a tradição e a consolidação de uma sociedade do progresso através da administração científica das coisas e dos homens. Mas ao longo do século XIX, o paradoxo entre fato e valor, este componente substancial do processo de modernização, começa a se refletir em problemas concretos dos mais diferentes tipos: a instabilidade política, as crises econômicas, o desemprego, a persistência e mesmo o aumento da miséria, a contestação, a organização e a repressão da classe trabalhadora, as consequências perturbadoras da mudança de um padrão holista para um padrão individualista de relações sociais, o surgimento de pensamentos e movimentos sociais pregando revoluções radicais para o alcance da liberdade e igualdade prometidas e não cumpridas pela modernidade, o surgimento de um pensamento de reação contra a modernidade (marcado por uma nostalgia do passado que contamina mesmo intelectuais comprometidos com os ideais modernos), são algumas das expressões desses problemas.
          Atravessada por representações, práticas, desigualdades, interesses divergentes, conflitos e instabilidade histórica, os problemas sociais não pareciam atender aos critérios supostamente imprescindíveis para que um fenômeno fosse passível de observação e reflexão científicas: objetividade, ordenação e sistematicidade. Entretanto, a finalidade última de todo o processo de ruptura com o passado tradicional era exatamente essa realidade: a vida do homem em sociedade. Assim, por um lado os problemas sociais estimulavam a crítica de uma realidade que parecia escapar das possibilidades científicas de realização do progresso humano. Mas por outro lado, o modelo vigente de ciência, que supunha a inevitabilidade do progresso e da liberdade humana através da observação exterior e neutra da natureza, impunha uma atitude a-científica diante da realidade social: fato é diferente de valor; o domínio da ciência corresponde aos fatos; a vida em sociedade não corresponde ao domínio da ciência, mas ela é, sobretudo, um conjunto de amarras ou de preconceitos que dificultam a emancipação do homem.  
            Apesar disso, poder-se-ia perguntar: se o progresso científico e tecnológico não estavam diminuindo nem os conflitos nem as desigualdades sociais, a que e a quem serviu a ruptura com o passado? Seria a sociedade apenas uma realidade de valores subjetivos, múltiplos, potencialmente conflituosos e instáveis, ou ela possuiria dimensões sistêmicas e ordenadas passíveis de observação neutra – quer dizer, independente dos valores do observador? Neste sentido, a própria evidência da existência de sociedades diferentes no espaço ou no tempo (as do Novo Mundo, as da África, as asiáticas, a europeia da Idade Média e a da Antiguidade etc) não poderia indicar que as sociedades evoluem segundo leis determinadas, assim como a biologia parecia ter verificado que ocorria com as espécies animais e vegetais?
Em suma, os problemas sociais do século XIX e o modelo vigente de ciência colocavam uma série de questões sobre a modernidade: a) por que a ruptura com o passado tradicional estava aquem do que se esperava de uma sociedade aberta para o futuro? b) como resolver os problemas que a ruptura tradição/modernidade pôs à vida social humana? c) a realidade social pode ser estudada cientificamente e/ou segundo os mesmos pressupostos teóricos e metodológicos das ciências da natureza?     
         Essa série de questões estiveram no âmago da formação de uma ciência da sociedade no perturbado século XIX. Questões que levaram homens desse século a pensar no passado, apesar de viverem numa sociedade aberta ao futuro e em pretensa ruptura rígida com a tradição; questões que punham em exame a infalibilidade e a utilidade do modelo dominante de ciência. Questões enfim que engendraram a sociologia como ciência da modernidade – pois os problemas humanos e sociais imbuídos no processo de modernização foram a fonte mesma do surgimento de um olhar sociológico sobre o homem. Que desenvolveram a sociologia como uma ciência em relação problemática com as ciências da natureza – não só porque estas tinham (e têm) o domínio do que se entendia (e se entende) como ciência, mas também porque seu modelo de conhecimento excluía aparentemente a vida social dos objetos científicos. Que fizeram da sociologia uma ciência inevitavelmente plural - posto que, desde o início, as respostas a essas questões foram diversas.
          Considerando que o estudante de sociologia do Brasil do século XXI é membro de uma sociedade que se pretende moderna, isso quer dizer que ele entra numa Universidade para iniciar-se numa ciência. Sendo assim, não há nada de extraordinário em que ele encare o ensino dos três clássicos citados com enfado ou com desconfiança quanto à validade de tal aprendizado para a sua formação e seu futuro exercício profissional. Com efeito, enquanto partícipes de uma sociedade centrada no eixo presente/futuro e na oposição rígida entre passado e presente, a volta ao passado pode sempre parecer uma inútil perda de tempo. Entretanto, o vínculo genealógico e problemático entre os binômios passado/presente, ciência/verdade e a formação de uma ciência da sociedade no século XIX justificam o ensino dos clássicos aos aprendizes de sociologia.

2- Ensino dos clássicos e binômio moderno passado/presente: uma abertura para a imaginação sociológica sobre o tempo
       Quanto ao primeiro binômio, porque as motivações sociais concretas que os levaram a desenvolver teorias sociais e/ou sociológicas implicaram no levantamento de problemas sobre as relações histórico-sociais entre o passado e o presente que são particularmente importantes para estudantes que vivem num modelo societal centrado no presente/futuro. Afinal de contas, refletir sobre o caráter e o alcance das mudanças espaço-temporais nas sociedades, ou ainda, sobre os problemas e as perspectivas que tais mudanças acarretam em diferentes sociedades concretas, é uma matéria-prima da sociologia que atravessa o tempo e nos reúne a Marx, Durkheim, Weber e a tantos outros que podem entrar no programa de ensino – se há tempo. É também colocar o estudante diante da própria forma moderna de experimentar e viver o tempo, que o senso comum tende a tomar como uma pressão exterior similar à da natureza, mas cujas mudanças históricas indicam que também é uma experiência mediada socialmente.  
        Com efeito, a rígida ruptura com o passado inserida no processo de modernização simplifica a experiência social do tempo, porque ela fundamenta-se no estabelecimento de critérios binários e objetivistas de distinção entre a “tradição” e a “modernidade” que estão longe de corresponder à complexidade das mudanças humanas e sociais no tempo e no espaço. Sob uma abordagem linear e evolucionista da relação passado/presente/futuro, esses critérios de distinção provocam problemas graves, entre os quais: desconsideração das complexas imbricações entre “o velho” e o “novo” que marcam as sociedades em qualquer tempo ou espaço; geração de uma expectativa de descontinuidade radical com a experiência social passada, potencialmente desastrosa na construção social da realidade, pois que o acúmulo de conhecimento e de práticas sociais anteriores são uma fonte antropologicamente criativa para a experiência social do presente; aceleração radical das práticas e das relações sociais, manifestada em valores como o de “ganhar tempo”  e de “pensar no futuro”, que retira justamente dos indivíduos o espaço para refletir sobre suas próprias práticas, representações e instituições.
         Sendo assim, oferecer aos aprendizes de sociologia essa espécie de “choque do passado” é possibilitar que eles ponham em questão a forma de pensamento binário e objetivista do tempo que nos tem socializado desde que as pretensões da sociedade moderna assumiram o comando da explicação, da ordenação e da classificação da vida natural e social. Pondo os estudantes em contato com a primeira grande crise da modernidade, crise particularmente significativa para nós porque foi a mãe e a parteira da sociologia, o ensino dos seus pais fundadores permite uma primeira abertura do olhar do aprendiz de sociologia sobre o mundo: uma abertura temporal que reúne o presente e o passado através de questões comuns.
      Tal abertura revela que a tendência que temos em identificar passado a perda de tempo não está na natureza do homem, mas numa construção histórico-social que se centra no eixo presente-futuro. É porque somos socializados dentro de um contexto social que aprendemos a considerar sua específica experiência do tempo como pressão natural e, a consolidação de uma ciência da sociedade na virada do século XIX para o XX, contribuiu para a compreensão desse contexto. De tal sorte que é extremamente importante colocar o aprendiz diante desse procedimento intelectual que é componente substancial do olhar sociológico sobre o mundo: o de desnaturalizar as práticas, as representações e as instituições sociais, desnaturalizando a própria experiência moderna do tempo.
     Esse exercício do procedimento de desnaturalização do social é também útil enquanto experiência cognitiva existencial, porque ela convida o aprendiz à problematização da sua própria experiência com o “tempo virado pressão” da sociedade moderna. Este exercício é ainda mais importante, pois ele se associa a uma característica substancial do aprendizado em sociologia: a de demandar um processo de formação complexo, que  é cada vez mais perturbado pelas pressões sociais e institucionais em torno de rapidez na formação e de utilidade imediata dos projetos profissionais. Em suma, dado o acúmulo de conhecimento que a sociologia possui, já que apesar de existir há menos de dois séculos, ela é também herdeira de um complexo conhecimento filosófico sobre o homem em sociedade, o ensino dos clássicos pode ser um convite ao “pouco mais de paciência” que, segundo os versos de Lenine para Dom Hélder Câmara, “esperamos do mundo e o mundo espera de nós”.
     De fato, a disseminação de estudantes e profissionais cujo sentido da reflexão e da pesquisa é constantemente atropelado pela pressão do tempo e, por temas financiáveis pelo mercado público ou privado segundo critérios de eficácia imediata e/ou política, pode romper com o que é uma das tradições sociológicas mais marcantes: a de ser uma ciência crítica da modernidade, cuja trajetória é marcada pela reflexão sobre si mesma em seus laços com a sociedade moderna. Ora, se como assistimos atualmente, o exercício da sociologia aceita passivamente critérios de rapidez e de eficacidade imediatas, isso pode roubar-lhe o tempo e a autonomia relativa para o exercício de sua tradição de reflexão crítica. Ela pode correr o risco de se transformar em mera técnica de modernização, alheia a uma das suas grandes contribuições sobre a sociedade moderna: a de revelar que critérios sobre eficacidade nunca são neutros ou naturais como pretende a rígida distinção entre fato e valor, mas vinculam-se à dinâmica aberta e móvel da vida em sociedade.
            É por isso que mantemos o tempo para o conhecimento dessa tradição e dessa contribuição da sociologia clássica; que garantimos ao aprendiz a liberdade de perder tempo para ganhar a utilidade criativa da imaginação sociológica (Wright Mills, 1982).

3- Ensino dos clássicos e binômio moderno ciência/verdade: uma abertura cognitiva para a imaginação sociológica sobre a complexidade entre fato e valor
Mas porque Marx, Durkheim e Weber e não outros?  Particularmente, não acreditamos que a escolha desses autores seja absolutamente necessária ou suficiente, mas que ela é pertinente. De fato, se decidíssemos pelo ensino de todos ou da maioria dos autores envolvidos com a formação da sociologia, poderíamos oferecer um panorama amplo das diversas respostas às suas questões fundadoras, sem, contudo, permitir nenhum aprofundamento sobre essa diversidade. Por isso, consideramos a seleção de alguns fundadores como uma limitação pertinente e que, a escolha dos três autores acima citados permite ao professor trabalhar, com o cuidado exigido, as três características perenes da sociologia: a de manter uma relação problemática com as ciências da natureza; a de ser teórica e metodologicamente plural; a de ser uma ciência (crítica) da modernidade.
            E para entender isso, voltemos a falar do segundo binômio crucial tanto para o processo de modernização quanto para o da formação da sociologia: ciência/verdade. Já afirmamos várias vezes nestas páginas que, a ciência que se construíra sob o pressuposto da objetividade e da ordem sistêmica do real e, da capacidade da razão para decifrar e controlar o real, tinha como finalidade a de ser útil para a construção de um mundo de acordo com a vontade livre do homem moderno. Fundamentando-se numa oposição ao mesmo tempo rígida e paradoxal entre fato e valor, esse modelo de ciência tendia a excluir a sociedade dos fatos a serem explicados e controlados pela ciência. Sendo assim, havia uma demanda implícita àqueles que queriam estabelecer uma ciência do social: uma tomada de posição epistemológica a respeito dessa oposição e um modelo teórico-metodológico coerente com sua posição.
Neste sentido, a pertinência da seleção de Marx, Durkheim e Weber encontra-se em primeiro lugar na diversidade clara entre seus modelos teórico-metodológicos, ou seja, no modo particular pelo qual cada um deles enfrentou a tarefa de inserir a realidade social na ciência. Diversidade, aliás, que é a grande razão pela qual esses autores tornaram-se clássicos: construtores de modelos teórico-metodológicos tão ambiciosos quanto diferentes entre si, não se encontra intelectual desse período cuja obra marcou tanto quanto a deles, a sociologia futura.
      Ora, a tensão entre fato e valor, entre a “verdade” e a “mentira” sobre as coisas naturais ou sociais, é mais ou menos estrangeira ao que os indivíduos modernos compreendem como ciência, já que a pretensão desta enquanto observação, explicação e controle objetivo e neutro dos fatos, ainda impregna nossa socialização desde a escolaridade infantil até a entrada nas faculdades, apesar dos embates dentro e fora do campo científico sobre essa pretensão, ao longo do século XX e início do XXI. Melhor dizendo, aprendemos desde cedo a considerar o conhecimento científico como algo absolutamente distinto dos valores, como conhecimento cuja validade se estabelece por demonstração prática e objetiva, como domínio da razão e do experimento a serviço do progresso e contra preconceitos de diferentes teores – religiosos, morais, sociais, políticos etc.
De tal sorte que a diversidade mesma entre os clássicos já põe em questão as noções naturalizadas sobre a distinção fato/valor com as quais os estudantes entram normalmente na universidade, pois que cada um encontrou uma “verdade” factual diferente. Sob a condição de serem abordados de forma comparativa, contextualizada e dialógica, a diversidade entre esses autores pode atordoar o aprendiz de sociologia através da revelação do complexo laço entre fato e valor que fundamenta a disciplina que ele elegeu ou resignou-se a seguir. Trata-se de um atordoamento potencialmente criativo, à medida que ele produz uma segunda abertura do aprendiz sobre o mundo: uma abertura da imaginação e da racionalidade para o caráter plural e polêmico da realidade e do conhecimento sociais(Berger/Luckmann, 1990) ou, em outros termos, uma abertura cognitiva sobre a sociededade (a moderna) e o tipo de conhecimento (o científico) que os cerca.

BIBLIOGRAFIA CITADA OU INDICADA

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BERGER, P./LUCKMANN, T. A construção social da realidade, Petropolis : Vozes, 1990
BOURDIEU, P.          O Poder simbólico, Lisboa : Difel, 1989.
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DURKHEIM, E.          A ciência social e a ação, (org. J.C. Filloux) São Paulo: Difusão editorial, 1975.
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WEBER, M.    A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Livraria Pioneira Editora: 1994.
__________  Metodologia das Ciências Sociais (Parte 1 e Parte 2), Campinas : Cortez, 1992.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Concurso pra Professor Adjunto no Departamento de Ciências Sociais (2 vagas)


O edital abaixo trata da abertura de 2 vagas no DCS da UFPE, na área de Sociologia Geral. A íntegra do texto abaixo pode ser encontrado na página da Universidade Federal de Pernambuco.

"EDITAL nº 12, de 12 de março de 2012, publicado no Diário Oficial da União nº 50, de 13 de março de 2012.

CONCURSOS PÚBLICOS PARA DOCENTES DO MAGISTÉRIO SUPERIOR

O Vice-Reitor Substituto no Exercício da Reitoria da Universidade Federal de Pernambuco, com fundamento nos Art. 12, § 2º, do Decreto no 94.664/1987, nos Artigos 100 a 102 e 104 a 121 do Regimento Geral da UFPE, no Decreto Presidencial n° 6.097 de 24 de abril de 2007, na Portaria Normativa Interministerial n° 22 de 30 de abril de 2007, publicada no D.O.U. n° 83 de 02 de maio de 2007, do Ministério da Educação e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no Decreto Presidencial n° 7.485 de 18 de maio de 2011 e, no Decreto Presidencial n° 6.944 de 21 de agosto de 2009, publicado no D.O.U n° 161 de 24 de agosto de 2009, torna público que estão abertas as inscrições para Concursos Públicos de Provas e Títulos, paraprovimento de cargos docentes da Carreira do Magistério Superior -Professor Adjunto e Professor Assistente."
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quinta-feira, 15 de março de 2012

A razão dos alemães

Niklas Luhmann

Por Edilene Leal - doutoranda da UFS


O problema

A relação entre racionalidade e modernidade sempre manteve um status privilegiado entre os principais intérpretes da sociedade moderna, particularmente entre os alemães. De Weber a Habermas, a razão oferece (e assim deve ser) os substratos fundamentais para a configuração de todo aparato social. Luhmann, entretanto, inaugura uma teoria radicalmente diferenciada dessa relação na medida em que faz desaparecer os seres humanos e sua racionalidade do lado da observação (forma) no qual se encontram os sistemas científicos, ou seja, nos sistemas societários; o outro lado permanece, sob essa perspectiva, totalmente inacessível ao cientista social. Por isso, afirma que: “Cruzar a fronteira até o outro lado da forma se considera ‘cinismo’” (luhmann, 2007:132). Se comparado a outros pensadores como Weber, Adorno e Hokheimer, Habermas teria esse cinismo ainda mais agravado uma vez que, em pleno “fins do século XX, [pretendeu sustentar] a tese de que a teoria da sociedade e a teoria da racionalidade se condicionam mutuamente” (Idem, p.133). A tese aqui em tela é aquela segundo a qual a modernidade é produto evolutivo da supressão da racionalidade e da moral tradicionais de estrutura conteudística e hierárquica, e em seu lugar emergiu uma ética racional fundada em procedimentos despojados de valoração e de interesses. Porém, é exatamente nesse ponto (a teoria da modernidade e da racionalidade) a partir do qual Luhmann e Habermas mais se afastam que eles mais se aproximam, pois também Luhmann reclama uma estrutura procedimental para manter a diferença entre os sistemas e seu entorno (terreno das lutas culturais e dos conflitos políticos). Isto é, ambos acreditam e efetivamente desejam, apesar das premissas teóricas antagônicas, a configuração de uma super-sociedade mundial, de base amoral e pós-convencional, dando as coordenadas para o resto do mundo.

Racionalidade e Modernidade

No âmbito da sociologia, as teorias sobre a modernidade em geral partem da premissa weberiana de que sua característica predominante é o paradoxo entre a racionalidade de meios/fins e a racionalidade de valores. O primeiro tipo de racionalidade seria responsável pela condução das ordens sociais (Estado, ciência, burocracia, etc.) as quais se tornaram plenamente desenvolvidas nos tempos modernos, mas, à custa da perda de significado dos valores políticos, culturais e éticos cuja atuação limitar-se-ia à esfera da subjetividade. Em vista dessa situação, os autores – Weber, Adorno, Horkheimer – concluíram pelo domínio inexorável da racionalidade instrumental contra o qual não existiriam possibilidades efetivas de saída. Habermas, no entanto, recusa essa compreensão e pretende recompor o quadro da racionalidade valorativa moderna sob as bases de uma ação comunicativa que se mantém apartada da racionalidade dos sistemas sociais. Nesse caso, leva ao extremo a bifurcação da racionalidade que ele mesmo critica em Weber, uma vez que acredita que o principal problema da modernidade atual seria a expansão da racionalidade técnica sobre a racionalidade comunicativa, fenômeno que ele denomina colonização do mundo da vida. Assim Habermas defenderia uma “pureza” da razão que já havia sido perdida pelas análises de Weber, a partir da qual seria possível recuperar o quadro dos valores modernos ocidentais tornando-os efetivamente válidos paras todos os cantos do mundo. Habermas, portanto, apresenta claramente um projeto normativo para as sociedades modernas fundado nos valores ocidentais, segundo ele, valores duramente conquistados. O que ele faz com a racionalidade sistêmica? Acredita que é possível cuidar para mantê-la apartada do andamento produtivo dos consensos comunicativos.

Esses autores - Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas -, caracterizam-se por uma singular perspicácia analítica que o fizeram registrar, repetidamente, que a racionalidade moderna produz discursos falsos ou enganadores os quais resultaram em metanarrativas, em projetos totalitários, em defesa de verdades absolutas. Entretanto, em todos eles percebemos a formulação, de maneira sub-reptícia ou mesmo claramente, de análises que recaem nesses discursos normativos. Pois, quando Weber concluiu que o processo de racionalização tornou-se dominante e refratário a mudanças no seu curso de expansão técnica ou quando Adorno e Hokheimer afirmam que vivemos sob a égide de um mundo administrado ou ainda quando Habermas afirma a existência da separação entre a lógica comunicativa e a sistemática, apontando para um o resguardo universal de consensos racionais; de forma semelhante, excedem seus próprios domínios epistemológicos e nos deixam tomar suas preferências analíticas como resultados desinteressados. A principal motivação para isso é o descompasso entre a análise da sociedade tal como é e determinado ideal de como deveria ser a sociedade.

A crítica desconstrutivista e seus limites

Em tempos mais atuais, o processo crítico se esgarça em torno dessas recaídas nas metafísicas da totalidade e da absolutização valorativa. Destacamos a desconstrução derridariana da racionalidade moderna, constituída por uma indiscutível consistência crítica. Porém, se a desconstrução como método cumpre, em primeira instância, a função a que se propõe, isto é, evidenciar o aspecto eminentemente construído dos conceitos, em segunda instância, cria outras dificuldades porque esbarra em problemas muito semelhantes, embora através de um percurso oposto, àquelas produzidas pela vertente de pensamento que se decide por um mundo em que a racionalidade técnica define os parâmetros da vida contemporânea. Pois, um mundo governado, prioritariamente, pela técnica é um mundo governado por ninguém, cujas referências valorativas comuns perdem, em grande medida, seu sentido, para o qual a “condução da vida”, como já admoestava Weber, cabe a cada um em sua intimidade. Ora, este também pode ser e, inevitavelmente seria, um mundo plenamente desconstruído de suas metafísicas e de seus encargos político-valorativos, desprovido de qualquer fundamentação racional para orientação de condutas. Quando se opera com a desconstrução, a pura contingência acaba atingindo o lugar antes reservado à racionalidade pela modernidade, de forma que o mesmo vazio ético vislumbrado por Hannah Arendt na autodefesa de Eichmann – segundo a qual era apenas um burocrata exercendo sua função, portanto, incapaz de ser responsabilizado por seus atos – comparece no “paraíso” da plena relativização teórica e prática do mundo.

Dessa maneira, substituir a racionalidade pela desconstrução, relativização, construção ou qualquer outra denominação semelhante significou, por um lado, a evidência das visões unilaterais do mundo, mas, por outro lado, também significou o impedimento de que as múltiplas visões concorrentes fossem criticadas. Essa é, provavelmente, uma das razões para falarmos, ainda hoje, sobre o avanço indomável da racionalidade técnica à custa de um menor desempenho da racionalidade valorativa, como se a sociedade pudesse constituir-se independentemente de fatores culturais gerais, da partilha de um núcleo duro de valores, de relações intersubjetivas. A afirmação de que a técnica é a característica preponderante nas sociedades atuais não vem acompanhada das perguntas de quem (grupos ou indivíduos) ou o que (instituições) conduzem o domínio da técnica. Nesse sentido, Luhmann é o autor que leva às últimas consequências essa visão desencarnada da racionalidade técnica, pois lembra aos autores que desenvolveram essa dicotomia entre racionalidade técnica e valorativa, de Weber a Habermas, que o uso cada vez mais efetivo e ampliado da “forma” técnica nas sociedades diferenciadas nada tem a ver com o caráter racional dessas sociedades. Pois, é apenas uma instalação e, enquanto tal encontra-se fora da forma racionalidade que mobiliza outros parâmetros distintivos. Ou seja, a técnica é apenas meio, são os homens, sendo racionais ou irracionais, orientando-se ou não por valores, que dão sentido (fim) à instalação técnica.

Luhmann e a perspectiva da diferença
Ao que parece, a teoria dos sistemas de Luhmann também retoma o dualismo (racionalidade valorativa/racionalidade instrumental) de Max Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas, uma vez que parte da relação entre sistema que corresponderia à racionalidade instrumental e o entorno do sistema, o qual corresponderia à racionalidade referente a valores. Luhmann, todavia, faz mais do que manter essa diferença: vale-se da teoria da diferença entre sistema/entorno para neutralizar o entorno, isto é, com suas opiniões múltiplas, seus sentimentos, seus desejos, com sua autonomia individual, com a escolha de seus candidatos, etc. Se, aparentemente, podemos ficar tranquilos com o fato de que a racionalidade sistêmica não poderá dominar o entorno, não se pode deixar de considerar o esvaziamento de noções e práticas fundamentais das sociedades atuais: a prática do amor erótico é mera internalização de códigos pelos amantes, a qual promove o florescer do sentimento do amor. Tanto é assim que, segundo Luhmann, as mulheres não devem ler textos literários, porque de alguma maneira se imunizariamm das técnicas de sedução de seus amantes. Na esfera do subsistema político, a legitimidade transmuta-se em “operador sistêmico”, com a função de impedir que as contingências ou mudanças oriundas do entorno invadam seu sistema. Dessa forma, a legitimidade ocorre como mera “ilusão” funcionalmente necessária para o sistema político, já que se geram expectativas de comportamentos diferenciados cujo processo de decisão já antecipou esses comportamentos na legitimidade pelo procedimento.

A racionalidade sistêmica em Luhmann consiste no fato de que as sociedades, historicamente, criaram códigos, que, por sua vez, são cada vez mais necessários nas sociedades diferenciadas, como meio de organizar, minimamente, as relações sociais e suspender o estado permanente de conflito entre possibilidades variadas. Se os esforços na contenção do domínio do conflito são, nesse sentido, incomensuráveis e inesgotáveis, sempre pode haver a possibilidade de que o turbilhão valorativo constitutivo do entorno, no qual existem os seres humanos, possa irromper e controlar os subsistemas. Isto é, o receio de Luhmann é contrário ao receio de Habermas: enquanto este receava que os sistemas societários invadissem o mundo da vida, aquele temia que valores específicos pudessem invadir um subsistema ou subsistemas e impor a eles seus próprios interesses, minando o acordo, estruturalmente conquistado, de impermeabilidade dos subsistemas e dos seus códigos: diferenciados e fechados em si mesmos.

Ora, se todo “equipamento” da “engenharia social” de Luhmann é despojado de valoração – racionalidade, técnica, comunicação, códigos –, tanto do ponto de vista metateórico como pragmático, numa situação de invasão dos subsistemas pelo mundo ambiente, então quaisquer valores grupais ou individuais podem preencher o vazio valorativo dos subsistemas. Ainda mais: dado que tudo é sociedade e que esta estrutura-se, autopoieticamente, qualquer desestruturação em um subsistema corre o risco de afetar todo o resto.

Sendo assim, é preciso perguntar se tal situação é possível: a existência de sociedades “perfeitamente” despojadas de valoração de qualquer espécie, sem que interesses individuais ou de grupos conduzam suas ações, nas quais os processos políticos/culturais atuem mediante técnicas e procedimentos, cuja principal preocupação interna seja a manutenção de sua diferença caracterizadora? Para Luhmann, essa seria a descrição das sociedades modernas atuais. E de qualquer maneira, essa seria uma situação também “ideal”, ou seja, existe em Luhmann uma consideração positiva à medida que o ponto de partida de suas investigações como observador de segunda ordem é o ponto de partida da racionalidade sistêmica. Mas é bom lembrar que esses sistemas societários caracterizam um dos lados da diferença entre sistema/entorno, ou seja, o mundo dos valores concorrentes, das disputas políticas, das diferenças culturais caracteriza o outro lado da diferença e que, primordialmente, esses sistemas se autoconstituem num processo permanente de absorção e rejeição (acoplamento/desacoplamento) de elementos (reivindicações, disputas, exigências, etc.) oriundos da sociedade.

Dessa maneira, se considerarmos que Luhmann acertou na sua “descrição” dessa “Sociedade Mundial” atual – já que supôs ser positiva a confluência de sociedades em uma unidade sistêmica mundial –, o prognóstico de Weber, Adorno, Horkheimer atualizou-se em grande parte, excetuando a hipótese em comum (nos três últimos), segundo a qual a racionalidade técnica não se efetivaria em um total vazio valorativo, ao contrário, seria conduzida por uma encarniçada luta pelo poder e pela dominação dos recursos econômicos e culturais. Poderíamos supor que Luhmann se aproximaria mais de Habermas, ainda que por meio de estratégias teóricas diferentes, uma vez que ambos “anseiam” pelo desaparecimento de interesses, valores, sentimentos, como condutores das ações intersubjetivas.

Por fim, acreditamos que essa hipótese – recorrentemente criticada, reclamada ou negada pelos autores da modernidade e da pós-modernidade –, a mais acertada para pensar as sociedades hodiernas. Pois, se de fato vivemos sob o domínio da racionalidade técnica, este domínio atualiza-se por meio de lutas culturais, disputas de valores, divergências ou consensos políticos. Ora, esses modos de atualização, de qualquer maneira, não decorrem da essência da racionalidade valorativa? Não estaríamos, também, nos movendo no domínio dos valores políticos, sociais, culturais e estéticos, à medida que ampliamos o alcance e a rede de relações do projeto civilizatório em curso? Por fim, acreditamos que, se determinados valores – antes considerados fundamentais e universais pelo pensamento moderno – perderam grande parte de sua força nos tempos atuais, não significa dizer que vivemos sob o vazio valorativo da racionalidade da técnica. Se, porventura, permanecem as lutas cotidianas, os dissensos, as diferenças é porque valores concorrentes disputam, entre si, sua vez de tornarem-se consenso e de espalharem-se pelo mundo humano.

Referências

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