quarta-feira, 21 de março de 2012

Por que ensinar os clássicos ou: tradição, modernidade e ciência, substantivos perenes da sociologia



Obs.: a versão original e integral deste texto foi publicada em: Caderno de Textos em Ciências Sociais, vol.VIII, fasc. 5. São Cristóvão: Editora UFS, 2006.

                           Tâmara de Oliveira
                                                                                                         
A mentira e a verdade/ São as donas da razão/ Brigam na maternidade/ Quando chega Salomão/ A razão pela metade/ Vai cortar com o seu facão/ Mas vendo que a mentira chora e pede piedade/ Dá-lhe a razão (...). A mentira, me acredite/ Com a verdade vai casar/ Se disfarça de palpite/ Pra verdade enfeitiçar/ Todo mundo quer convite/ A capela vai rachar/ Ao ver a verdade se mordendo de apetite/ Aos pés do altar (...)” – Edu Lobo/Chico Buarque, Verdadeira Embolada, em: O Corsário do Rei

“(...) O mundo vai girando cada vez mais veloz/A gente espera do mundo e o mundo espera de nós/ Um pouco mais de paciência/ Será que é o tempo que lhe falta pra perceber/ Será que temos esse tempo pra perder/ E quem quer saber (...)” – Lenine, Paciência em: Na Pressão

1- Problemas sociais, tempo, ciência e verdade: sociologia, uma ciência moderna, problemática e plural.
Por ofício, por vocação, por função ou por contrato de trabalho, temos a tarefa de iniciar os estudantes de sociologia em três autores clássicos do pensamento sociológico – Karl Marx (1818/1883), Émile Durkheim (1858/1917) e Max Weber (1864/1920). Contudo, eles não são os únicos fundadores da disciplina e, um deles (Marx), construiu na verdade uma teoria social à margem da consolidação histórico-institucional da sociologia. Além disso, estamos no século XXI e na América Latina, enquanto que as sociologias desses três europeus referiam-se ao século XIX ou à virada do século XIX para o XX.
Por que então promover a iniciação sociológica justamente com esses três autores tão distantes dos estudantes contemporâneos no tempo e no espaço? Esta questão pode angustiar um professor de Sociologia I a cada semestre, sobretudo nas primeiras aulas, quando o olhar de muitos estudantes não dissimula o enfado exemplar da juventude diante de tudo que lhe pareça velho, morto e enterrado; em uma palavra, ultrapassado. Ela pode também angustiar os próprios estudantes, pelo menos aqueles mais curiosos e interessados pela formação sociológica: há alguma validade científica em teorias e métodos do passado, se a sociedade e a sociologia do presente mudaram tanto?   
Passado/presente, ciência/verdade: eis aí binômios cruciais do longo processo de formação da sociedade moderna, cujas relações complexas e diversas oferecem boas justificativas para selecionar e oferecer as sociologias de Marx, Durkheim e Weber como rito de iniciação aos jovens estudantes.
          O binômio passado/presente pode ser considerado elemento fundador da modernidade, pois que a oposição rígida entre “o que foi” e “o que é” está no âmago da identificação da modernidade como algo distinto da tradição. Melhor dizendo, a sociedade moderna se construiu enquanto realidade pretensamente diferente e/ou oposta ao que ela própria definiu como sociedade tradicional. O sentido da palavra moderno é diretamente referido ao que é presente, ao agora, ao hoje, enquanto que a palavra tradição tem um sentido referido a um passado que se repete, a um hoje que é uma reprodução do ontem.
       Quer dizer que enquanto a sociedade tradicional fixar-se-ia no passado, a sociedade moderna construir-se-ia no presente voltando-se para o futuro, ou seja, a sociedade moderna seria mutável no tempo. Fechada nela mesma, a sociedade tradicional possuiria “verdades” valorativas, passadas de geração a geração pela autoridade do costume e da religião; “verdades”, cuja origem e finalidade não estariam nas necessidades ou capacidades dos seres humanos concretos, mas em forças transcendentais (divinas e/ou diabólicas, melhor dizendo metafísicas) que estabeleceriam a realidade e os fins da natureza e da humanidade. Aberta e mutável, a sociedade moderna possuiria “verdades” factual-racionais, construídas de geração a geração pelo uso das capacidades humanas de observação e razão, quer dizer sobre a apreensão e explicação da realidade a partir do que ela mesma oferece aos sentidos e à racionalidade humanos e, cujo sentido seria o do conhecimento intelectual e prático da realidade para a satisfação das necessidades dos homens. Necessidades estas que seriam também mutáveis, já que o desenvolvimento do conhecimento intelectual e prático da realidade abriria novas e constantes possibilidades para o homem. Em outras palavras, movimentando-se do presente para o futuro, a sociedade moderna seria a sociedade de um “eterno progresso”.                 
         É por isso que o binômio ciência/verdade é um elemento fundador da modernidade em associação íntima com o binômio passado/presente. Mas, neste caso, trata-se de um binômio cujos termos são complementares –  ao contrário do outro. A ciência apresenta-se como um instrumento básico para a ruptura com o passado, como meio fundamental para fazer do presente a eterna construção do futuro; em suma, ela teria como pressuposto o de ser útil ao progresso da humanidade. Assim, entre a ciência e as necessidades modernas estabelece-se um vínculo íntimo e ideal de meio e fim, que tem sua fonte histórica no antropocentrismo da Europa renascentista (século XVI). Este vínculo significa que a ciência é parte constituinte da oposição tradição/modernidade, que ela se define como parte ativa desse presente aberto ao futuro que caracterizaria a sociedade moderna.
Além disso, como sugerimos na página anterior, quando se fala em ciência não se está falando diretamente em tipos diferentes de sociedade; está-se falando diretamente em tipos diferentes de conhecimento e de prática sobre a realidade – quer seja esta natural ou humana. De tal sorte que a oposição passado/presente, aquela que distingue uma sociedade centrada no passado de outra centrada no presente/futuro, aquela que provoca um olhar de enfado ou de desconfiança de inutilidade em relação ao “que já foi”, sobrepõe-se, quando se trata do binômio ciência/verdade, a uma outra oposição: aquela entre fato e valor.
               A ciência impôs-se, primeiramente, como conhecimento “verdadeiro” da realidade natural. Eliminando a mediação de potências transcendentais entre o sujeito do conhecimento e o objeto cognoscível, a ciência que se afirmava entre os séculos XVII e XVIII possuía os seus próprios pressupostos: o de que a realidade é sistêmica (quer dizer que ela é um todo composto de partes em interrelação), ordenada (quer dizer que as relações entre suas partes são regulares) e objetiva (quer dizer que suas regularidades são passíveis de observação e reflexão neutras, porque elas são exteriores à vontade e aos valores do sujeito que as observa). Assim, enquanto realidade objetiva, as relações regulares dos fatos naturais são observadas e apreendidas enquanto leis de ordenamento e funcionamento do real, com o fim de serem controladas pela razão humana e utilizadas para a satisfação das necessidades e do progresso humano.
       Realidade objetiva/necessidades humanas: eis aí um vínculo substancial, mas complicado, porque ele mal dissimula o paradoxo entre um modelo de ciência fundado na objetividade dos fatos, quer dizer na suposição da independência dos fatos em relação ao homem, enquanto que as necessidades desse mesmo homem são definidas na modernidade a partir da sua suposta vontade livre. Com efeito, a ruptura com a tradição significa também o ideal de passagem de uma sociedade ordenada por forças exteriores ao homem (a transcendência, a autoridade dos costumes ou a força da natureza) para outra ordenada pela razão humana; este ideal é um dos sentidos fundamentais do antropocentrismo que marca o processo de modernização. Em outras palavras, a ciência não pretende apenas conhecer a “verdade” da natureza, mas dominá-la e utilizá-la para a construção de um mundo que liberte a vontade do homem das amarras religiosas/societais e naturais, características das sociedades tradicionais. Ora, vontade e ideal não seriam atributos de fatos objetivos, mas, de valores subjetivos. A ciência estaria então no domínio do ser enquanto que a vontade estaria no domínio do querer ou “dever ser”.                           
       As revoluções políticas e a industrial entre o século XVIII e o começo do XIX, a urbanização crescente das sociedades europeias e norte-americana, pareciam, contudo, confirmar a ruptura com a tradição e a consolidação de uma sociedade do progresso através da administração científica das coisas e dos homens. Mas ao longo do século XIX, o paradoxo entre fato e valor, este componente substancial do processo de modernização, começa a se refletir em problemas concretos dos mais diferentes tipos: a instabilidade política, as crises econômicas, o desemprego, a persistência e mesmo o aumento da miséria, a contestação, a organização e a repressão da classe trabalhadora, as consequências perturbadoras da mudança de um padrão holista para um padrão individualista de relações sociais, o surgimento de pensamentos e movimentos sociais pregando revoluções radicais para o alcance da liberdade e igualdade prometidas e não cumpridas pela modernidade, o surgimento de um pensamento de reação contra a modernidade (marcado por uma nostalgia do passado que contamina mesmo intelectuais comprometidos com os ideais modernos), são algumas das expressões desses problemas.
          Atravessada por representações, práticas, desigualdades, interesses divergentes, conflitos e instabilidade histórica, os problemas sociais não pareciam atender aos critérios supostamente imprescindíveis para que um fenômeno fosse passível de observação e reflexão científicas: objetividade, ordenação e sistematicidade. Entretanto, a finalidade última de todo o processo de ruptura com o passado tradicional era exatamente essa realidade: a vida do homem em sociedade. Assim, por um lado os problemas sociais estimulavam a crítica de uma realidade que parecia escapar das possibilidades científicas de realização do progresso humano. Mas por outro lado, o modelo vigente de ciência, que supunha a inevitabilidade do progresso e da liberdade humana através da observação exterior e neutra da natureza, impunha uma atitude a-científica diante da realidade social: fato é diferente de valor; o domínio da ciência corresponde aos fatos; a vida em sociedade não corresponde ao domínio da ciência, mas ela é, sobretudo, um conjunto de amarras ou de preconceitos que dificultam a emancipação do homem.  
            Apesar disso, poder-se-ia perguntar: se o progresso científico e tecnológico não estavam diminuindo nem os conflitos nem as desigualdades sociais, a que e a quem serviu a ruptura com o passado? Seria a sociedade apenas uma realidade de valores subjetivos, múltiplos, potencialmente conflituosos e instáveis, ou ela possuiria dimensões sistêmicas e ordenadas passíveis de observação neutra – quer dizer, independente dos valores do observador? Neste sentido, a própria evidência da existência de sociedades diferentes no espaço ou no tempo (as do Novo Mundo, as da África, as asiáticas, a europeia da Idade Média e a da Antiguidade etc) não poderia indicar que as sociedades evoluem segundo leis determinadas, assim como a biologia parecia ter verificado que ocorria com as espécies animais e vegetais?
Em suma, os problemas sociais do século XIX e o modelo vigente de ciência colocavam uma série de questões sobre a modernidade: a) por que a ruptura com o passado tradicional estava aquem do que se esperava de uma sociedade aberta para o futuro? b) como resolver os problemas que a ruptura tradição/modernidade pôs à vida social humana? c) a realidade social pode ser estudada cientificamente e/ou segundo os mesmos pressupostos teóricos e metodológicos das ciências da natureza?     
         Essa série de questões estiveram no âmago da formação de uma ciência da sociedade no perturbado século XIX. Questões que levaram homens desse século a pensar no passado, apesar de viverem numa sociedade aberta ao futuro e em pretensa ruptura rígida com a tradição; questões que punham em exame a infalibilidade e a utilidade do modelo dominante de ciência. Questões enfim que engendraram a sociologia como ciência da modernidade – pois os problemas humanos e sociais imbuídos no processo de modernização foram a fonte mesma do surgimento de um olhar sociológico sobre o homem. Que desenvolveram a sociologia como uma ciência em relação problemática com as ciências da natureza – não só porque estas tinham (e têm) o domínio do que se entendia (e se entende) como ciência, mas também porque seu modelo de conhecimento excluía aparentemente a vida social dos objetos científicos. Que fizeram da sociologia uma ciência inevitavelmente plural - posto que, desde o início, as respostas a essas questões foram diversas.
          Considerando que o estudante de sociologia do Brasil do século XXI é membro de uma sociedade que se pretende moderna, isso quer dizer que ele entra numa Universidade para iniciar-se numa ciência. Sendo assim, não há nada de extraordinário em que ele encare o ensino dos três clássicos citados com enfado ou com desconfiança quanto à validade de tal aprendizado para a sua formação e seu futuro exercício profissional. Com efeito, enquanto partícipes de uma sociedade centrada no eixo presente/futuro e na oposição rígida entre passado e presente, a volta ao passado pode sempre parecer uma inútil perda de tempo. Entretanto, o vínculo genealógico e problemático entre os binômios passado/presente, ciência/verdade e a formação de uma ciência da sociedade no século XIX justificam o ensino dos clássicos aos aprendizes de sociologia.

2- Ensino dos clássicos e binômio moderno passado/presente: uma abertura para a imaginação sociológica sobre o tempo
       Quanto ao primeiro binômio, porque as motivações sociais concretas que os levaram a desenvolver teorias sociais e/ou sociológicas implicaram no levantamento de problemas sobre as relações histórico-sociais entre o passado e o presente que são particularmente importantes para estudantes que vivem num modelo societal centrado no presente/futuro. Afinal de contas, refletir sobre o caráter e o alcance das mudanças espaço-temporais nas sociedades, ou ainda, sobre os problemas e as perspectivas que tais mudanças acarretam em diferentes sociedades concretas, é uma matéria-prima da sociologia que atravessa o tempo e nos reúne a Marx, Durkheim, Weber e a tantos outros que podem entrar no programa de ensino – se há tempo. É também colocar o estudante diante da própria forma moderna de experimentar e viver o tempo, que o senso comum tende a tomar como uma pressão exterior similar à da natureza, mas cujas mudanças históricas indicam que também é uma experiência mediada socialmente.  
        Com efeito, a rígida ruptura com o passado inserida no processo de modernização simplifica a experiência social do tempo, porque ela fundamenta-se no estabelecimento de critérios binários e objetivistas de distinção entre a “tradição” e a “modernidade” que estão longe de corresponder à complexidade das mudanças humanas e sociais no tempo e no espaço. Sob uma abordagem linear e evolucionista da relação passado/presente/futuro, esses critérios de distinção provocam problemas graves, entre os quais: desconsideração das complexas imbricações entre “o velho” e o “novo” que marcam as sociedades em qualquer tempo ou espaço; geração de uma expectativa de descontinuidade radical com a experiência social passada, potencialmente desastrosa na construção social da realidade, pois que o acúmulo de conhecimento e de práticas sociais anteriores são uma fonte antropologicamente criativa para a experiência social do presente; aceleração radical das práticas e das relações sociais, manifestada em valores como o de “ganhar tempo”  e de “pensar no futuro”, que retira justamente dos indivíduos o espaço para refletir sobre suas próprias práticas, representações e instituições.
         Sendo assim, oferecer aos aprendizes de sociologia essa espécie de “choque do passado” é possibilitar que eles ponham em questão a forma de pensamento binário e objetivista do tempo que nos tem socializado desde que as pretensões da sociedade moderna assumiram o comando da explicação, da ordenação e da classificação da vida natural e social. Pondo os estudantes em contato com a primeira grande crise da modernidade, crise particularmente significativa para nós porque foi a mãe e a parteira da sociologia, o ensino dos seus pais fundadores permite uma primeira abertura do olhar do aprendiz de sociologia sobre o mundo: uma abertura temporal que reúne o presente e o passado através de questões comuns.
      Tal abertura revela que a tendência que temos em identificar passado a perda de tempo não está na natureza do homem, mas numa construção histórico-social que se centra no eixo presente-futuro. É porque somos socializados dentro de um contexto social que aprendemos a considerar sua específica experiência do tempo como pressão natural e, a consolidação de uma ciência da sociedade na virada do século XIX para o XX, contribuiu para a compreensão desse contexto. De tal sorte que é extremamente importante colocar o aprendiz diante desse procedimento intelectual que é componente substancial do olhar sociológico sobre o mundo: o de desnaturalizar as práticas, as representações e as instituições sociais, desnaturalizando a própria experiência moderna do tempo.
     Esse exercício do procedimento de desnaturalização do social é também útil enquanto experiência cognitiva existencial, porque ela convida o aprendiz à problematização da sua própria experiência com o “tempo virado pressão” da sociedade moderna. Este exercício é ainda mais importante, pois ele se associa a uma característica substancial do aprendizado em sociologia: a de demandar um processo de formação complexo, que  é cada vez mais perturbado pelas pressões sociais e institucionais em torno de rapidez na formação e de utilidade imediata dos projetos profissionais. Em suma, dado o acúmulo de conhecimento que a sociologia possui, já que apesar de existir há menos de dois séculos, ela é também herdeira de um complexo conhecimento filosófico sobre o homem em sociedade, o ensino dos clássicos pode ser um convite ao “pouco mais de paciência” que, segundo os versos de Lenine para Dom Hélder Câmara, “esperamos do mundo e o mundo espera de nós”.
     De fato, a disseminação de estudantes e profissionais cujo sentido da reflexão e da pesquisa é constantemente atropelado pela pressão do tempo e, por temas financiáveis pelo mercado público ou privado segundo critérios de eficácia imediata e/ou política, pode romper com o que é uma das tradições sociológicas mais marcantes: a de ser uma ciência crítica da modernidade, cuja trajetória é marcada pela reflexão sobre si mesma em seus laços com a sociedade moderna. Ora, se como assistimos atualmente, o exercício da sociologia aceita passivamente critérios de rapidez e de eficacidade imediatas, isso pode roubar-lhe o tempo e a autonomia relativa para o exercício de sua tradição de reflexão crítica. Ela pode correr o risco de se transformar em mera técnica de modernização, alheia a uma das suas grandes contribuições sobre a sociedade moderna: a de revelar que critérios sobre eficacidade nunca são neutros ou naturais como pretende a rígida distinção entre fato e valor, mas vinculam-se à dinâmica aberta e móvel da vida em sociedade.
            É por isso que mantemos o tempo para o conhecimento dessa tradição e dessa contribuição da sociologia clássica; que garantimos ao aprendiz a liberdade de perder tempo para ganhar a utilidade criativa da imaginação sociológica (Wright Mills, 1982).

3- Ensino dos clássicos e binômio moderno ciência/verdade: uma abertura cognitiva para a imaginação sociológica sobre a complexidade entre fato e valor
Mas porque Marx, Durkheim e Weber e não outros?  Particularmente, não acreditamos que a escolha desses autores seja absolutamente necessária ou suficiente, mas que ela é pertinente. De fato, se decidíssemos pelo ensino de todos ou da maioria dos autores envolvidos com a formação da sociologia, poderíamos oferecer um panorama amplo das diversas respostas às suas questões fundadoras, sem, contudo, permitir nenhum aprofundamento sobre essa diversidade. Por isso, consideramos a seleção de alguns fundadores como uma limitação pertinente e que, a escolha dos três autores acima citados permite ao professor trabalhar, com o cuidado exigido, as três características perenes da sociologia: a de manter uma relação problemática com as ciências da natureza; a de ser teórica e metodologicamente plural; a de ser uma ciência (crítica) da modernidade.
            E para entender isso, voltemos a falar do segundo binômio crucial tanto para o processo de modernização quanto para o da formação da sociologia: ciência/verdade. Já afirmamos várias vezes nestas páginas que, a ciência que se construíra sob o pressuposto da objetividade e da ordem sistêmica do real e, da capacidade da razão para decifrar e controlar o real, tinha como finalidade a de ser útil para a construção de um mundo de acordo com a vontade livre do homem moderno. Fundamentando-se numa oposição ao mesmo tempo rígida e paradoxal entre fato e valor, esse modelo de ciência tendia a excluir a sociedade dos fatos a serem explicados e controlados pela ciência. Sendo assim, havia uma demanda implícita àqueles que queriam estabelecer uma ciência do social: uma tomada de posição epistemológica a respeito dessa oposição e um modelo teórico-metodológico coerente com sua posição.
Neste sentido, a pertinência da seleção de Marx, Durkheim e Weber encontra-se em primeiro lugar na diversidade clara entre seus modelos teórico-metodológicos, ou seja, no modo particular pelo qual cada um deles enfrentou a tarefa de inserir a realidade social na ciência. Diversidade, aliás, que é a grande razão pela qual esses autores tornaram-se clássicos: construtores de modelos teórico-metodológicos tão ambiciosos quanto diferentes entre si, não se encontra intelectual desse período cuja obra marcou tanto quanto a deles, a sociologia futura.
      Ora, a tensão entre fato e valor, entre a “verdade” e a “mentira” sobre as coisas naturais ou sociais, é mais ou menos estrangeira ao que os indivíduos modernos compreendem como ciência, já que a pretensão desta enquanto observação, explicação e controle objetivo e neutro dos fatos, ainda impregna nossa socialização desde a escolaridade infantil até a entrada nas faculdades, apesar dos embates dentro e fora do campo científico sobre essa pretensão, ao longo do século XX e início do XXI. Melhor dizendo, aprendemos desde cedo a considerar o conhecimento científico como algo absolutamente distinto dos valores, como conhecimento cuja validade se estabelece por demonstração prática e objetiva, como domínio da razão e do experimento a serviço do progresso e contra preconceitos de diferentes teores – religiosos, morais, sociais, políticos etc.
De tal sorte que a diversidade mesma entre os clássicos já põe em questão as noções naturalizadas sobre a distinção fato/valor com as quais os estudantes entram normalmente na universidade, pois que cada um encontrou uma “verdade” factual diferente. Sob a condição de serem abordados de forma comparativa, contextualizada e dialógica, a diversidade entre esses autores pode atordoar o aprendiz de sociologia através da revelação do complexo laço entre fato e valor que fundamenta a disciplina que ele elegeu ou resignou-se a seguir. Trata-se de um atordoamento potencialmente criativo, à medida que ele produz uma segunda abertura do aprendiz sobre o mundo: uma abertura da imaginação e da racionalidade para o caráter plural e polêmico da realidade e do conhecimento sociais(Berger/Luckmann, 1990) ou, em outros termos, uma abertura cognitiva sobre a sociededade (a moderna) e o tipo de conhecimento (o científico) que os cerca.

BIBLIOGRAFIA CITADA OU INDICADA

BÉJAR, H.      El ámbito íntimo – Privacidad, individulismo y modernidad, Madrid: alianza editorial S. A., 1990.
BERGER, P./LUCKMANN, T. A construção social da realidade, Petropolis : Vozes, 1990
BOURDIEU, P.          O Poder simbólico, Lisboa : Difel, 1989.
_____________ Coisas ditas, Sao Paulo : Brasiliense, 1994
DUMONT, L. O individualismo – uma perspectiva antropológica da modernidade, Rio de Janeiro : Rocco, 1985
DURKHEIM, E.          A ciência social e a ação, (org. J.C. Filloux) São Paulo: Difusão editorial, 1975.
_____________  A educação moral, Porto: Rés-editora, 1984.
______________ As formas elementares da vida religiosa, São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______________ As regras do método sociológico, São Paulo: Martin Claret, 2002.
GIDDENS, A. Marx, Weber e o desenvolvimento do capitalismo, em: Max Weber & Karl Marx (organizador: René E. Gertz), São Paulo: Editora Hucitec, 1994.          
MARX, K.       A ideologia alemã, São Paulo: Centauro editora, 1984.
_________ Contribuição à crítica da economia política, São Paulo: Martins Fontes, 1983. 
_________ O conceito marxista de homem, (Eric From) Rio de Janeiro: Zahar editores, 1969.
MILLS, W.      A imaginação sociológica, São Paulo: Zahar editores, 1982.
NISBET, R.    La formación del pensamiento sociológico, Buenos Aires : Amorrurtu editores, 1966.
OLIVEIRA, T. de        O individualismo segundo um judeu comedido : a troca do paraíso por harmonias possíveis (sobre a abordagem durkheimiana), dissertação defendida em mestrado em ciências sociais, João Pessoa :  1995.
ROCHLITZ, R. Habermas – L’usage public de la raison, Paris: PUF, 2002.
WEBER, M.    A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Livraria Pioneira Editora: 1994.
__________  Metodologia das Ciências Sociais (Parte 1 e Parte 2), Campinas : Cortez, 1992.

3 comentários:

Anônimo disse...

Há algum tempo venho acompanhando o blog, mas nunca havia comentado. Era um lance mais "vouyeur". Esse texto, no entanto, me tirou dessa posição confortável para vir expressar...hum.. espanto.
Estudando uma universidade "X" no sudeste, espantei com a necessária explicação do "por quê se aprender os clássicos". Explicitei quase involuntariamente "que cazzo é esse? Como isso precisaria de justificativa?".
Numa movimento reflexivo, percebo que nunca sequer havia me questionado se aprender primeiro clássicos e depois contemporâneos era melhor ou o contrário era preferível porque a universidade me ensinou a questionar "se" era preciso estudar os contemporâneos... o binômio passado/ presente da modernidade, tal como remete o texto, tem uma nuance distinta por aqui.
Subitamente se explica para mim o por quê eu visitar tanto esse blog: para entender que cazzo dizem essem esses contemporâneos....

Só me resta agradecê-los por existirem...

Anônimo disse...

Penso que o estudo desses clássicos, Tâmara, nos remete também a uma importante reflexão sobre a mediação entre ciência e mundo da vida, ou entre teoria e praxis, especialmente num contexto de "desarranjo" teorético, de crescente oferta de visões de mundo que aparentam conter apenas implicações lógicas de teorias, como a teoria de auto-organização, a teoria quântica, a teoria da informação, etc. Como nos aponta Hans-Dieter Mutschler em sua "Introdução à Filosofia da Natureza" (Edições Loyola, 2008, p.17): "a cada novo ano produzimos uma infinidade de novos modos teóricos de ver os nexos da natureza, mas quase ninguém se pergunta, uma vez sequer, sobre seu significado. […] É imperativo que tomemos conhecimento desses nexos objetivos; porém, o que fica evidente também é que mesmo um cientista da natureza, de concepções positivistas, não pode deixar de avaliar esses nexos objetivos e integrá-los no círculo hermenêutico de sua autocompreensão." Parabéns pelo texto.

Tâmara disse...

Andrea,
Junto-me a você para agradecer ao Cazzo por existir.

Anônim@,
Obrigada pelos parabéns.

Na verdade, o texto integral foi escrito quando a experiência social do tempo começou a me incomodar como um "fato social total", digamos assim. E, como o objetivo da publicação era ativar um caderno de textos em ciências sociais voltado para a graduação da UFS, tentei elaborá-lo pondo em discussão o que parece óbvio, o ensino dos clássicos, buscando desnaturalizar esse ensino e torná-lo mais imaginativo - no sentido de W. Mills. Meus alunos têm gostado e fico particularmente gratificada por ter provocado esse espanto em Andrea. Abraço.