sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Sujeitos extáticos em Gadamer e Glenn Gould: um exercício em interpretação (quase) selvagem. (Parte 1)


"As Mãos de Glenn Gould". Foto de Paul Rockett, 1956

Por Cynthia Hamlin

De acordo com um ditado chinês, as coisas boas sempre vêm em pares. Frequentemente, tenho a impressão contrária, de que são as coisas ruins que vêm de bolo, mas o fato é que me acostumei a relacionar Gadamer a Glenn Gould. (Para uma série de 3 pequenos posts sobre a relação entre interpretação e verdade com base em Gadamer e Gould, clique aqui, aqui e aqui - mas já aviso de antemão que mudei de ideia sobre o que escrevi por lá!). As razões dessa associação pouco importam – talvez seja apenas uma manifestação particular daquilo que Merton e Barber (2004) chamaram de “serendipicidade” - mas creio que existem boas razões não só para insistir nela, mas para estabelecer um diálogo entre esses dois pensadores da arte da interpretação.  

Num universo hoje considerado hermético e elitista, o da música erudita, poucos alcançaram a projeção do pianista, compositor e intelectual canadense Glenn Gould (1932-1982), cuja popularidade foi diversas vezes comparada à de James Dean. Embora mais conhecido por suas interpretações musicais - particularmente pela forma inovadora como interpretava compositores como Bach, Beethoven e Mozart (de quem não gostava), pela escolha eclética de seu repertório e por suas transcrições para o piano de obras de Wagner, Bizet, Richard Strauss e Webern - Gould foi um escritor prolífico que acreditava que certas ideias “podiam ser melhor desenvolvidas no teclado de uma máquina de escrever do que no de um piano” (Page, 1984: xiv). Para Edward Said (ele próprio um pianista acompanhador talentoso), trata-se não apenas de um virtuoso de capacidade técnica comparável a Horowitz, Barenboim, Pollini e Argerich, mas de um intelectual que refletia intensamente sobre suas próprias práticas, o que possibilitaria incluí-lo em uma tradição crítica que se estende para além do domínio estrito da performance e da exibição em direção a um campo discursivo “característico de intelectuais que usam a linguagem apenas” (Said, 2000: 6).

Além dos inúmeros artigos e das mais de 80 gravações, o legado de Gould inclui uma série de programas de rádio e de televisão que, em seu conjunto, revelam aquilo que o filósofo Geoffrey Payzant (1992: x) denominou de “temas caracteristicamente gouldianos”: a solitude, o êxtase, o concerto como uma espécie de jogo (ou, mais apropriadamente, de esporte sangrento), a não reprodutibilidade das performances, a tecnologia e, eu acrescentaria, a relação entre arte e moral, assim como a importância da negatividade e da dimensão tátil ou corpórea em sua práxis. Talvez à exceção da solitude, todos esses temas estão presentes na hermenêutica de Gadamer que, como Gould, parte de uma crítica a um certo subjetivismo enfatizado pela tradição romântica que deu origem às abordagens interpretativas das ciências sociais. E embora existam muitas discordâncias em relação à forma como os dois lidam com esses temas, particularmente na linguagem empregada, uma tradução aproximada revela uma concordância fundamental: a de que a ação criativa está ligada ao êxtase, um “estar fora de si” que, ao promover um encontro com a alteridade e com a diferença, pode gerar uma mudança em termos de (auto)compreensão.

Para que se possa pensar nesse diálogo para além de uma contribuição em sociologia da música, ou mesmo da cultura, é importante lembrar que a hermenêutica filosófica consiste em uma perspectiva abrangente que se propõe a refletir sobre a forma restrita como a ciência moderna concebe noções como verdade, significado e racionalidade, revelando os limites que essa concepção coloca para a compreensão da existência humana. Trata-se, na verdade, de uma continuação do projeto de crítica da razão iniciado pelo idealismo e pelo romantismo alemão, ainda que pretenda ir além deles. De fato, ao criticar redução da hermenêutica a um método para a apreensão dos significados subjetivos que supostamente estariam na origem dos produtos culturais e dos eventos históricos, Gadamer nos oferece uma ontologia do ser social e uma teoria da compreensão humana que se estende para muito além da compreensão científica. Em termos gerais, sua hermenêutica consiste em uma teoria da “práxis da compreensão” (Gadamer, 2007: 71) cuja importância sociológica pode ser pensada em termos de seus desdobramentos para uma sociologia das práticas sociais, isto é, para aquele conjunto de teorias  que se ocupa de um tipo de conhecimento implícito, tácito ou inconsciente que está na base da organização simbólica da realidade social (Reckwitz, 2002; Vandenberghe, no prelo).

Partindo de uma ontologia heideggeriana, Gadamer concebe o ser humano como um tipo de ser cuja existência é um problema para si, ou seja, um tipo de ser que busca compreender sua própria existência e que, neste processo, se transforma constantemente. A fim de compreendermos as implicações disso, é necessário um pequeno esclarecimento sobre o próprio termo “compreensão” que, em alemão (Verstehen), é utilizado tanto no sentido de uma habilidade prática como de uma habilidade cognitiva. Alguém que compreende algo é alguém versado em alguma coisa, é capaz de reconhecê-la. Pode-se compreender um texto (ou seja, interpretá-lo, perceber conexões, extrair conclusões), o funcionamento de uma máquina (saber como operá-la) ou um ofício (saber desempenhá-lo) e todas essas formas de compreensão são, em última instância, uma forma de autocompreensão, isto é, um “projetar-se sobre suas possibilidades”, um saber como proceder (Gadamer, 2006: 250-51). Isso significa que existe uma fonte de conhecimento do que é ser humano que antecede o conhecimento científico, e o que Gadamer chama de “práxis da compreensão” não pode ser identificado a um método da ciência moderna, cuja noção de prática foi reduzida à de tecnologia e, de experiência, a experimento.

A noção gadameriana de práxis, em seu ideal perfeito, diz respeito ao uso consciente do know-how e do conhecimento humanos orientados para a ação. Seu significado consiste naquilo que desde o século XVIII se conhece como razão prática e a que Aristóteles, em sua ética, se referia como fronese: um tipo de conhecimento prático (em contraposição a teórico), dirigido à situação concreta que, diferentemente do que se conhece como “julgamento”, não busca simplesmente subsumir os casos individuais a categorias universais, mas também submetê-los a um controle moral a fim de que a coisa certa possa resultar. Em outros termos, a racionalidade que caracteriza a fronese não diz respeito à aplicação lógico-dedutiva de uma regra universal a um caso particular, é sempre relativa a um caso concreto, não pode ser ensinada (dado que o caso concreto não pode ser conhecido de antemão) e representa uma atitude moral segundo a qual se distingue entre ações próprias e impróprias de acordo com os valores de uma comunidade (Gadamer, 2006). Neste sentido, ela se contrapõe à racionalidade científica, estando mais próxima à ideia de sabedoria, que é também uma virtude moral e que sempre requer autodeliberação: algo que diz respeito “não apenas à descoberta inteligente e habilidosa dos meios para se alcançar determinadas tarefas, não apenas a uma consciência do que é prático, de como alcançar objetivos incidentais, mas também ao sentido de estabelecer os próprios objetivos e de se responsabilizar por eles” (Gadamer, 1996: 48). Teorizar sobre uma “práxis da compreensão” é, portanto, teorizar sobre o que acontece quando nós sabemos proceder corretamente em uma situação concreta, e a diferença entre essa disposição filosófica e o método científico pode ser melhor entendida quando se tem em mente o tipo de conflito, caracterizado por Max Weber, entre a ciência, que apenas pode estabelecer os meios mais adequados para atingirmos determinados fins, e nossa consciência dos valores, que é, de uma perspectiva científica, uma questão meramente subjetiva, de escolha pessoal.

Saber como proceder em uma situação concreta, compreendê-la, no sentido pleno da palavra (algo sempre incompleto), depende de um tipo de experiência que também não pode ser reduzida à experiência com a qual a ciência se ocupa e que pode ser definida como um estoque de conhecimento experimental apartado da experiência pessoal, que tem sempre um fim definido e cuja validade depende de sua confirmabilidade, portanto, de sua repetibilidade. Gadamer se utiliza de dois termos distintos para falar da experiência que constitui o conhecimento prático que a hermenêutica interpreta: Erlebnis (experiência vivida) e Erfahrung. O que ambas têm em comum é o fato de se referirem à participação ativa em uma situação concreta (sempre singular e, portanto, histórica, não repetível) e de só contarem como experiência quando integradas “na consciência prática de seres humanos ativos” (Gadamer, 1996: 2). Mas é em sua crítica ao idealismo especulativo de Dilthey que a posição de Gadamer em relação ao tipo de experiência que interessa à hermenêutica fica mais clara: o conceito de Erlebnis é claramente associado a um projeto epistemológico segundo o qual o significado diz respeito a uma faculdade ou atitude subjetiva que supostamente embasa a compreensão. Em lugar de focar o objeto experienciado, aquilo que nos é dado diretamente na experiência, o foco incide sobre a experiência conforme autorrefletida pela consciência de um sujeito que, pelo menos desde Descartes, é concebido em termos de uma mente autossuficiente que se relaciona com os objetos do mundo por meio de estados mentais internos que, de alguma forma, representam, mas não dependem desses objetos, garantindo assim que ela funcione como o elemento estável que fundamenta o método (Gadamer, 2000; Dreyfuss, 2004). Ao contrário dessa tradição, Gadamer está interessado na compreensão, e portanto na experiência, como algo que organiza a “subjetividade”, subvertendo suas expectativas - ou, numa linguagem fenomenológica mais adequada ao autor, na compreensão como um modo-de-ser do Dasein que o caracteriza como um ser-em-movimento que nunca é totalmente transparente para si e que, por essa razão, não pode funcionar como fundamento da ideia de certeza que caracteriza o método.

Em Verdade e Método, Gadamer (2006: 341) afirma que “por mais paradoxal que isso possa parecer, o conceito de experiência [Erfahrung] (...)é um dos mais obscuros que nós temos”. Tanto na ciência quanto na vida cotidiana, a experiência só ocorre em observações individuais (neste sentido, ela é sempre Erlebnis) e só é válida enquanto não é contradita por uma nova experiência. Isso aponta para uma abertura fundamental da experiência para novas experiências e essa necessidade de confirmação constante torna a experiência diferente sempre que não há confirmação. Sendo assim, a experiência humana, em seu aspecto geral (enquanto Erfahrung), é sempre um processo, e um processo essencialmente negativo na medida em que ela não pode ser simplesmente descrita em termos da geração contínua de universais típicos. Ao contrário, os universais só são gerados à medida que as generalizações falsas são continuamente refutadas pela experiência, de forma que o que era considerado como típico passa a não ser. É por isso que Gadamer distingue entre dois sentidos de experiência: aquelas que se conformam às nossas expectativas e as confirmam, e as novas experiências, aquelas que ocorrem e que, para ele, constituem as verdadeiras experiências: “apenas algo diferente e inesperado pode dar a alguém que tem experiência uma nova experiência” (Ibid: 348). Essas novas experiências, por seu turno, possibilitam que a consciência que experiencia algo reverta sua direção, voltando-se para si mesma e tornando-se consciente de sua experiência. Neste sentido, a experiência que está na base do conhecimento gera também um autoconhecimento. É isso que caracteriza a experiência hermenêutica, que pode ser então definida como um evento, como algo que nos endereça, promovendo um encontro com a diferença, a alteridade (outra pessoa, outra cultura, outro período histórico, outro horizonte) e, em última análise, com nós mesmos. 

No(s) próximo(s) post(s), falarei sobre a experiência da arte como uma forma privilegiada de experiência hermenêutica e do papel do êxtase neste processo, conforme pensado por Gadamer e por Gould. Sei lá quando. 




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