domingo, 26 de maio de 2013

Cadernos do Sociofilo: entre a sociologia e a filosofia I


Em seu terceiro número, o Cadernos do Sociofilo, uma publicação do Laboratório do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), apresenta uma reflexão sobre as relações entre sociologia e filosofia. Abaixo, reproduzimos a introdução deste número,  de autoria de Frédéric Vandenberghe e Marcos Lacerda. A publicação completa pode ser acessada aqui

O núcleo de pesquisa Sociofilo nasceu em 2008 como um artefato de uma exigência burocrática. O nome, porém, escolhido em analogia com os Cafés Philo que se encontram na França e alhures, foi escolhido com hesitação. Somos sociólogos por vocação. De jeito nenhum queremos estimular a arrogância dos jovens teóricos. Nada pior do que um sociólogo que se acha filósofo! Se pudermos aprender alguma coisa da grande filosofia é a necessidade de praticar a “paciência do conceito”, esta aliança exemplar de rigor, humildade e especulação. Como os filósofos somos “obcecados textuais” (para reciclar uma frase justamente aplicada a Paul Ricoeur). Precisamente porque somos sociólogos por vocação e não filósofos por profissão, defendemos o direito de tratar das questões mais filosóficas dentro da sociologia mesmo. “Entre a sociologia e a filosofia”, tal é o título deste terceiro número dos Cadernos do Sociofilo, mas o que nos interessa, na verdade, é a filosofia dentro da sociologia e a sociologia dentro da filosofia. Precisamos não somente de uma lógica, uma ontologia e uma epistemologia sociológica, mas também de uma ética, uma estética, uma teologia, uma ideologia, uma política e uma pratica própria à sociologia. Da mesma maneira, pensamos que a maior parte da filosofia moral e política contemporânea carecem de uma teoria da sociedade, da intersubjetividade e da interação. No mínimo uma vez na vida e durante um tempo de reflexão intenso,como Descartes, o sociólogo tem que enfrentar as grandes questões filosóficas, metateóricas e metametodológicas que cercam a sociologia. De onde vem esta certeza que a sociedade existe realmente como realidade sui generis e que ela não é uma ficção, uma reificação que transforma um projeto cientifico em objeto auto-consistente? Como sabemos que não estamos sozinhos no mundo (solipsismo) e que podemos ter acesso à mente do outro? Qual é a relação entre o corpo e a mente, a linguagem e o pensamento, a pessoa e a identidade? Como podemos integrar os achados das ciências sociais numa visão complexa da totalidade? Será que a sociologia com sua visão implícita de uma sociedade justa e bem ordenada não é já uma filosofia moral e política que se ignora enquanto tal? Já que não há consenso entre os filósofos, será que na sociologia podemos evitar os debates entre materia- listas e idealistas, racionalistas e empiristas, realistas e nominalistas, universalistas e relativistas, liberais e comunitaristas?

Mesmo que não seja possível responder a estas questões metassociológicas numa pesquisa de campo ou com um questionário, estamos convencidos que a sociologia só pode ganhar se ela se autoriza a pensar sem complexos e sem diletantismo. O que queremos é uma teoria social que dialoga com a filosofia (como é o caso de Anthony Giddens, Randall Collins e Margaret Archer) e de uma filosofia que dialoga com a teoria social (como é o caso de Jürgen Habermas, Alasdair Macintyre e Paul Ricoeur) para tratar das questões fundamentais da disciplina que tem a ver, como a palavra indica, com os fundamentos da sociologia, com os pressupostos que sustentam as suas indagações. Já que há uma sociologia econômica, uma sócio-antropologia, uma sócio-linguistica e mesmo um sociologia clínica, por que recusar a existência de uma sociologia filosófica que investiga reflexivamente e conceitualmente as condições de possibilidade e os limites da sociologia? Se o filósofo ruim é aquele que raciocina no vazio, o bom sociólogo é aquele que pesquisa com consciência e que sabe dos limites da sua própria disciplina. Saber dos limites significa também se dar a liberdade de transgredi-los quando for necessário. Contra os franceses e os americanos que pensam a sociologia contra a filosofia, mas com os alemães, os italianos e os brasileiros recusamos a solução de continuidade entre o conceitual e o empírico, o ideal e o material, o transcendental e o experiencial. Com alguma ironia notamos a volta do recalcado francês na teoria social anglo-saxã e ainda mais nos chamados “estudos” (cultural studies, gender studies, etc.) que se inspiram abertamente na Frenchtheory para propor uma ontologia do presente. Na esteira de Georg Simmel, defendemos uma concepção aberta da sociologia que reconhece a legitimidade de uma sociologia filosófica. De fato, a sociologia é abordada por dois âmbitos filosóficos que transbordam a pesquisa empírica: O primeiro pertence à teoria do conhecimento da disciplina e “abrange as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa concreta que não podem ser apreendidos pela pesquisa, pois constituem sua base”; o segundo pertence à metafísica da pesquisa e “é dirigida as conclusões, conexões, problemas e conceitos que não tem lugar no contexto da experiência e do saber objetivo imediato”.[i] Extrapolando a fala de Simmel, poderíamos dizer que a sociologia não só trata do socius e da sociedade, mas que ela deve também tratar do logos e da razão. É graças a esta conexão com a razão que a sociologia se mantém aberta ao que a funda e ao que a transcende. Neste sentido, a tarefa de uma sociologia filosófica consiste, como diz Habermas, em vigiar e manter em aberto, dentro da ciência, o lugar da razão que não capitula diante da fragmentação acadêmica e mantém a preocupação com a totalidade.[ii]

Será que a sociologia pode ser pensada como um campo de conhecimento distinto tanto das ciências positivas de cunho empírico-descritivo quanto da filosofia “abstrata” de cunho transcendental-normativo? Como campo de conhecimento situado entre um pensamento indutivo e experimentalista, relativo e particular, ou na verdade tratar-se-ia de uma forma de pensamento com pretensão universalista, envolta em quadros dedutivos apriorísticos? Ou uma forma “intermediária”, indecisa, entre o conhecimento regulado empiricamente e as especulações de cunho metafísico? Serão estas as principais questões tratadas neste terceiro número dos Cadernos do Sóciofilo que é também o primeiro que trata da relação entre sociologia e filosofia. Teremos um segundo número em breve. Tínhamos apre- sentado nas outras duas edições, uma abordagem sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea e a sugestão de uma nova dimensão do pensamento sociológico, atravessando os domínios micro e macro sociológico: a dimensão nano. A indagação sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea em “Ainda somos bourdieuseanos” e as reflexões sobre um domínio além e aquém da micro (e, por extensão, da macro) sociologia no caderno sobre a “nanossociologia” conduziam nossas reflexões para o campo do pensamento mais “abstrato” e especulativo. Mas, ao mesmo tempo, nos exigia uma teoria geral da sociedade e a imersão em questões “concretas” da teoria sociológica, e mesmo em algumas das suas discussões mais contemporâneas, nos colocando, em certa medida, problemas e questões que iam muito além da polarização ação e estrutura, ou mesmo, se quisermos, uma sociologia empírica em contraposição a uma sociologia teórica. Neste novo número trataremos do tema espinhoso da relação entre a sociologia e a filosofia e começaremos justamente com um artigo que apresenta um modelo de análise sociológica e filosófica através da tríade metateoria, teoria social e teoria sociológica, escrito pelo sociólogo belga Frédéric Vandenberghe, intitulado Metateoria, teoria social e teoria sociológica.

O texto propõe um duplo movimento: de um lado “universalizar” a perspectiva sociológica, a pensando dentro do quadro da pretensão universalista filosófica; de outro lado, “relativizar” a filosofia, inserindo as suas reflexões e conceitos na dimensão concreta e relativa em que trabalha a sociologia. Neste sentido, não estaríamos nem naquela posição confortável que situa o pensamento filosófico numa condição “insituável”, tampouco estaríamos na posição – não menos confortável - que, sorrateiramente, faz da sociologia a autoridade do saber, na medida em que reduz o conhecimento às determinações sociais, ou sociológicas. Assim, “O movimento duplo de universalização (característico da sociologia filosofante) e de relativização (próprio da filosofia “sociologizante”) corresponde aos dois momentos complementares de uma crítica da razão sociológica que pretende enriquecer a sociologia com uma consciência aguda das suas condições de possibilidade, bem como de seus limites” (Cf. p.16). Tal situação liminar à filosofia sociológica ou à sociologia filosófica permite pensar o fundamento mesmo das ciências humanas e da condição humana na modernidade, sem com isso abandonar as pretensões objetivas da ciência e sistêmicas da razão. Foi por conta disso que obras como as de Karl Mannheim, Talcott Parsons, Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas permanecem ainda hoje relevantes e fundamentais para o campo do pensamento em geral, incluindo aqui a própria filosofia.

Para que seja possível fazer tal movimentação, entre o “universalismo” filosófico e o “relativismo” sociológico é preciso se ater a três movimentos analíticos distintos, divididos da seguinte maneira: a) metateoria; b) teoria social e c) teoria sociológica. No primeiro movimento o autor destaca os pressupostos transcendentais da sociologia e os associa à filosofia, dividindo-os em ontológicas, epistemológicas, metodológicas, normativas e antropológicas. A teoria social se situa entre a metateoria e a teoria sociológica, fazendo a relação entre os pressupostos transcendentais e a análise de uma sociedade realmente existente, através da escolha definida de uma posição metateórica e da tentativa de integrar esta posição a uma teoria geral da sociedade. Isso a permite abranger um amplo leque de questões, tais como “a unidade da sociologia e sua relação com as ciências humanas; o pluralismo de paradigmas e escolas; a natureza e as formas da ação, das instituições e da estrutura social; a relação entre indivíduo e sociedade, agência e estrutura, ordem e conflito; os problemas da sociedade, da globalização e do pós-colonialismo; pós-modernismo, desconstrução, identidade etc”(Cf. 26). Ainda que os temas sejam amplos, a dimensão histórica e as variações históricas são fundamentais para a teoria social e é em relação a estes aspectos que ela se aproxima da teoria sociológica. Como já o dissemos, ela faz uma espécie de mediação entre a metateoria e a teoria sociológica, pois as grandes generalizações da teoria social “são a dobradiça que conecta as abstrações da metateoria às análises sociológicas do passado e do presente”. Por fim, a teoria sociológica tem uma dimensão mais “datada” e está diretamente associada ao advento da “sociedade moderna”, ao surgimento da “modernidade ocidental”, à lógica mesmo do que chamávamos até pouco tempo de “os tempos modernos”. A teoria sociológica deriva dos fenômenos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais da “modernidade”, especialmente as revoluções científicas, industrial e política e, inclusive, podemos pensar numa situação na qual com o “fim” da modernidade, a própria sociologia estaria condenada também. A sociologia e o próprio “humano”, ou melhor dizendo, os pressupostos quase-transcendentais que informam (ou informavam?) a antropologia filosófica.

A tríade complexa sugerida por Vandenberghe se apresenta como uma vigorosa alternativa ao já algo enfadonho debate que reduz o escopo da sociologia à dicotomia “agência” e “estrutura”, ao mesmo tempo em que consegue superar de forma elegante e clara a polarização sociologia empírica e sociologia teórica e até mesmo sociologia e filosofia. No entanto, permanecemos com a polarização “universalismo” e “relativismo”, que chamaremos aqui de aspecto transcendental e as- pectos empíricos da sociologia. É neste âmbito que se situa a reflexão de Daniel Chernilo, sociólogo chileno trabalhando na Universidade de Loughborough no Reino Unido, no segundo artigo dessa revista, “Universalismo: Reflexões sobre os fundamentos filosóficos da sociologia”. Nele, Chernilo se propõe retomar a pretensão universalista e a herança filosófica da sociologia, investigando o passado da sociologia e sua relação com as noções de “crise”, “modernidade” e os “direitos naturais” e, ao mesmo tempo, responder a alguns dos desafios normativos e conceituais da sociologia e da sociedade contemporânea, especialmente temas como o “relativismo”, o “desconstrucionismo”, o “pós-modernismo” e as teorias da “globalização”. Assim, inicialmente, o autor mostra o vínculo entre a noção de crise, o surgimento da sociologia e o problema do universalismo. A retomada da pretensão universalista da sociologia é apresentada através de sua relação com a pretensão universalista da filosofia dos direitos naturais. Esta relação se dá como afinidade eletiva e seletiva. A afinidade eletiva se explica pelo fato de ambas compartilharem a pretensão universalista. A afinidade seletiva pelo fato de que a sociologia “destrancendentaliza” e historiciza as pretensões da filosofia. É neste sentido que podemos dizer que a nascente sociologia é todavia uma forma de filosofia política que não renuncia à pretensão universalista que está o centro de sua própria tradição. Mas já não é filosofia política, pois que é também a nascente ciência empírica do social. O surgimento da sociologia se associa assim com a promessa de romper com os pressupostos metafísicos do direito natural, mantendo o ímpeto e a pretensão universalista da filosofia moral que fundamenta os direitos naturais. A questão do universalismo, portanto, é crucial para o desenvolvimento do projeto sociológico.

Do mesmo modo que em Vandenberghe, Chernilo mostra o caráter ambivalente da sociologia, entre a dimensão empírico-descritiva e a dimensão transcendental-normativa. O nosso próximo autor irá insistir no caráter ambivalente, o apresentando na sua dimensão aporética, realçando assim os seus aspectos mais contestáveis. Intitulado “Discurso sociológico da modernidade”, o artigo de Marcos Lacerda pretende mostrar a relação originária da sociologia com a constituição de “sujeições antropológicas” diretamente associadas à emersão do discurso das “ciências humanas” e do homem como sujeito-objeto do conhecimento, o duplo empírico-transcendental analisado por Foucault em As palavras e as coisas (2002 [1966]). O autor procura fazer uma analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e o conceito de sociedade forjado pelos sociólogos, mostrando como a “sociedade dos sociólogos” é, em verdade, a versão sociológica do homem como duplo empírico-transcendental, sendo a sociedade objeto e pressuposto da análise sociológica, assim como o homem duplo empírico-transcendental, objeto e pressuposto da episteme moderna das ciências humanas. O artigo está dividido em quatro partes: a) A sociologia como discurso, onde se discute o caminho metodológico, se propondo a pensar a sociologia não como ciência, filosofia moral ou campo de conhecimento, mas como “discurso”; b) O homem como duplo empírico-transcendental, no qual se apresenta a constituição dessa “imagem de pensamento”, através, sobretudo, das reflexões de Foucault em “As palavras e as coisas” c) Como é possível a sociedade?, parte do artigo em que o autor discute as diferentes formas como a sociologia forjou o conceito de sociedade, em suas dimensões ontológica, histórica, epistemológica, normativa, lógica e antropológica; e, por fim, d) O social como duplo empírico-transcendental, parte na qual o autor sintetiza o argumento da analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e a definição sociológica de sociedade.

O último artigo destes Cadernos é o de Gabriel Peters, in- titulado “A via mundana para o sublime: preliminares a uma sociologia psicológica do talento e da genialidade”. Nele, Peters apresenta uma instigante análise sobre a questão do “gênio” em suas mais diferentes facetas (artes, esportes, ciências, práticas cotidianas etc.), admitindo de antemão a relativa equivalência de fatores biológicos, psíquicos e sócio-lógicos na sua constituição. Afinal de contas, haveria um fator causal que definiria o gênio como gênio? Seriam os fatores sociais, a coerção estrutural da sociedade, ou a dimensão simbólico-cultural? Conjunto de técnicas aprendidas, capacidade cognitiva inata, transcendência sobre-humana, aquisição de competências contingentes, relação ambiente (físico, social, cultural, político, econômico etc.) e ação/reação de genes etc.? Como se pode ver, há muitas possibilidades e o conjunto de reflexão sobre o tema em algum momento se ancorou em uma delas, ou mesmo construiu combinações e arranjos os mais variados entre elas. Em certa medida, o artigo de Peters se apresenta dessa maneira. Desfilando elegantemente entre uma miríade de autores, tais como Platão, Valéry, Ericson, Musil, Homero, Lahire, Bourdieu e muitos outros mais, o autor sugere como forma de pensar o problema a constituição de uma “sociologia psicológica” ancorada numa perspectiva “nanossociológica”, propondo uma alternativa en- tre abordagens hiper-coletivistas e hiper-individualistas, sem recorrer com isso a argumentos hiperconstrutivistas. Como o leitor poderá perceber, o tema do gênio nos coloca diante de uma escolha fundamental: estamos falando de uma condição “natural” ou “cultural”? “Genética” ou “social”? Peters procura superar o impasse, afirmando que “A aquisição de capacidades supõe capacidades (inatas) de aquisição, embora qualquer fronteira precisa entre inato e adquirido seja explodida diante do fato de que as influências ambientais sobre o modo de expressão do material genético operam desde cedo, antes mesmo do nascimento, assim como diante do caráter cumulativo e estratificado das habilidades aprendidas via socialização, construídas, por assim dizer, uma sobre as outras”(Cf. p.218). É neste sentido que o autor pode afirmar a relevância das abordagens biológicas do comportamento humano, pois “nossos organismos operam como base (ou causa formal, no sentido aristotélico) de quaisquer processos subjetivos e práticos que descrevamos em linguagem psicológica e sociológica” (idem), o que o permite, não só abandonar um “determinismo” biológico ou genético (algo já há tempos abandonado por biológicos e geneticistas), mas se distanciar do hiperconstrutivismossociocêntricos que, por vezes, se disfarçam com uma roupagem relativista, tentando esconder o sociologismo ou culturalismo que o fundamenta.

Poderíamos dizer que tanto Frédéric Vandenberghe quanto Daniel Chernilo apresentam alternativas vigorosas para algumas das questões contemporâneas com que se defronta a sociologia, buscando superar o relativismo desconfiado e niilista do“pós-modernismo”, forjando um novo caminho para o pen- samento sociológico. A sociologia, assim, seria algo como um revigoramento crítico do universalismo filosófico e não a sua negação relativista, culturalista ou historicista. Nos dois casos, nos parece, o movimento de retorno às pretensões universalistas da sociologia conduz não só a uma retomada e explicitação dos pressupostos transcendentais que informam o ofício do sociólogo, mostrando assim a sua relação de dependência com a tradição de pensamento filosófico, como também nos apresenta a sua relativa independência, na medida em que a sociologia teria trazido para o pensamento filosófico aspectos da realidade social, histórica, cultural e política capazes de fortalecer, conferindo mais densidade e complexidade ao universalismo filosófico. Já Lacerda e Peters parecem desconfiar desse universalismo sociológico. O primeiro claramente associa a noção de social a uma concepção de “homem” que só é “universal” enquanto acontecimento discursivo ou dispositivo estratégico hegemônico e o segundo apresentauma necessidade de se rever a perspectiva “sócio-cêntrica”, admitindo sem culpa a importância de fatores biológicos e até mesmo da gramática gerativa de Chomski na “formação do gênio”. Poderíamos, por fim, como tentativa de sintetizar – de um modo bem parcial e assumidamente incompleto, diga-se de passagem – as principais ideias dos artigos, dizer que os dois primeiros se apresentam como soluções vigorosas da crise de legitimidade da sociologia como campo de conhecimento, renovando a sua dimensão universalista, enquanto que os dois últimos artigos já não falam mais em termo de crise do paradigma sociológico e de uma possível superação, mas de mutação deste paradigma, sendo que Peters sugere tal mutação na forma do texto, na estrutura narrativa, no formato ensaístico do artigo (além das referências bibliográficas heterodoxas e da coragem e ousadia de certas afirmações), e Lacerda a apresenta como argumento central do seu artigo, associando a sociologia às “sujeições antropológicas” dos discursos filosóficos da modernidade, deixando implícita a necessidade de uma “libertação” dessas sujeições, quem sabe através de um discurso sociológico pós-humano e, consequentemente, pós-social e pós-sociedade.

Mas, se de fato podemos mostrar algumas das diferenças entre os artigos, não podemos deixar de dizer que há um consenso que os une, a saber, a convicção de que pensar a “origem” e o “sentido” da sociologia nos leva inevitavelmente a uma forma de pensamento altamente reflexivo e desde já distante do que costuma se entender por “ciência” e até mesmo por “sociologia”, o que nos permite desvencilhar de uma perspectiva mais fechada característica da “ciência que não pensa”, para lembrar a bela expressão de Heidegger. Em certa medida – e guardada as devidas proporções – é este o objetivo da terceira edição dos Cadernos do Sociofilo, dedicado a pensar as relações de diferença e complementaridade entre a sociologia e a filosofia.


[i] Simmel, G. (2006): Questões fundamentais da sociologia, p. 36 (Rio de Janeiro: Zahar).
[ii] Habermas, J. (1983):"A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete", in Consciência Moral e Agir Comunicativo, pp. 17-35 (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro).

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