segunda-feira, 27 de março de 2017

Sobre o Ódio (originalmente publicado em Exercícios de Caligrafia)



Jonatas Ferreira

Fiquei feliz por ter participado hoje do Programa Fora da Curva. Não apenas acho a ideia de discutir temas que não encontram espaço na mídia corporativa muito boa, como a equipe que está tocando o projeto é excelente: além de Maria Eduarda da Mota Rocha (dona Maria) e Yvana Fechine, o time é composto por Lula Pinto e uma galera muito boa - não lembro do nome de todo mundo. Pela manhã, pois, estávamos na TV Universitária prontos  para conversar sobre esse tema central na política brasileira contemporânea que é o ódio, a raiva ao pobre. Na bancada, estávamos Maria Eduarda, Beth de Oxum e eu. Esse episódio do programa, assim como os outros já feitos até agora, estão na página do Programa Fora da Curva no Facebook. Mas quem quiser acompanhar ao vivo a série de conversas sobre temas cruciais da sociedade brasileira atual é só sintonizar de segunda a sexta a Rádio Universitária, de 11:30 às 12 h.

O ódio na sociedade brasileira, de modo amplo, demanda uma discussão urgente. Aceitemos, porém, o ponto de partida mais circunscrito proposto pelas produtoras e produtores do Programa Fora da Curva. Por que nos deparamos hoje com um discurso de ódio ao pobre na grande mídia, nas redes sociais e em fatos do dia a dia? Vamos a alguns exemplos – por força do hábito profissional sempre ilustro o que digo. O Nordeste, nas últimas eleições presidenciais, foi determinante para dar vitória à candidata da coligação PT-PMDB-PDT-PC do B-PP-PSD-PROS e PRB, Dilma Rousseff. Embora um estado como Minas Gerais também tenha sido importante para aquela vitória, foi largamente divulgado e comentado o resultado eleitoral que a candidata obteve entre pobres, ignorantes, analfabetos na região Nordeste. Não me deterei aqui, mas esse contingente da população brasileira parece ser, de acordo com certas análises, culpado de certo fisiologismo, de votar com o estômago e não estar realmente preparado para o exercício democrático. Discursos e atos de ódio aos nordestinos nos estados do Sul e Sudeste não são exatamente novidade, mas fizeram manchetes recentes e se espalharam pelas redes sociais, particularmente associados a análises do papel que tais discursos exerceram no último pleito presidencial. Maria Eduarda em sua fala de abertura ao programa sugeriu, e a propósito, que o ódio a Marisa Lula da Silva se deve à sua origem social, ter sido ela uma empregada doméstica e ter se tornado primeira dama do país. Não "soube o seu lugar" e por isso o ódio social chegou mesmo a se converter em sugestão de procedimentos médicos para assassiná-la ou celebrações quando ela faleceu.

Poderíamos ainda falar de vários outros e outras brasileiros e brasileiras que ascenderam socialmente em decorrência de políticas desenvolvimentistas dos Governos Lula e Dilma - parte deles constituem o que Jessé Souza chama de “batalhadores”. Esses governos tentaram aliar políticas neoliberais na área econômica a políticas sociais inclusivas, como lembra André Singer. Essas últimas, como se sabe, resultaram em alguma mobilidade social, no que pese a dificuldade política de mantê-las, ou ampliá-las, no médio prazo. 

Existe uma tendência a se afirmar que as elites brasileiras têm nojo, asco de pobre. E há aqui muita verdade, afinal não estamos tão distantes assim daquele general que disse preferir o odor de seus cavalos ao cheiro do povo. Mas esse tipo de argumentação não diz algo fundamental. Há algo de muito racional nos pelos eriçados das classes médias, por exemplo, diante da proximidade física de “batalhadores” nos "seus" redutos de compra, ou fazendo barulho na segunda classe de “seus” aviões, ou ainda atulhando as avenidas das grandes cidades com seus modestos 1.0, comprados em infinitas prestações. 

A estratificação brasileira é produto de uma acomodação social perversa. Os salários pagos pelas empresas nacionais e internacionais, ou pelo setor público, aos profissionais qualificados, membros das classes médias, não seriam suficientes para lhes dar um padrão de vida razoável, compatível com sua pretensão de classe, caso esses profissionais pagassem valores razoáveis por todos os serviços de que necessitam. A exploração a que são submetidas as classes médias brasileiras só não é explosiva porque ela transfere essa pressão para camadas da população que fazem tarefas necessárias em suas vidas, tais como, lavar suas roupas, passá-las, reparar máquinas, equipamentos, cozinhar sua comida, varrer e aspirar suas casas etc. etc. Aprendemos isso ao ler Florestan Fernandes. 

O Brasil foi tradicionalmente pensado como um país em que não há conflitos sociais sérios porque um nível de exploração tão brutal, quanto este que existe entre nós, inconcebível com seu lugar de sétima, oitava, nona economia do mundo, penaliza sobretudo quem nada tem e dispõe de pouca organização política para lhe impor resistência. Essa é uma lição básica acerca da perpetuação do passado colonial e escravocrata que marca a nossa modernidade: os financistas ingleses exploram a corte que explora os produtores brasileiros que exploram os seus escravos. E essa lógica se manteve quando o regime escravocrata é legalmente suspenso.

Uma mudança ainda que mínima nessa situação, afinal nos últimos anos nossos indicadores sociais melhoraram, inclusive o nível de concentração de renda, tem um impacto direto em tal estrutura da estratificação social, em sua acomodação perversa. Há que se pagar um salário mínimo menos aviltante para as domésticas, que passam a ter alguns direitos trabalhistas garantidos, por exemplo. Em período de prosperidade econômica tudo isso já é visto com extrema suspeita pelas classes médias, que vão às ruas contra à corrução suposta e real, mas que silenciam diante da tomada de várias instâncias do poder pelo crime organizado, caso esse novo poder esteja, como está, disposto a colocar os miseráveis no seu devido e mau cheiroso lugar. Há emoção na postura de manifestantes que reivindicam empregadas domésticas que durmam no serviço, ou passeios regulares e mais exclusivos a Miami – por que porra Miami, eu me pergunto, talvez porque nunca estive lá... Há emoção, mas há sobretudo um cálculo estreito. Há defesa de  capitais simbólicos distintivos, claramente, e muito poderíamos falar a esse respeito, mas há também uma contabilidade econômica básica. As classes médias não veem a possibilidade de elas próprias também melhorarem sua situação social e de adotar práticas menos ligadas a um passado escravocrata, de aceitar a cidadania do maior número possível como conquista desejável da democracia.

Raiva de pobre nesse grupo é também um ódio íntimo com respeito à sua condição de classe média periférica, mal paga, inculta, portadora de valores retrógrados que fariam vergonha nos lugares do mundo por onde passeiam com tanto gosto - bem, hoje em dia está complicado afirmar isso com a ascensão da extrema direita no mundo... Setores significativos das classes médias brasileiras não podem deixar de ver na pobreza econômica e social de largas parcelas da população sua própria miséria existencial. Nesse sentido, sou hegeliano: o outro com quem convivo é sempre o espelho em que me reconheço. Ir a Miami, nesse sentido, indica o quanto posso virar as costas para tal espelho e até onde minha cultura permite a imaginação se soltar. Por que Miami, eu ainda me pergunto...

E aqui poderíamos passar para outro aspecto do ódio no Brasil.

Conforme lembrou Beth de Oxum, em nossa conversa, o ódio entre nós não é apenas contra os pobres, mas contra negros, homossexuais, lésbicas, praticantes de cultos de origem africana. Nesse sentido, o ódio é um sintoma ainda mais grave. Ele nos remete ao quanto nossas instituições democráticas se encontram destroçadas. Numa situação em que o direito à cidadania seja garantido, não preciso odiar o outro, a outra. Certificar-me de que tanto eu quanto esse outro/outra seremos, ambos!, tratados como cidadãos de direito deveria ser o suficiente. A leitura de intelectuais como Judith Butler, neste ponto, ajuda muito. O ódio é um sintoma paranoico, é um medo intenso de que minha identidade seja tão frágil que o convívio com a diferença possa resultar em seu colapso - ademais, em nosso contexto caótico, tememos todos, progressistas e reacionários, que não haja instituições para defender nossos direitos. Esses medos intensos por vezes são projetados em nossos filhos. Se meus filhos conviverem com pessoas gays, vão achar isso normal e querer ser também, raciocina-se. 

Eis aí o que parece uma possibilidade concreta. Se você achar essa opção ou orientação normal, é possível que seu filho também não veja grande problema em uniões homoafetivas. Mas ninguém vai se tornar negro, ou lésbica, ou judeu por “contagio”. O mimetismo emocional que certos pais ou mães identificam em sua prole revela no mais das vezes dúvidas íntimas, suas. Quem aí viu Beleza Americana, com Kevin Spacey? Os rituais de depreciação e a busca de extermínio da alteridade é uma tentativa triste, fascista, de preservar a coerência de uma identidade que intimamente sabemos frágil. Nunca devemos esquecer que o fascismo junta sempre esses componentes, numa política das emoções fundada no ódio, na busca por uma pureza inconcebível – pois toda identidade é relacional – e numa política de extermínio: do outro/da outra que ameaça e de parte de nós mesmos que precisamos reprimir. Lembremos nesse ponto da tal cura gay. Esse é claramente um ritual de repressão do outro e de si próprio. No programa, lembramos da defesa que o deputado Jair Bolsonaro faz da pureza de sua família, contra negros, homossexuais, pobres etc. Vimos recentemente sobre que bases morais se estrutura essa pureza desejada ao termos acesso pela imprensa a uma troca de mensagens entre ele e seu filho. Aqui não se trata de fulanizar a discussão, apenas de ilustrá-la.

O outro, a outra, deveria sempre ser visto como uma possibilidade de crescimento, de aprendizado, caso possamos nos abrir sem medo de autodestruição ao seu contato, ao incomensurável de que o ele/ela é portador(a). A existência da diferença não deveria sufocar minha possibilidade de existir.

Falar contra as políticas fascistas de ódio, sempre facilmente mobilizáveis pelos partidos, pela mídia, sempre econômicas em seus investimentos, entretanto, não é apenas falar das práticas da direita. Tradicionalmente, o humanismo, a luta democráticas de diversos setores da esquerda nos fez portadores de um discurso antiautoritário, antifascista. Mas não existem puros onde uma estrutura social tão perversa se impõe, como é o caso brasileiro. Há alguns anos, o desespero de alguns setores da esquerda com respeito ao regime de exceção, contra a ditadura que se instalou em nosso país, levou-os a práticas políticas vanguardistas, descoladas das possibilidades políticas do país. A guerrilha não foi uma resposta autocrática ao autoritarismo vigente, no que pese todo o seu discurso humanista? Hoje segmentos dessa mesma esquerda, ao simplificarem seus adversários como “coxinhas”, não reduzem e empacotam seus adversários políticos exatamente como a direita o faz ao chamar quem não foi conivente com o golpe parlamentar de 2016 de “petralha”? O ódio que marcou a campanha eleitoral de 2014 foi apenas um fenômeno da direita? Creio que a luta crucial pela democracia e contra o ódio – mas não contra o conflito e a divergência – passa por refletirmos sobre os atalhos perigosos que uma indústria da opinião pública nos oferece. O ódio é um investimento libidinal econômico, mas é também empobrecedor e autodestrutivo.

De tarde, vi o programa pelo Facebook. Fiquei muito contente de ver o ambiente tranquilo e de muita escuta em que nossa conversa se desenrolou. Quase à noite, AL... me falou que eu sou coerente em minha resistência ao ódio também no campo pessoal. Fiquei mais feliz ainda, embora saiba que isso é sempre uma luta que acarreta muito sofrimento.

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